#AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br Um espaço para mulheres em movimento Wed, 15 Apr 2020 11:52:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As masmorras femininas e o novo coronavírus https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2020/04/15/as-masmorras-femininas-e-o-novo-coronavirus/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2020/04/15/as-masmorras-femininas-e-o-novo-coronavirus/#respond Wed, 15 Apr 2020 11:52:04 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1876 Por Natália Damázio*

Em tempos normais, em um país racista e masculinista como o nosso, os sistemas de justiça criminal e de aprisionamento transformaram-se em um dos principais dispositivos de manutenção das desigualdades e de contenção de qualquer movimento que conteste a lógica colonial ainda regente. As mulheres que estão presas sofrem um impacto não dimensionável em termos de vulnerabilização à imposição das violências advindas de sistemas opressivos. 

O país, nos últimos anos, já passava por este processo de ampliação desproporcional do encarceramento de mulheres, que em sua maioria são negras. Prende-se por crimes de cunho econômico (roubo e furto) e tráfico. Destaca-se que ambos em baixas quantidades: tanto drogas em pouca quantidade, facilmente interpretadas como destinadas ao uso, a depender do território habitado ou grupo social/racial pertencente; quanto o roubo e furto de bens de pouca valia, que simplesmente poderia gerar a aplicação do princípio da insignificância, o que afastaria a ilicitude de seu cometimento. 

Assim, não prender mulheres não seria uma tarefa difícil, especialmente contando que 74% são mães, segundo o Infopen Mulheres (2018), número subdimensionado já que os dados oficiais dão conta de apenas 7% das mulheres presas. Parte delas, com filhos de até 12 anos ou com deficiência, que deveriam, como arrimo familiar que são, beneficiarem-se do Marco da Primeira Infância, caso presas provisórias – que são 45% das presas brasileiras. Apesar dessa matemática simples, ainda assim, mulheres tiveram seu índice de aprisionamento aumentado em 700% nos últimos 16 anos. Por quê?

Não pode deixar de ser dito: as mulheres presas são, em sua esmagadora maioria, negras, e prisão no Brasil não é utilizada como método de resolução de conflitividade social, mas sim como metodologia central da necropolítica genocida do Estado. A epidemia de COVID-19, assim, torna-se a criação da tempestade perfeita para os intentos de um Estado que repete suas mesmas violências há mais de 500 anos, mesmo que com novas roupagens – às vezes nem tão novas. 

A Organização Mundial de Saúde é clara: medida de proteção à saúde de presas e presos é redução drástica da população prisional de forma emergencial para diminuição de superlotação, dando ênfase à liberação de grupos de risco. O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Recomendação 62, já nos deu indicativos de como fazê-lo.

Não obstante, o discurso do Departamento Penitenciário Nacional segue o mesmo: “isolamento é a solução, soltar demais é perigoso”. Se valer exclusivamente de reduzir o trânsito dentro da prisão como única forma de lidar com a pandemia de COVID-19, sem nenhuma outra estratégia agregada, é panaceia. Falar de segurança como eixo central do debate é desumano. Essa “estratégia” não nos levará a nenhum lugar além da morte em massa de pessoas presas, sem que sejamos capazes sequer da construção de memória de mais uma das muitas barbáries de nossa história. 

Entendamos que se a lógica é distanciamento social, as presas no Rio de Janeiro hoje encontram-se confinadas em celas superlotadas, sem locais sequer para dormir de modo adequado, como na Penitenciária Talavera Bruce, onde dividem um cubículo destinado para uma pessoa, trancadas por uma porta de “chapão” (madeira maciça, sem ventilação para além de uma pequena janela no alto da cela). 

Se é necessária a higiene frequente, elas estão com acesso limitado à água, que cai, no máximo, duas vezes ao dia, como no Instituto Penal Ismael Sirieiro, cujas denúncias de falta de água são frequentes. Se a demanda é por álcool gel e sabonetes, elas não acessam itens básicos de higiene necessários a toda população prisional feminina. Tais itens não são distribuídos pelo Estado e normalmente dependem de custódia (entrega de itens por familiares), que ocorrem em menor quantidade para mulheres devido ao alto índice de abandono familiar que sofrem após serem presas. 

