#AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br Um espaço para mulheres em movimento Wed, 15 Apr 2020 11:52:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Baronesa https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/28/baronesa/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/28/baronesa/#respond Thu, 28 Jun 2018 20:08:17 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/Andreia-01-320x213.jpeg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1491

Por Juliana Antunes

Belo Horizonte tem vários bairros com nome de mulher e a maioria deles nos leva para a periferia. Em 2008, quando me mudei do interior de Minas para a capital, recebi a seguinte instrução: os ônibus azuis, eu poderia pegar quase todos, mas deveria ter cuidado com os vermelhos, pois eles iam “pro outro lado da cidade”. Os anos foram se passando e o interesse de tornar a experiência dos ônibus vermelhos em filme se consolidou durante o meu trabalho de conclusão de curso (Cinema e Audiovisual – UNA).

 

Comecei a visitar os bairros procurando por mulheres que estivessem interessadas em participar de um filme usando um método de abordagem clássico: saí, junto com mais duas amigas (Marcela Santos e Giselle Ferreira) pregando cartazes nas ruas com os dizeres: procuram-se mulheres interessadas em fazer um filme. Resultado pífio, quase nenhum retorno, exceto por um cartaz colado ao lado de um salão de beleza. A partir daí, se formou um dispositivo: mulheres que trabalham e ou/frequentam salões de beleza e moram em bairros com nomes femininos. O “salão da Pâmela” se tornou o meu ponto de partida para o roteiro que se baseava no cotidiano do salão e da comunidade.

 

Em uma tarde no salão da Pâmela, Andreia (protagonista do filme) entrou, experimentou uma blusa, me fitou no espelho e saiu. Por intuição, comecei a procurar por ela – que não havia  concordado em fazer um filme a priori. E ela, depois me disse: chegou a se esconder debaixo de um carro pra não ser encontrada por mim.

 

Foi em Agosto de 2015 que houve uma virada. Estávamos filmando Pâmela, quando Andreia resolveu nos dar uma cena na qual ela fazia as unhas de uma cliente. Mostrei o material filmado para ela e afirmei: você é uma grande atriz. Andreia topou fazer o filme com a seguinte condição: a de que eu vivesse na favela, pois ela não poderia me dar todo o seu tempo e nem saber com antecedência quando poderia gravar.

 

Aluguei um barracão de 30m para morar sozinha e lá fiquei por quatro meses, com visitas semanais da equipe. A chegada à Vila Mariquinha não foi tranquila e a maioria das pessoas, sobretudo Andreia, pensavam que eu era uma agente policial infiltrada. No exato dia da minha mudança, uma guerra de gangues rivais se anunciou e mudou completamente os rumos do projeto: um filme sobre salões de beleza daria lugar à uma rotina áspera e entrincheirada. A nossa presença na favela e na casa da Andreia atraiu Negão e Leid, vizinho e cunhada, respectivamente, que entraram de uma maneira muito orgânica no projeto que foi filmado de uma maneira diferente da lógica tradicional aplicada ao mercado de cinema. Algumas cenas eram ensaiadas e gravadas várias vezes. Outras se davam pelo risco do real.

 

O fato de estarmos em uma equipe reduzida e majoritariamente feminina fez do nosso encontro um filme com mulheres na construção conjunta: na frente e atrás das câmeras – o que estabeleceu outros parâmetros de organização da equipe, de possibilidade de fazer cinema, pois não só a história se reconfigurou, mas a narrativa também acabou dando a ver essa invenção de lugar comum – que não eram nem da equipe, nem das atrizes: foi um lugar comum que inventamos e que implicou na invenção de uma relação.

 

O material bruto gerado dos meses de imersão era extenso. Foi aí que o realizador Affonso Uchoa (A vizinhança do Tigre e Arábia) se debruçou em mais 60 horas de um material irregular e complexo. Assistimos, juntos, todas as imagens a fim de encontrar um rumo para o filme, que, apesar de indicações de um roteiro prévio, não estava completamente definido. Meses de trabalho nos levaram a uma escolha de 15  horas de material bruto e indicavam caminhos de filmes possíveis. E foi neste momento que a montadora Rita Pestana entrou no projeto e somou forças ao filme que se deve muito ao trabalho de montagem.

