#AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br Um espaço para mulheres em movimento Wed, 15 Apr 2020 11:52:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 #ChegaDeFiuFiu: uma campanha, um filme, um aprendizado coletivo https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/#respond Fri, 08 Jun 2018 18:26:54 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1444

Por Juliana de Faria, Amanda Kamancheck e Fernanda Frazão

Uma das consequências mais tristes do assédio sexual é a solidão que ele traz. Não queremos ser inocentes: é claro que os traumas psicológicos e as dores físicas decorrentes de uma violência podem ser duradouros, até eternos. Mas a culpabilização da vítima é padrão tão arraigado no processo que leva até a própria mulher a se culpar pelo que sofreu. “Foi a minha roupa? O horário que saí de casa? O caminho pelo qual escolhi passar?” O assediador nos violenta e leva consigo parte da nossa autonomia, da nossa história, pois é difícil falar sobre o ocorrido quando acreditamos que o que aconteceu foi derivado de nossas escolhas.

A Chega de Fiu Fiu, que surgiu em 2013 como a primeira campanha da ong Think Olga, tinha como objetivo denunciar o assédio sexual, principalmente em locais públicos. Aquilo que por anos foi entendido como algo trivial, “parte do jogo de ser homem” ou até mesmo uma brincadeira, não seria mais tolerado. Era preciso mostrar que o que a sociedade normalizava, estava machucando, humilhando e amedrontando as mulheres. E um efeito não mapeado da ação foi justamente o combustível para que ela tivesse força para durar até hoje: unir vítimas ao redor de suas dores, antigas e novas. Falar sobre elas não as eliminava, mas certamente extinguiu a solidão que o silêncio e a vergonha conservavam. Aprendemos que somos mulheres diferentes, mas nossas experiências violentas dialogam entre si. Não por uma opção de vestuário ou caminhar na rua, mas sobretudo por enfrentar a vida como mulheres.

Aprendemos também que a coragem é viral. Basta a denúncia de uma mulher para que outras a sigam – como no jogo de dominó em que a primeira peça derrubada leva consigo todas as outras. Foi essa força coletiva que nos ajudou, lá atrás, a dar mais um passo na campanha. Queríamos produzir um documentário sobre o tema e, por meio de um financiamento coletivo, conseguimos o apoio de mais de 1200 pessoas que igualmente acreditavam no poder do audiovisual como ferramenta de educação social.

A partir da pergunta “a cidade tem um gênero?”, fomos mergulhando em uma série de camadas que nos mostram por que as cidades são inseguras para as mulheres. Percorremos os principais obstáculos ao direito à cidade, desde a ausência da perspectiva de gênero no planejamento urbano, à má qualidade dos serviços de atendimento às vítimas de violência e à escassez de um debate aberto sobre o tema nas escolas.

A fim de demonstrar por que o espaço público não pertence às mulheres, trouxemos para a narrativa a desigualdade de poder entre homens e mulheres no uso desse espaço. Para isso, utilizamos estratégias como diários feitos com celular, onde nós e as personagens catalogávamos assédios do cotidiano; um experimento com um óculos com uma microcâmera, a fim de registrar olhares e falas dos autores da violência; entrevistas diretas com especialistas no tema; grupos focais com os homens, para debater masculinidades; e, mais importante, a história de 3 personagens: Rosa Luz, uma mulher trans, negra e artista visual moradora de Brasília; Raquel Carvalho, manicure e estudante de enfermagem, negra, de Salvador; e Teresa Chaves, professora do Ensino Médio e cicloativista, de São Paulo.

Priorizamos na escolha das personagens não somente diferentes regiões do país, mas dialogar com as mulheres mais vulneráveis, aquelas às quais as políticas não chegam, que são as mulheres negras, pobres, e as trans. Embora as mulheres negras já circulem há muito mais tempo nos espaços públicos, dado que sempre trabalharam como operárias – nas casas de outras pessoas por exemplo –, a elas o direito à cidade é ainda mais restrito. O acesso ao transporte público e à mobilidade como um todo, à moradia, à qualidade de vida e ao lazer são ainda mais limitados. A violência aí aparece de forma brutal e latente, não somente na restrição aos direitos, mas também no assédio que se mostra ainda mais violento e objetificador.