Busca ativa de casos sintomáticos dentro das unidades? Um fluxo estruturado com a rede pública extramuros, caso o pior aconteça? Não se tem notícia de nenhuma estruturação factual desses dentro dos presídios fluminenses. Da SEAP só se ouve “não temos nenhum caso confirmado”, sem que sequer testes estejam disponíveis às presas e aos presos. Lembremos: o sistema prisional carioca tem um dos piores índices de cobertura médica do país, tendo colapsado muito antes da pandemia, e o acesso à rede pública extramuros é inexistente. De todos os óbitos nas prisões fluminenses, somente 0.7% morreram fora das prisões entre os anos de 2016 e de 2017.

Nem após a morte a dignidade mínima dessas mulheres está garantida. Em uma SEAP sem testes, sem médicos, sem equipes de saúde, sem ambulatórios equipados, dependendo exclusivamente de um pronto-socorro geral, que mais se assemelha a uma UPA, após a Resolução SEAP/SEPOL nº 10 de 2020, nem chegar ao IML as presas chegarão. Declarações de óbito, contrariando todos os padrões internacionais mínimos, serão feitos pela própria SEAP. Pela Portaria Conjunta nº 1 do CNJ/MS, serão enterradas com poucas chances de possuírem uma declaração feita de modo adequado, podendo ser cremadas ou enterradas sem anuência familiar, simplesmente desaparecidas. Sem serem identificadas pelo seu próprio nome, por todas as brechas ali abertas, agravadas pelo fato de que, no Rio de Janeiro, 6,9% das pessoas mortas no sistema prisional entre 2016-2017 foram enterradas sem identificação civil. 

Ainda são poucas as regras internacionais disponíveis para o tratamento adequado de mulheres presas desde a pandemia de COVID-19, mas soluções existem, como as recomendações feitas pela organização WOLA e estratégias de soltura como as propostas pelo CNJ. É possível não ampliar ainda mais a política de genocídio de mulheres negras e presas em curso, garantindo que não vivam a experiência catastrófica de estarem em um espaço de privação de liberdade durante a pandemia. Mas não podemos esperar o amanhã, o desencarceramento feminino em massa é medida de sobrevivência, humanitária, para mais de 42 mil mulheres presas. E deve ser agora, sob pena de, mais uma vez, nem memória termos para não repetir nossos erros do passado, sempre tão presentes.

*Natália Damázio é Membra do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ), mestre em Teoria e Filosofia do Direito na UERJ, Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional na PUC-Rio.

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Um governo contra as mulheres https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2020/03/08/um-governo-contra-as-mulheres/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2020/03/08/um-governo-contra-as-mulheres/#respond Sun, 08 Mar 2020 14:32:08 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1872 Por Jandira Feghali*

São vários os temas que repercutem diretamente na vida das mulheres e que deveriam ser alvo de políticas públicas para reverter o quadro de desigualdades. Para cada um deles, diante de sua complexidade, a resposta do atual governo migra da omissão a propostas simplórias e sem qualquer possibilidade de êxito.

Há denúncias de abuso sexual? Vamos levar uma fábrica de calcinhas para salvar as meninas! É preciso combater a gravidez precoce? Abstinência é a solução! Queremos proteger as mulheres da violência? Vamos zerar os repasses ao programa de combate à violência contra a mulher! As mulheres sofrem mais com o desemprego? Vamos incentivar a informalidade e negar-lhes a aposentadoria!

Mulheres jornalistas investigam ilegalidades dos ocupantes do Planalto e recebem de volta assédio moral do mandatário maior da República, o Sr. Presidente, autorizando a prática misógina e violenta!

As respostas dadas, por absurdas que pareçam, expressam inaptidão, descompromisso e preconceito. Demonstram a que veio este governo. E, certamente, não foi para avançar nas políticas capazes de reduzir o número de obstáculos que as mulheres enfrentam todos os dias pelo simples fato de serem mulheres.

As brasileiras querem direitos iguais em todas as dimensões da vida. Garantia de proteção à saúde, acesso à educação e cultura, teto, terra, trabalho, uma vida livre da violência. Não somente para elas, mas para todos. São direitos básicos que estão em risco. Neste mês em que comemoramos o Dia Internacional da Mulher é preciso ter clareza desses riscos e ampliar o debate para impedir retrocessos. 