 

E bem, sempre fica a pergunta: é documentário ou ficção? Pra mim, toda ficção tem muito de documentário e todo documentário, tem ficção. Costumo dizer que Baronesa é um filme de “não atrizes” feito por uma “não diretora” e uma “não

equipe”. Foi a primeira vez de todo mundo no cinema. Andreia e Leid são grandes atrizes, só não tiveram oportunidades na vida de se destacarem como tal, assim como a maioria mulheres da equipe não haviam tido oportunidade de trabalho no mercado de trabalho, pois estavam no começo de carreira de uma uma profissão que ainda opera em lógica ainda muito masculina.

 

Baronesa foi selecionado para mais de 50 festivais nacionais e internacionais. Premiado nos festivais de Tiradentes (Brasil), FID Marseille (França), Havana (Cuba), Mar del Plata (Argentina), Indie Lisboa (Portugal), Valdívia (Chile) e Ourense (Espanha), o filme está em cartaz pela SESSÃO VITRINE em várias salas de cinema pelo país. O maior desafio do cinema nacional é a distribuição e conseguir colocar o filme em cartaz é algo que nos deixa extremamente felizes. Para que Baronesa tenha um vida em cartaz, é preciso que as pessoas ocupem as salas e falem do filme para as amigas e amigos e postem nas redes sociais, pois um filme tão independente precisa do “boca a boca” para chegar às pessoas.


Juliana Antunes é cineasta

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“A denúncia contra um ex obsessivo que tentou destruir minha carreira e meu trabalho” por Panmela Castro https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/denuncia-panmela-castro/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/denuncia-panmela-castro/#respond Wed, 20 Jun 2018 18:55:23 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1480
Recuperação do mural feita por Panmela Castro em 19 de outubro de 2017.

Por Panmela Castro*

Há dez anos eu iniciei o projeto que hoje se chama Graffiti Pelo Fim da Violência Contra a Mulher e é realizado pela Rede NAMI. No projeto visitamos escolas e comunidades e aplicamos uma metodologia onde conversamos sobre a Lei Maria da Penha e em seguida pintamos um mural temático com os participantes. Logo no início das primeiras oficinas, escutando a facilitadora falar sobre a violência doméstica, eu identifiquei que eu vivenciava uma relação abusiva.

Namorava há algum tempo um rapaz que também era grafiteiro e que por nunca ter me violentado fisicamente, eu pensava ser um cara legal. Com o aprendizado das oficinas, entendi que a agressão física não era o único tipo de violência doméstica, mas que existem outras ações mais sutis que podem ser tão devastadoras quanto um tapa na cara. Eu percebi que tudo o que meu ex chamava de cuidado e proteção, na verdade era controle: um sentimento de posse como se eu fosse mais um dos objetos pertencentes a ele e que tinha o direito de controlar o destino.

Me lembro que eu nunca podia participar de projetos ou pintar com outras pessoas sem que ele estivesse por perto ou desse seu consentimento. Era muito ciumento e por várias vezes me constrangia me acusando de estar “olhando para outros caras”. Nesta época, minha carreira como artista se encontrava completamente estagnada por falta de soberania.

Com muita resistência da parte dele eu rompi o relacionamento. Ainda me lembro de minha madrinha ir atrás de sua mãe pedindo que ela conversasse com ele para me deixasse em paz.  Liberta, logo minha carreira ascendeu, mas volta e meia eu recebia mensagens anônimas negativas e murais meus apareciam riscados com xingamentos. Eu ficava pensando o porquê disso já que eu não possuía embates com pessoas que poderiam chegar a tal ponto de obsessão, a não ser, ele… Ainda alguns me alertavam de vez em outra, para o fato de ele desqualificar o meu trabalho de arte diante do círculo profissional da área. Como minha carreira crescia verticalmente, fui deixando isso tudo para lá, e ignorando, até que, um dia no mês de julho de 2017, eu criei um mural que foi totalmente danificado com letras de graffiti que formavam o nome do meu ex: sua assinatura. A mesma simbologia que ele usava para espalhar sua tag pela cidade; a mesma que eu conservava em arquivo, dezenas de fotos na qual ele aparecia fazendo. Sequencialmente, comecei a receber mensagens postadas em meu Instagram com uma certa constância. Nessas mensagens o público dos meus fãs, patrocinadores, clientes e seguidores em geral eram expostos à xingamentos, ironias, desqualificações do meu trabalho e até mesmo graves acusações de crimes como assassinatos.

Grafiti feito por Panmela em 8 de julho 2017.

Reuni todo este material e busquei ajuda no CIAM e na NUDEM, ambos sem sucesso. Lá me desencorajaram a ir adiante, alegando que tais ações não se enquadravam em violência doméstica. Mas lendo e relendo a Lei Maria da Penha durante esses dez anos de trabalho, ninguém poderia tirar de mim a consciência dos meus direitos.