Trazer a força da campanha Chega de Fiu Fiu para um filme foi um esforço imenso. Envolveu reviver violências e registrá-las. Mas, nossa grande preocupação sempre foi mostrar a agência das mulheres, sua força e capacidade de transformação de um cenário hostil e opressor. Queríamos mostrar como elas estão ocupando as cidades, a partir de uma perspectiva feminista, seja na internet ou nas ruas. E, com isso, trazer ideias sobre como construir juntas cidades para as mulheres. Já não estamos mais sozinhas.

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* Juliana de Faria é fundadora da ONG Think Olga e criadora da campanha Chega de Fiu Fiu; Amanda Kamancheck Lemos e Fernanda Frazão assinam a direção do documentário homônimo, em cartaz nos cinemas

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O tempo não é nosso inimigo: por uma revolução estética feminina https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/21/por-uma-revolucao-estetica-feminina/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/21/por-uma-revolucao-estetica-feminina/#respond Mon, 21 May 2018 06:49:31 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/envelhecer-320x213.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1425

por Gleicimara Araujo Queiroz Klotz*

Quantas vezes nos deparamos com manchetes como: “Giovanna Antonelli aparece envelhecida em foto”?

A beleza, não obstante um substantivo feminino, se refere aquilo que é agradável aos olhos. Mas por que a beleza é um tida como dever eminentemente feminino? Simone de Beauvoir já nos alertava que a mulher é um outro, ou seja, não é um homem. Socialmente o corpo feminino tem a função primordial de agradar ao outro, para isso está sujeito à regras e precisa ser moldado e submetido à inúmeros procedimentos: pintar as unhas e cabelos, depilar, maquiar, usar saltos, roupas desconfortáveis. A lista seria interminável!

O processo de envelhecimento produz transformações nos corpos que são incompatíveis com o padrão de beleza, como as rugas e os cabelos brancos. Comumente as mulheres relatam com sofrimento o surgimento dos primeiros cabelos brancos. Porém, homens e mulheres são vistos de forma diferente quando envelhecem. É comum vermos os homens de cabelos brancos sendo vistos como charmosos e a mulheres como desleixadas.

Desta forma o corpo é o objeto de maior investimento feminino pois é tido como seu capital social. Em uma sociedade em que a mulher tanto mais vale quanto mais bela é, justifica a corrida pelo consumo de produtos de beleza, uma vez que proporciona mais chances no campo afetivo, social e laboral. A mulher feia é a mulher falha, invisível e inapropriada. Em incontáveis filmes e telenovelas foi retratada a mulher feia que corrige “sua falha” e retorna triunfalmente bela, sendo merecedora do amor e do sucesso, como em “O Diabo Veste Prada”, ou na novela “Betty a feia”.

Esta exigência com os corpos femininos evidencia sua relação política e econômica. Do ponto de vista político as exigências estéticas nos colocam relação assimétrica aos homens, na qual as mulheres podem ser entendidas como frágeis ou acessórias. No sentido econômico o padrão de beleza nos torna ávidas consumidoras de produtos que prometem corrigir os corpos errados e nos trazer a beleza.

O envelhecimento traz uma perda significativa, nos tornamos invisíveis quando não somos mais belas. Perdemos a utilidade, isto denuncia dois grandes problemas: a função social da mulher e o padrão de beleza. Simone de Beauvoir dizia em “O segundo sexo” que desde a mais tenra idade as mulheres são treinadas a ser belas e recatadas, ao contrário dos meninos, são o bibelô do pai e ao longo da vida reproduzem este papel de serem belas e graciosas. Ao envelhecer, que não é mais possível ser bela, a mulher perde sua função e sua visibilidade social. Me recordo da fala de uma mulher idosa, colhida na minha pesquisa de doutorado sobre o tema aqui tratado: “Quando era jovem os carros buzinavam para mim, agora que sou velha me atropelam”.

Atualmente envelhecer bem significa apagar as marcas do envelhecimento, por isso as rugas e os cabelos brancos precisam ser exterminados, ou seja, somos individualmente responsáveis pelo nosso envelhecimento e a forma correta de envelhecer se dá pelo consumo de produtos. Algumas atrizes são tidas como exemplos de bom envelhecimento, pois não aparentam sua idade real.

Na contramão do discurso dominante temos acompanhado o despertar de uma resistência feminina, resistência que tem se expressado pelo empoderamento de seus corpos. Tal fenômeno tem ocorrido a partir das novas mídias, na qual mulheres tem criado seus próprios espaços de discussão e difusão de imagens, seja no âmbito individual por fotos e ocupação das ruas, seja no social por meio de blogs, grupos de discussão e produção de documentários.

