Nós propomos

*Por Paula Parisot
Há quase 2 anos vivo em Buenos Aires.
Cheguei aqui sem conhecer ninguém – a não ser a curadora Andrea Giunta que entrevistei junto a artista colombiana Jessica Mitrani para o nosso programa A Crucigramista sobre arte na América Latina para o Arte1 (Brasil) e canal 180 (Portugal).
Logo nos primeiros meses através de um amigo de um amigo – coisa de forasteiro recém-chegado à cidade estranha – fui apresentada à escritora Cecilia Szperling.
E foi justamente através destas duas mulheres Andrea Giunta e Cecilia Szperling que tomei conhecimento e participei do Nosotras Proponemos (Np) – Assembleia Permanente de Trabalhadoras da Arte (Artes Visuais), que construiu um compromisso de práticas feministas com 37 propostas, assinado por mais de 3 mil pessoas. Mas, como sabemos, a arte não compreende somente as Artes Visuais, mas também Música, Teatro, Literatura e assim foram se formando outros grupos – todos unidos ao Np – como o Nosotras Proponemos Literatura (compromisso de práticas feministas no Campo Cultural, Literário e Intelectual) que adicionou mais 10 pontos aos já existentes 37 do Np. Todos os textos estão disponíveis no site http://nosotrasproponemos.org/ (também em português).
Poderia dizer que o Np começou no dia 5 de novembro de 2015 quando a artista Graciela Sacco faleceu. Nesta ocasião várias artistas argentinas em suas páginas de Facebook recordaram não só a potencia da obra de Graciela Sacco, mas também “as formas sutis – e nem tanto – com que o machismo na cena artística de Buenos Aires havia atuado, de distinto modo, contra ela, como artista e como pessoa”, como explica Andrea Giunta no seu livro “Feminismo y Arte Latinoamericano – Historias de artistas que emanciparon el cuerpo” (sigloXXI, 2018). Para a comunidade argentina de artistas mulheres por trás da morte de Graciela Sacco estavam escondidas muitas formas de violência simbólica. Foi então que Leticia Obeid, também em sua página do Facebook, enumerou 10 pontos sobre o machismo no campo das artes. Foi tal a comoção entre as artistas que a estes 10 pontos foram sendo acrescentados outros, escritos coletivamente, que ao final formaram as 37 propostas que hoje são o Compromisso do Nosotras Proponemos.
Como já disse, tomei conhecimento da movimentação através da Andrea e participei de alguns encontros na casa da Cecilia, onde se discutiam as necessidades e prioridades das escritoras, editoras, tradutoras e todas aquelas que trabalhavam no Campo Cultural, Literário e Intelectual. Também, na casa da Cecilia, ensaiamos o poema “Por qué grita esa mujer” de Susana Thenón que recitamos juntas (escritoras, artistas, galeristas, historiadoras de arte, editoras, etc.) como um coro grego, todas vestidas de vermelho, na frente do Malba que tinha a parede da entrada coberta por papéis com nomes de artistas. Também estava presente quando numa outra ação do 8M o primeiro andar do Museo Nacional de Bellas Artes (MNBA) ficou na penumbra, algumas salas na escuridão total, porque das mais de 200 obras expostas somente havia 20 trabalhos de artistas mulheres, os únicos a serem iluminados para deixar evidente a desigualdade de gênero, que se reproduz não só nesta instituição, mas em quase todas as instituições em todas as partes do mundo.
É importante mencionar que essas duas ações, assim como muitas outras que aconteceram em diversas instituições da Argentina no 8M, foram levadas adiante graças aos diretores que assinaram o Compromisso do Np ou que tinham desenvolvido uma programação em pró da igualdade de gênero, como Augustín Pérez Rubio, no MALBA. Pouco depois, em abril, quem abriu a Feira do Livro de Buenos Aires foi a escritora Claudia Piñeiro e a feira bateu recorde com um grande número de mesas com escritoras e minorias, superando a média de 20% das feiras anteriores.
O Compromisso Np conta com muitos precedentes como a carta “We are not surprised”, o movimento #MeToo, as passeatas contra o feminicidio crescente nos países latino-americanos (“Ni una Menos”), entre outros. São muitos os gritos. Olhem as estatísticas! Olhem os números! Mês passado a curadora Nikki Columbus entrou com uma ação contra o PS1 porque não a contratou quando soube que ela estava grávida ou a repercussão da carta dos 5 nominados para o Belgian Art Prize 2019.
Não é possível que enquanto estou escrevendo este texto entre um email da escritora Andrea Del Fuego me contando que três chilenas foram esfaqueadas por extremistas pró-vida numa manifestação pelo aborto. Devemos exigir a separação entre igreja e estado! Devemos exigir muitas coisas. A luta é grande! Não podemos mais aceitar tanto horror! Não podemos mais aceitar tanto horror! Não podemos aceitar o horror, a maldade, a covardia, o machismo, o racismo, que executou à tiros a deputada Marielle Franco. A morte de Marielle está carregada de simbolismo uma vez que neste corpo há toda uma história de violência e morte de corpos negros. Vamos seguir indo as ruas! Vamos protestar!