Eu poderia dissertar aqui sobre a violência psicológica e moral na qual estava passando, mas prefiro ir ao ponto que mais me prejudica: a violência patrimonial que é descrita no Artigo 7o : “entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. Desde que comecei a ser indenizada por marcas que usaram sem autorização a imagem dos meus murais públicos em suas propagandas, entendi que um graffiti mesmo na rua é meu patrimônio intelectual, garantido pela Lei de Direitos Autorais.

Rasura feita pelo ex-namorado de Panmela em 10 de julho de 2017.

Ainda a Lei Maria da Penha garante vínculo trabalhista à vítimas de violência doméstica, pois entre muitos casos, os companheiros e ex companheiro procuram os trabalhos das mulheres a fim que estas sejam mandadas embora e assim passarem por dificuldades financeiras. No meu caso eu não tenho vínculo empregatício, mas danificar meus murais é uma forma de me anular no trabalho já que empresas me contratam para revitalizar espaços e garantir sua permanência sem pichações e outras intervenções e enfim, quem vai querer contratar uma grafiteira que tem suas paredes detonadas?

Para que o meu caso não fosse mais um deixado de lado pelos órgãos públicos, Marielle Franco se ofereceu para me ajudar e com o apoio da advogada do seu gabinete, consegui fazer um BO na delegacia da mulher do centro, receber uma medida protetiva de afastamento, ser atendida pelo Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) que é o órgão da Defensoria Pública e ter meu processo aberto.

Hoje no Brasil estamos passando por um processo de perda de direitos e desmonte dos equipamentos que a Lei Maria da Penha nos garantia, e isso se apresentou ao receber a notícia de que o Juiz considerou que os fatos narrados por mim não sugerem risco à minha integridade psicofísica e que seria necessário perícias e provas a serem produzidas em ação civil. Uma das coisas que aprendi com as oficinas do meu projeto é que a violência doméstica acontece sem testemunhas e que um homem não pode decidir sobre como eu me sinto. Junto à minha defensora pública, pedi a reconsideração do processo. Refiz o meu mural e nele coloquei uma mensagem sobre as mulheres denunciarem e irem atrás de seus direitos juntamente com o número do ligue 180 que é canal direto de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população de mulheres em todo o país (a ligação é gratuita) e a partir disso recebi a seguinte mensagem do meu ex: “A Pessoa não precisa se identificar para rasurar essa bosta de grafite. É só jogar uma lata de tinta e eu quero ver vc usar essa merda de medida protetiva de bosta!”

Marielle foi assassinada e eu fiquei orfã de alguém que acreditou na gravidade do que estava acontecendo comigo.

No mês passado aconteceu um festival de graffiti no Rio, e o nome dele estava na lista dos artistas participantes. Comuniquei a produção que eles estavam se associando a um homem agressor de mulher. Logo o festival me comunicou o desejo de afastá-lo das atividades, mas retornando em seguida explicando que por uma questão contratual com um dos patrocinadores, não poderiam fazê-lo. Este patrocinador é uma marca de tinta que apoia o trabalho do meu ex agressor. Eu fico pensando, como uma cara que faz o que faz com as mulheres pode ser usado como exemplo para toda uma geração de novos artistas que irão crescer achando que violência contra mulher é normal? Como uma marca pode apoiar isso?

Cheguei a conclusão do quanto é importante que meu processo não seja mais um arquivado, pois sem esta condenação, apesar dos dois prêmios internacionais de direitos humanos que já recebi pelo meu trabalho com a Lei Maria da Penha e das diversas listas na mídia que ressaltam a minha relevância nesta luta, ainda assim eu poderia ser acusada de mentirosa, louca, e todos os demais adjetivos usados para desqualificar as mulheres quando elas fazem nada mais do que denunciarem o machismo, a violência e irem atrás de seus direitos básicos, como este de não ser agredida por uma pessoa com quem um dia elas dividiram a vida.

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*Panmela Castro é artista, feminista, grafiteira.

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Paz e segurança para as mulheres latino-americanas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/19/paz-e-seguranca-para-as-mulheres-latino-americanas/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/19/paz-e-seguranca-para-as-mulheres-latino-americanas/#respond Tue, 19 Jun 2018 23:53:17 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1467

Por Maiara Folly, Luísa Lobato, Carol Viviana Porto,  Mariana Gomes da Rocha, Ana Paula Pellegrino e Renata Giannini.