Acompanhei diversas mulheres idosas que realizam resistências cotidianas ao ostentarem seus cabelos brancos, suas rugas, com seus corpos reais e diversos, criando novas imagens estéticas e resistindo ao padrão imposto. Apesar de ainda grande parte das mulheres apresentarem uma relação de sofrimento com o corpo por não se encaixarem nos padrões estéticos, no doutorado tive a chance conhecer idosas que tiveram suas vidas controladas por maridos, filhos, pais e padrões que agora conseguiram romper e se relacionar de forma autêntica e satisfatória com seus corpos.

Em seu documentário Elca Rubinstein aborda a aceitação dos cabelos brancos em qualquer idade, já que podem surgir ainda na juventude. A produção de conteúdos em blogs também tem sido relevante como os de Mirian Goldenberg, Beltrina Corte do Portal do Envelhecimento, e de Yara Schechtmann no qual relata suas experiências cotidianas. No instagram a atriz Vera Holtz publica fotos críticas com senso de humor. No campo da moda, apesar de ainda não apresentar uma ruptura de padrões, temos alguns representantes internacionais como a famosa Iris Apfel e o fotógrafo Ari Seth Cohen da Advanced Style.

Também tem sido de extrema relevância as resistências das mulheres comuns, de diferentes classes, e estilos de vida, que em sua vida cotidiana tem produzido uma nova forma de se apresentar no mundo, se desvencilhando dos padrões. Apesar de não romperem completamente pois este discurso ainda é uma forma forte de poder, o fazem da forma possível individualmente.

O que há de comum nestas mulheres é que suas vivências individuais, se unem em um discurso grupal e assim ganham força na transformação social. As mulheres idosas tem sido também protagonistas na criação de uma nova estética feminina, quando discutem sobre os padrões, quando se associam, quando se apoiam e principalmente quando falam através de seus corpos. corpo enquanto corporeidade é a existência subjetiva do sujeito, através dele que é possível perceber o mundo e relacionar-se com os outros. O corpo que aprisionava agora é o palco da nossa revolução.

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* Gleicimara Araujo Queiroz Klotz é psicóloga, doutora em Psicologia Social pela USP

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Nos relacionamentos abusivos, a gente mete a colher sim! | #AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/08/a-gente-mete-a-colher/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/08/a-gente-mete-a-colher/#respond Tue, 08 May 2018 22:40:36 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1409

Por Renata Albertim*

Tudo começou em 2016. Na época nove mulheres feministas e de Recife/PE se propuseram a criar e desenvolver uma rede de apoio para ajudar mulheres que viviam algum tipo de relacionamento abusivo. A ideia surgiu em um evento de startup e empreendedorismo, específico para o público feminino, onde Emily Blyza (uma das integrantes na fase inicial) contou que fazia parte de um grupo de WhatsApp em que uma mulher conseguiu gravar um áudio mostrando que o companheiro a agrediu e todas as demais mulheres que faziam parte desse grupo ficaram sem saber ao certo como ajudar.

Quando Emily externou essa situação ficamos todas com a mesma dúvida: como ajudar uma mulher que está vivendo uma relação abusiva? Mesmo sem saber ao certo o caminho a seguir, nos propusemos a descobrir. Fomos em Delegacia da Mulher, Centro de Referência, ONGs, conversamos com advogadas e nesse meio tempo criamos uma página no Facebook. Tudo isso aconteceu em um final de semana e coincidiu com o relato de Cândice Dantas, recifense que postou na rede social a agressão que sofreu do seu namorado e que gerou bastante repercussão na mídia local e nacional. Apesar de compreender que o tema era muito delicado e ao mesmo tempo bastante necessário, não tínhamos a pretensão de ir tão longe, mas o trabalho certo e cheio de empatia foi ampliando a nossa voz e chegando a muito mais mulheres em todo o Brasil.  No mesmo final de semana em que criamos a página no Facebook, recebemos por inbox um desabafo de uma mulher do Paraná falando sobre os traumas que ainda vivia mesmo depois do relacionamento abusivo ter chegado ao fim. Essas e outras histórias que fomos nos conectando foram as sementes para a construção de algo maior.