Esta Assembleia Permanente começou com um punhado de pessoas que necessariamente nem se conheciam e que foi crescendo, até eu, estrangeira, morando na cidade havia 1 ano fui convidada a participar. E esses encontros, essas trocas, este constante ir e vir de informação, conhecimento, criatividade, pensamentos, ideias, experiências e a vontade de se fazer ouvir foi formando uma rede de colaboração e força. Alguns resultados vão chegando. No início do ano começou a mobilização a favor do aborto legal e seguro. As reuniões, as cartas conjuntas assinadas por centenas de artistas. Fomos 250 escritoras, trabalhadoras do mercado editorial e acadêmicas pessoalmente, em um mesmo dia e horário, imaginem 250 mulheres dentro de uma redação de revista, assinar a carta pedindo o projeto de lei do aborto legal, seguro e gratuito, sem falar nas outras centenas que assinaram via email.
Como explica Andrea Giunta no livro Feminismo y arte Latino Americano (sigloXXI, 2018): “o Np literatura pretende ir além das assinaturas no documento ou das ações do dia 8 de março. O Np busca viabilizar as mudanças. O compromisso ou as ações são apenas um ponto de partida, o começo de uma tarefa onde estão sendo desenhadas estratégias futuras.”
Hoje, neste compromisso, ao qual as argentinas chamam a nós brasileiras, para estarmos juntas, por nós e por elas e por todxs! Nosotras Proponemos, Nós propomos!
O feminismo vem recuperando legitimidade.
Todos os feminismos – feminismo popular, feminismo radical, feminismo socialista, feminismo negro, feminismo indígena, feminismo Abya Yala, feminismo autônomo, feminismo queer, feminismo liberal, anarcofeminismo, ecofeminismo, postfeminismo, transfeminismo, lutas camponesas, etc – nos dão um novo vocabulário para desvendar os símbolos e as práticas sociais que colocam as mulheres e as minorias em um lugar secundário, de desvalorização perante o homem, principalmente o homem branco, europeu e heterossexual, o feminismo é uma filosofia de vida, é uma teoria libertária que inclui à todxs e é também um movimento, uma revolução pacífica, não sanguinária, que luta por igualdade de gênero, raça, justiça social e multiculturalismo, para que todos tenham as mesmas oportunidades em todos os campos.
O feminismo, digo os feminismos, são múltiplos porque são múltiplos os direitos, as vivências, as diferenças, as necessidades, as lutas, as histórias e os desejos, mas para além da heterogeneidade, queremos o mesmo: que a mulher (e as minorias) deixe de ser alguém diminuído, desvalorizado, sem identidade, sem passado e sem voz.
E por isso me juntei as minhas hermanas argentinas neste grito, e com elas fui as ruas no dia 14 de junho, com as unhas e olhos pintados de verde e meu lenço verde em punho: #AbortoLegalYa #QueSeaLey #IglesiaYEstadoSeparados. Foi histórico ver o projeto de lei a favor do aborto passar na Câmara dos Deputados e seguir para ser votada no Senado. Eu acredito, não há retorno, mais cedo ou mais tarde, o aborto será legalizado e o mesmo deve acontecer no Brasil. Não podemos seguir na clandestinidade sem perspectiva de mudança. Se dia 8 de agosto a lei passar o aborto será legalizado na Argentina, assim como já foi legalizado em Cuba, Guayana, Puerto Rico e Uruguai aqui na nossa América Latina. Estamos a favor da despenalização do aborto e por isso mesmo a favor da vida! Basta de hipocrisia! Basta de morte! O corpo é nosso! O estado não pode controlar os nossos corpos. E como dizem muitos cartazes nas passeatas: a rica faz aborto / a pobre morre. Não sabemos que é assim? Não é esta a verdade? Por que será? Devemos denunciar a desvalorização dos corpos das mulheres pobres, um problema grave de classe e privilegio. O que deseja o estado com isso? Que nasça mais mão de obra barata? Mas é isso e mais, uma e outra e outra explicação descabida quando vimos ao que acontece ao nosso redor e aí estão as estatísticas para confirmar o que estamos dizendo, repito, a igreja tem que estar separada do estado.
E mesmo que a luta seja grande eu tenho esperança, somos muitas, muitos, na verdade, muitxs, com esperança. E num arroubo de esperança e motivada por minhas colegas argentinas escrevi para Ana Miranda, Andrea del Fuego, Tércia Montenegro, Alice Ruiz, Simone Paulino, Noemi Jaffe, Micheliny Verunschk, Adrienne Myrtes, Paloma Vidal, Paula Fábrio, Patrícia Melo, Carola Saavedra, Socorro Acioli e outras e Tatiana Levy Salem, que me colocou em contato com a Antônia Pellegrino e aqui estou escrevendo este texto tecendo a rede que começou a ser tecida em Buenos Aires, Rosário, Córdoba, Salta foi chegando à São Paulo, Fortaleza, Rio de Janeiro e a nossa esperança é que se espalhe por todo Brasil, ojalá por toda América Latina. Vamos juntas! Reivindicando mudanças e construindo histórias dos pampas aos sertões, dos Andes à Caatinga, das grandes às pequenas cidades, das florestas às praias, pelos rios, mares, oceanos, dos céus ao infinito!