Marielle cresceu na favela. Era mulher, negra, defensora dos direitos humanos. Com mais de 46 mil eleitores, tornou-se a quinta vereadora mais votada do Rio. Aos 39 anos, foi brutalmente assassinadaNorma vivia em El Salvador quando foi sequestrada por uma gangue. Após ter sido estuprada por cada um dos quatro integrantes, foi jogada em uma lata de lixo. Maria enfrentou 5 mil quilômetros para cruzar a fronteira da Venezuela com Roraima e fugir da miséria que afeta seu país de origem. Ao chegar ao Brasil, foi esfaqueada e perdeu parte dos movimentos.

 

Marielle, Norma e Maria sofreram as consequências de viver na região mais violenta do mundo para as mulheres. A predominância histórica da cultura machista, somada aos altos índices de violência e desigualdade socioeconômica contribuem para agravar esse quadro. Entre os 25 países do mundo com as taxas mais elevadas de feminicídio, 14 estão na América Latina e no Caribe, que também concentram a maior taxa do planeta de violência sexual contra as mulheres fora de um relacionamento e a segunda maior por parte do parceiro atual ou anterior.

 

Embora 16 países da região tenham aprovado leis que tipificam o feminicídio e desenvolvido programas e políticas para as mulheres, os esforços são insuficientes para proteger as cidadãs latino-americanas e caribenhas. Mesmo quando os abusos são reportados, os programas nacionais de proteção são escassos, ou possuem baixo investimento público e, consequentemente, não conseguem garantir a integridade física e/ou psicológica das vítimas.

 

Para contornar o quadro de impunidade e violência generalizada contra mulheres e meninas ao redor do mundo, desde o ano 2000, a ONU tem promovido a agenda sobre Mulheres, Paz e Segurança (MPS), que reconhece as mulheres não apenas como vítimas mas incentiva seu potencial como construtoras da paz.

 

Apesar dos epidêmicos índices de violência que afetam as mulheres e meninas da região, o envolvimento de governos latino-americanos com a agenda MPS continua limitado e, quando existente, focado na promoção de uma abordagem de gênero nas políticas de defesa e de relações exteriores. Como consequência, a agenda pouco reflete os desafios e ameaças confrontados por mulheres dentro de seus respectivos países.

 

É importante que os governos e a sociedade civil de países latino-americanos se engajem mais ativamente com a agenda MPS. Isso permitirá, por exemplo, promover a maior participação de mulheres nas forças policiais e no sistema de justiça criminal desses países, além da inclusão de aspectos de gênero em políticas de segurança pública, em especial aquelas voltadas para a redução da violência letal.

 

A agenda Mulheres, Paz e Segurança pode ajudar a reduzir as estruturas de desigualdade que agravam o quadro de violência contra mulheres na região. Além de fortalecer uma visão de impunidade zero, pode ter papel fundamental no fomento à participação das próprias mulheres na criação de soluções para dar fim ao ciclo violento que as afeta diariamente. Assim, a consolidação dessa agenda pode representar um importante passo para que não precisemos voltar a perguntar: Quantas mais vão precisar morrer para essa guerra acabar?

 

Marielle, Norma, Maria, presentes.

 


Maiara Folly, Luísa Lobato, Carol Viviana Porto,  Mariana Gomes da Rocha, Ana Paula Pellegrino e Renata Giannini são pesquisadoras do Instituto Igarapé.

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#ChegaDeFiuFiu: uma campanha, um filme, um aprendizado coletivo https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/#respond Fri, 08 Jun 2018 18:26:54 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1444

Por Juliana de Faria, Amanda Kamancheck e Fernanda Frazão

Uma das consequências mais tristes do assédio sexual é a solidão que ele traz. Não queremos ser inocentes: é claro que os traumas psicológicos e as dores físicas decorrentes de uma violência podem ser duradouros, até eternos. Mas a culpabilização da vítima é padrão tão arraigado no processo que leva até a própria mulher a se culpar pelo que sofreu. “Foi a minha roupa? O horário que saí de casa? O caminho pelo qual escolhi passar?” O assediador nos violenta e leva consigo parte da nossa autonomia, da nossa história, pois é difícil falar sobre o ocorrido quando acreditamos que o que aconteceu foi derivado de nossas escolhas.