A cada dia que passava fomos compreendendo o que estava por trás de um relacionamento abusivo, o motivo que fazia as mulheres permanecerem na situação e porque era tão difícil romper o ciclo de violência. Descobrimos que uma das maiores dificuldades é a falta de apoio que a mulher em situação de vítima se encontra. E foi aí que nos preparamos para atuar. O Mete a Colher é uma rede de apoio entre mulheres com o objetivo de ajudar todas aquelas que vivem um relacionamento abusivo. Identificamos que os maiores problemas para enfrentar uma situação de violência é a falta de apoio emocional, desconhecimento dos direitos conquistado pelas mulheres, e a dependência financeira do companheiro. A partir disso, passamos a reunir mulheres que queriam ajudar de forma voluntária, em alguma dessas três categorias, e fazer as conexões entre quem precisava de ajuda e quem queria ajudar.

Desde de 2013 o país vinha fervendo em debates calorosos sobre política, violência, feminismo e problemas sociais. Acreditamos muito que a Primavera Feminista, e principalmente os debates que ganharam repercussão no ciberespaço, contribuiu para o Mete a Colher abrir o espaço para que as mulheres se sentissem à vontade para relatar a violência sofrida no seu cotidiano. Foi assim com Lourdes. Lourdes é uma mulher de aproximadamente 40 anos que estava há mais de 10 anos lutando para punir o agressor e ex-companheiro que desfigurou seu rosto numa violência física brutal. Através de um programa televisivo policial local, ficou sabendo do Mete a Colher, e veio conversar com a gente pelo inbox. Contou sua história e sua descrença na lei porque tinha uma década, o mesmo tempo da existência da Lei Maria da Penha, que o ex-companheiro continuava a ameaçar a sua vida. Contactamos Lourdes com uma advogada que estava cadastrada na nossa rede e juntas seguiram para agilizar o processo que estava correndo na justiça. Depois de alguns meses Lourdes passou a ser acompanhada também pelas advogadas do Centro de Referência da cidade com o objetivo de acelerar o andamento do processo. Quase um ano depois, recebo uma mensagem de áudio de Lourdes, com alegria na voz, falando que o ex-companheiro ia ter prisão preventiva e que seus anos de tormento estava finalmente chegando ao fim. Foi nessa hora que pensamos: o caso de Lourdes está fazendo todo o nosso esforço valer a pena!

A força do nosso trabalho também vem das nossas próprias histórias. Eu, Aline, Lhaís, Carol, Mari e Thaísa nos consideramos todas feministas, nós sabemos o quão difícil é viver um relacionamento abusivo visto que algumas já experienciaram em suas próprias relações no passado ou porque nossas mães, amigas e outras parentes sofreram na pele. E levamos a sério a máxima que nenhuma mulher deve sofrer sozinha!

Em quase dois anos de atuação, o Mete a Colher ajudou diretamente cerca de 2 mil mulheres via inbox das redes sociais. Em Julho de 2017, para aumentar a rede e criar um espaço mais seguro para as mulheres conversar, lançamos o App Mete a Colher (disponível para Android) fruto de uma campanha de financiamento coletivo que reuniu mais de 500 apoiadores. Até agora a plataforma reúne 8 mil mulheres ativas e cada pedido de ajuda recebe uma média de 4 respostas de mulheres diferentes. Acreditamos demais que o mundo online é capaz de atuar no combate à violência doméstica. Não conseguimos ainda contabilizar quantas mulheres estão livres de seus agressores porque uma das características desse tipo de relacionamento são as idas e vindas. No entanto, temos a certeza que a cada ida e vinda a rede contribui para que a mulher se fortalecer cada vez mais.

Para o ano de 2018 o Mete a Colher promete melhorar a experiência de uso do app, lançando a versão 2.0 e consequentemente a versão iOS. É com esse trabalho que o time subverte o velho ditado: em briga de marido e mulher, a gente mete a colher sim! E amamos fazer isso! <3

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*Renata Albertim é co-fundadora do Mete a Colher.

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Sobre as mulheres-borboleta | #AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/03/13/sobre-as-mulheres-borboleta/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/03/13/sobre-as-mulheres-borboleta/#respond Tue, 13 Mar 2018 23:17:27 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1337

Por Sharon Sanz Simon e Luciana Mascarenhas Fonseca*

Dizem que as mulheres na casa dos 30 anos – as tais ditas balzaquianas –  atingem o pico de sua beleza e plenitude. Talvez. Também nesta mesma idade, a mulher começa a se preocupar com as transformações do corpo. Logo a atenção recai nas marcas de expressão, nos discretos (ou nem tanto) fios brancos, ou qualquer outra indicação do envelhecimento. A verdade é que a preocupação com o envelhecimento do corpo feminino acontece de forma superestimada e precoce, bem antes da mulher ser considerada idosa de fato (pela legislação brasileira, acima dos 60 anos). Essa inquietação parece estar presente como pano de fundo no universo feminino da mulher moderna.  

Homens e mulheres enfrentam diferentes estereótipos ao envelhecerem. Um antigo ditado diz que os homens envelhecem como um vinho, enquanto as mulheres como o leite. Um tanto injusto, convenhamos. Poderíamos dizer que as mulheres são mais cobradas que os homens sobre sua aparência ao envelhecerem? Segundo a pesquisa da revista de beleza Allure Magazine (Allure Aging Survey), podemos dizer que sim. A revista entrevistou 2000 idosos pelos EUA sobre questões de estética e envelhecimento. Noventa porcento dos entrevistados disseram que as mulheres vivem mais sob pressão do que os homens para parecerem mais jovens. Também, a maioria disse que os homens são considerados ‘velhos’ 5 anos mais tarde que as mulheres, e tendem a ser considerados mais ‘sexys’ que as mulheres quando mais velhos. Além disto, 42% das mulheres de 50-59 anos disseram que sentem que precisam parecer mais jovens para ter sucesso em suas vidas profissionais, praticamente o dobro do número de homens.

Porque estes estereótipos sobre envelhecimento e gênero são tão diferentes? E por que em geral o foco para o homem recai sobre os ganhos em atributos intelectuais e charme, enquanto para a mulher, a perda da beleza e da atratividade. Eles, parecem ter orgulho da idade, elas, uma certa vergonha. A velhice feminina parece sempre querer passar mais desapercebida. Quer-se esconder a idade, as inevitáveis rugas e cabelos brancos. Talvez a mulher carregue o peso dobrado – e perverso – da equação de ter que ser bonita e jovem, e ser jovem com poder: o duplo golpe do sexísmo e do “ageísmo”. Tudo junto. O que fazer? Oras, idas mais frequentes ao cabelereiro, ao dermatologista, e se munir de todo o arsenal estético: botox, produtos anti-aging, remédios, cirurgias, cremes (cada vez mais caros). Dietas, modismos, exercícios. De tudo um pouco. Ou muito. Muitas destas estratégias podem ser até  eficientes, algumas saudáveis, mas nunca serão suficientes: elas não param nem revertem o tempo. E ainda nos ludibriam com a máxima de que estética é sinônimo de saúde (nem sempre), e que a aparência juvenil é a (única) ‘saudável’. Combatamos, envelhecer não é adoecer, e ser idoso ou idosa não é ser doente. Mas também não sejamos hipócritas, a busca (e não a obsessão) pela fonte de juventude e beleza é fundamental para o auto-cuidado, embora não deveria ditar como a mulher se sente consigo mesma, e com seu próprio corpo. O problema é a vergonha de algo que não deveria ser vergonhoso, a redução da experiência de envelhecimento a uma experiência estética empobrecida, o que dá margem a discriminação, e a desvalorização do processo de envelhecimento, e do corpo feminino.

A obsessão da nossa sociedade com a aparência da mulher (e o Brasil é ótimo nisto) parece ser menos sobre beleza, e mais sobre obediência a um padrão externo, punitivo (e financeiramente rentável ao mercado). Explicamos. Quando nós mulheres concordamos com a busca incessante para  ‘permanecer’ jovens, nós concordamos com o nosso ‘desempoderamento’. Quando avaliamos uma mulher pela sua idade, reforçamos o ageísmo, o sexismo e o patriarquismo. As mulheres deveriam juntar forças contra o ageísmo, da forma como feministas se mobilizaram contra o sexismo nos anos 60 e 70, isto é, parar de negar o envelhecimento feminino, e aceitá-lo, acolhê-lo. Nada fácil. Basta abrir qualquer revista, olhar as redes sociais ou vitrines, e esta parecerá uma tarefa impossível e apenas idealista. Mas considerar a beleza do corpo pela transitoriedade da moda é restringir profundamente as diversas formas de beleza. Quanto mais ações as mulheres (e homens) tiverem em direção a acolher as transformações da passagem do tempo, mais fortes as mulheres (e homens) serão para lidar com o envelhecimento. E, afinal, não são essas mesmas mulheres que iniciaram o movimento feminista que hoje assumem orgulhosas os seus fios brancos e parecem iniciar um movimento (ainda um tanto tímido) de empoderamento da velhice?  