A Chega de Fiu Fiu, que surgiu em 2013 como a primeira campanha da ong Think Olga, tinha como objetivo denunciar o assédio sexual, principalmente em locais públicos. Aquilo que por anos foi entendido como algo trivial, “parte do jogo de ser homem” ou até mesmo uma brincadeira, não seria mais tolerado. Era preciso mostrar que o que a sociedade normalizava, estava machucando, humilhando e amedrontando as mulheres. E um efeito não mapeado da ação foi justamente o combustível para que ela tivesse força para durar até hoje: unir vítimas ao redor de suas dores, antigas e novas. Falar sobre elas não as eliminava, mas certamente extinguiu a solidão que o silêncio e a vergonha conservavam. Aprendemos que somos mulheres diferentes, mas nossas experiências violentas dialogam entre si. Não por uma opção de vestuário ou caminhar na rua, mas sobretudo por enfrentar a vida como mulheres.

Aprendemos também que a coragem é viral. Basta a denúncia de uma mulher para que outras a sigam – como no jogo de dominó em que a primeira peça derrubada leva consigo todas as outras. Foi essa força coletiva que nos ajudou, lá atrás, a dar mais um passo na campanha. Queríamos produzir um documentário sobre o tema e, por meio de um financiamento coletivo, conseguimos o apoio de mais de 1200 pessoas que igualmente acreditavam no poder do audiovisual como ferramenta de educação social.

A partir da pergunta “a cidade tem um gênero?”, fomos mergulhando em uma série de camadas que nos mostram por que as cidades são inseguras para as mulheres. Percorremos os principais obstáculos ao direito à cidade, desde a ausência da perspectiva de gênero no planejamento urbano, à má qualidade dos serviços de atendimento às vítimas de violência e à escassez de um debate aberto sobre o tema nas escolas.

A fim de demonstrar por que o espaço público não pertence às mulheres, trouxemos para a narrativa a desigualdade de poder entre homens e mulheres no uso desse espaço. Para isso, utilizamos estratégias como diários feitos com celular, onde nós e as personagens catalogávamos assédios do cotidiano; um experimento com um óculos com uma microcâmera, a fim de registrar olhares e falas dos autores da violência; entrevistas diretas com especialistas no tema; grupos focais com os homens, para debater masculinidades; e, mais importante, a história de 3 personagens: Rosa Luz, uma mulher trans, negra e artista visual moradora de Brasília; Raquel Carvalho, manicure e estudante de enfermagem, negra, de Salvador; e Teresa Chaves, professora do Ensino Médio e cicloativista, de São Paulo.

Priorizamos na escolha das personagens não somente diferentes regiões do país, mas dialogar com as mulheres mais vulneráveis, aquelas às quais as políticas não chegam, que são as mulheres negras, pobres, e as trans. Embora as mulheres negras já circulem há muito mais tempo nos espaços públicos, dado que sempre trabalharam como operárias – nas casas de outras pessoas por exemplo –, a elas o direito à cidade é ainda mais restrito. O acesso ao transporte público e à mobilidade como um todo, à moradia, à qualidade de vida e ao lazer são ainda mais limitados. A violência aí aparece de forma brutal e latente, não somente na restrição aos direitos, mas também no assédio que se mostra ainda mais violento e objetificador.

Trazer a força da campanha Chega de Fiu Fiu para um filme foi um esforço imenso. Envolveu reviver violências e registrá-las. Mas, nossa grande preocupação sempre foi mostrar a agência das mulheres, sua força e capacidade de transformação de um cenário hostil e opressor. Queríamos mostrar como elas estão ocupando as cidades, a partir de uma perspectiva feminista, seja na internet ou nas ruas. E, com isso, trazer ideias sobre como construir juntas cidades para as mulheres. Já não estamos mais sozinhas.

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* Juliana de Faria é fundadora da ONG Think Olga e criadora da campanha Chega de Fiu Fiu; Amanda Kamancheck Lemos e Fernanda Frazão assinam a direção do documentário homônimo, em cartaz nos cinemas

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#NãoVamosMaisTaparOsOlhos: produtoras brasileiras firmam pacto anti-assédio sexual no setor https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/04/09/nao-vamos-mais-tapar-os-olhos/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/04/09/nao-vamos-mais-tapar-os-olhos/#respond Mon, 09 Apr 2018 11:47:38 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1389

por Antonia Pellegrino*

Há um ano, a hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas moveu o Brasil. Quatro dias antes, este blog publicou o texto denúncia da figurinista Su Tonani: “José Mayer me assediou“. Depois de ter percorrido as instâncias institucionais da empresa onde trabalhava denunciando abusos e em busca de justiça, Tonani cansou de não ser ouvida. E decidiu falar publicamente sobre a violência que sofrera ao longo de 8 meses em seu ambiente de trabalho.