Gloria Steinem tem sido uma das figuras mais icônicas no movimento feminista americano. Mulher ativa, ativista e em constante produção, ao falar sobre seu processo de envelhecimento em uma entrevista à Oprah, afirmou que chegar aos 50 anos foi duro, por perceber que foi o fim de anos centrais da vida – ao que ela se referiu como os “anos de gênero” (gendered years), dos 13 aos 50. Porém na década seguinte, aos 60, ela percebeu uma mudança: sentiu-se liberada, além da “prisão feminina”, podia ser ela mesma. Na mesma linha, Isabella Rossellini já declarou que envelhecer traz liberdade. Talvez, possamos reunir forças e pensar em atitudes que promovam o combate a este ageísmo que recai de forma tão marcada à mulher. Mas como podemos promover esse empoderamento feminino? Sugerimos algumas idéias que podem ser úteis (em qualquer idade):

  1. Focar no que sabemos: tornar-se mais velhas nos enriquece, nos traz autenticidade, confiança, perspectiva, autoconsciência. As prioridades são mais claras e se perde menos tempo com certas “bobeiras” (que parecem fundamentais quando somos jovens). Para muitas mulheres é mais fácil lidar com as emoções. Seguindo a linha da Gloria Steinem, ser mais si mesmo,  preocupar-se menos com que os outros pensam (o que pode ser muito libertador).
  2. Olhar de forma mais generosa umas para as outras, e para nós mesmas: ao invés de olhar para o espelho e se perguntar, “que m. aconteceu aqui?”, que tal parar alguns minutos para lembrar de coisas que aconteceram ao longo da vida, e o quão importante e incrível muitas delas foram? Valorizar as próprias marcas é valorizar a nossa historia, e a nossa identidade. A atriz Frances McDormand – recém ganhadora do Oscar de melhor atriz – uma vez declarou que seu rosto é como um mapa, e sempre se recusou a cirurgias porque sentia que iriam apagar a sua história, as marcas do mapa.  

Assim, a experiência de envelhecimento poderia ser vivida como constante transformação e aprofundamento da vida. Cada vez mais ganham força grupos de mulheres unidas pela riqueza que se encontra em  compartilhar experiências e refletir sobre a experiência do feminino. E por que não incluir aqui também a experiência do envelhecimento? O envelhecimento nos permite transformarmo-nos, nos libertarmos de velhas prisões psíquicas, apropriarmo-nos da passagem do tempo e da memória enraizada em nossas células e nos permite por bem (e por mal) honrarmos o fato de termos vivido. Nem sempre esta e uma tarefa fácil, ou como diz Rita Lee: “envelhecer não e para maricas”. Que as mulheres possam em sua velhice se transformar de lagartas em mulheres-borboleta, e aflorar sem tantas cascas, sem tantos medos, com a beleza das imperfeições da sua idade e da sua história. Ser elas mesmas. Em um capítulo sobre a importância do empoderamento do corpo feminino para a transformação psíquica, Clarissa Pínkola Estés conluí que “Na sua capsula, a alma espia lá fora a misteriosa noite estrelada e se deslumbra”. Que sejamos um dia todas mulheres-borboleta.


*Luciana Mascarenhas Fonseca é psicóloga especialista em neuropsicologia e psico-gerontologia. Atualmente é doutoranda pelo Departamento de Psiquiatria da USP com período sanduíche na Universidade de Cambridge, Reino Unido.

*Sharon Sanz Simon é psicóloga com especialização em neuropsicologia e atuação na área do envelhecimento. É Doutora em Ciências pelo Departamento de PsiquiatriA da USP com período sanduíche na Universidade Harvard. Atualmente e pós-doutoranda na Universidade de Columbia, Nova York.


Referências

1. Working to Disarm Women’s Anti-Aging Demon (NYT) –
https://www.nytimes.com/2017/10/10/style/women-looks-ageism.html?_r=0
2. Clarissa Pínkola Estés. Mulheres que correm com lobos
3. The Allure Aging Survey – https://www.allure.com/gallery/the-allure-aging-survey
4. Isabella Rossellini on Living Well and Aging Gracefully –
https://www.thecut.com/2016/05/isabella-rossellini-lancome-interview.html
5. Rita Lee: “Envelhecer é uma loucura, não é para maricas” –
https://revistaquem.globo.com/Entrevista/noticia/2016/11/rita-lee-envelhecer-e-uma-loucura-nao-e-para-maricas.html
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