Espontaneamente, as funcionárias da mesma empresa se articularam numa gigantesca e acolhedora retaguarda, iniciando o movimento #MexeuComUmaMexeuComTodas, que inundou a rede. O resultado foram quatro milhões de menções e o marco histórico desta ser maior hashtag no combate à violência contra a mulher nas redes sociais virtuais.

A partir daí, este blog passou a receber por inbox muitas denúncias de violência, agressão, alienação parental, assédio etc, mas não as publicou por duas razões: falta de estrutura para checagem; e a missão de incidir ou pautar nos debates da sociedade (nosso DNA nunca foi ser uma plataforma de escracho). Acreditamos que o escracho público é um ato extremo e nocivo, o último recurso quando a institucionalidade é claramente ineficiente.

Até que, em dezembro de 2017, já indo dormir, recebi um telefonema de uma mulher que eu não conhecia, fazendo uma denuncia que me tirou o sono. Diferentemente de todas as mulheres que nos procuram, Silvana Moura não era a vítima. E sim a figurinista-chefe da vítima de um suposto estupro – ainda em investigação –  em um set de filmagem, pelo ator Thogun.

Conversamos pelo telefone e percebi: eu estava diante de uma mulher se responsabilizando por outra. Nada trivial no país da pichação “não fui eu”. Onde é preferível ignorar a ideia de responsabilidade coletiva, para seguir ignorando confortavelmente os passivos das nossas histórias familiares, da nossa sociedade – ao mesmo tempo que reagimos como leões acuados ante a discussão de taxação sobre herança. O Brasil é o país de baixo capital cívico, onde alta é desconfiança entre as pessoa conhecidas, desconhecidas ou da mesma equipe. E o desconhecimento da lei é proporcional ao seu descumprimento. A lei do trabalho diz que, quando um caso de violência ocorre no ambiente de trabalho, aquilo não diz respeito somente à vítima e ao agressor – é responsabilidade de todos os agentes da relação de trabalho, sobretudo dos superiores hierárquicos, os quais, à letra da Lei, quando agressores, ou seus cúmplices, são passíveis de enquadramento criminoso.

Silvana me fez um convite para mais uma quebra de silêncio e um escracho público. Mas embora o produtor americano Harvey Weinstein já tivesse caído, nós sabemos como as denúncias no Brasil acabam: com as vítimas sendo desacreditadas, humilhadas, retaliadas e perdendo seus empregos. A estrutura do machismo brasileiro é tão radical que, dificilmente conseguiríamos (conseguiremos), um efeito dominó como o que aconteceu internacionalmente.

É preciso mudar a estrutura. E qual ferramenta eu tenho? A mesma que tantas de nós:  minha palavra e minhas redes – sociais virtuais e de afetos. Gravei um vídeo tosco, postei e envie para amigas e amigos produtores, com a seguinte provocação: vamos criar um pacto de responsabilidade anti-assédio no audiovisual.

Os produtores Rodrigo Teixeira, Beto Grauss, da Pródigo Filmes, e Renata Brandão, da Conspiração, acolheram a iniciativa imediatamente. Marcamos um encontro para janeiro. E, no primeiro dia do ano, as americanas lançaram o Time’s Up. Uma semana depois, no Golden Globe, atrizes e ativistas vestiram preto e Oprah Winfrey anunciou o fim da era do assédio.

No Brasil, essa hora também chegou – pelo menos no audiovisual independente. Não é uma canetada de política pública, capaz de mudar a vida de milhões de pessoas, mas é o primeiro passo concreto para mudarmos uma cultura dentro de um setor fundamental da economia criativa. E, se conseguirmos, a um tempo, nos mover e avançar, seremos exemplo. Essa realização foi possível graças aos esforços institucionais da APRO (Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais), com apoio do advogado Caio Mariano, e a força das incríveis Renata Brandão e Marianna Souza, entre tantas e tantos.

Daqui em diante, todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores do audiovisual independente decidimos que não vamos mais tapar os olhos. A CARTILHA-PACTO DE RESPONSABILIDADE ANTI-ASSÉDIO SEXUAL NO SETOR marca o começo de um novo tempo.

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*Antonia Pellegrino é editora deste blog, roteirista de cinema e tv, escritora e feminista.

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