Desconhecer a realidade não é parte da solução. E a realidade é dura. Em 2019, houve um crescimento de 4% dos feminicídios em comparação aos dois anos anteriores. Dados do IBGE para o 4º trimestre de 2019 indicam que a taxa de desemprego entre mulheres foi de 13,1%, a dos homens foi de 9,2%. As famílias chefiadas por mulheres mais que dobraram em 15 anos, já são mais de 30 milhões responsáveis pelo sustento da casa e sem acesso às mesmas oportunidades de emprego e renda. 

Enquanto isso, o orçamento na Secretaria da Mulher teve uma redução de quase 80% entre 2015 e 2019. Ou seja, quanto mais necessário e urgente implementar políticas públicas, menos recursos para a pasta responsável por elas. O orçamento da Casa da Mulher Brasileira é o caso mais emblemático deste descompromisso. Em 2015, foram destinados R$ 79 milhões para este espaço que deveria garantir apoio no enfrentamento da violência, o empoderamento da mulher e sua autonomia econômica. Em 2019, este valor caiu para R$ 13 milhões! Sem orçamento compatível para o enorme desafio, o governo se utiliza de propostas vazias e atrasadas que jogam para a sociedade a responsabilidade de resolver o problema, como aconteceu com a temerosa campanha de abstinência.  

Março é mês de luta! É quando nossas vozes devem se elevar ainda mais em defesa da democracia e da igualdade. Dois substantivos femininos que, fortalecidos, vencerão um governo contra as mulheres!

*Jandira Feghali é deputada federal (PCdoB/RJ) e foi relatora da Lei Maria da Penha em 2006.

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Violência contra a mulher na América Latina: risco e dados reais https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2020/02/11/violencia-contra-a-mulher-na-america-latina-risco-e-dados-reais/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2020/02/11/violencia-contra-a-mulher-na-america-latina-risco-e-dados-reais/#respond Tue, 11 Feb 2020 11:42:20 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/image1-320x213.png https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1869 Por Katherine Aguirre*

A dimensão da violência contra as mulheres é impressionante: de 2000 a 2017, mais de 140 mil foram assassinadas no Brasil, Colômbia e México. Isso representa um aumento de 131% durante esse período. Nos três países, sabemos que o risco para as mulheres está em casa, que os agressores são conhecidos, que há uma forte presença do uso de violência física direta e que o começo desse ciclo, que geralmente acontece nos casos de violência psicológica, tem muitas vezes sua relevância negligenciada.

O Feminicídio, um indicador que dá conta dos assassinatos de mulheres pelo fato de serem mulheres, é a expressão mais extrema dessa violência. Nos três países, esse indicador tem aumentado, passando de 411 em 2015 a 880 em 2018 no México e de 139 a 673 na Colômbia no mesmo período. No Brasil, os dados de feminicídio aumentaram em 12% de 2017 a 2018 (com 1206 mortes). Sem dúvida, é preciso considerar que o aumento dos registros não necessariamente significa o aumento da violência. Cada vez mais, aprimora-se o registro do assassinato de mulheres como feminicídios e não como homicídios, o que impacta o aumento dessa variável.

Outras fontes de informação podem mostrar de maneira mais precisa formas de violência menos visíveis, com as não letais, mas que têm alto impacto na vida das mulheres. Desde 2012, mais de 2 milhões de mulheres foram atendidas nos sistemas de saúde do Brasil, México e Colômbia por causas relacionadas com a violência. Nos três países, o registro tem crescido.  A violência psicológica, por exemplo, tende a ser menosprezada e costuma ser o primeiro indício de ciclos de violências contra mulheres. Essa violência é prevista em lei, mas nota-se que esses tipos de casos são de difícil registro. Muitas vezes, até mesmo a vítima não se percebe em uma situação de violência, ou a considera menos grave e não a reporta.

Ainda assim, a violência psicológica é bastante notificada, o que pode contrariar o, “ainda” senso comum, de que essas denúncias não ocorrem ou ocorrem na menor parte dos casos. Pelos dados levantados da saúde nos três países, entre os anos de 2012 a 2017, foram registrados quase 659 mil casos, ou seja, 34% de todos os casos registrados na saúde foram de violência contra a mulher. O México é o país que possui maiores registros entre os três, somando mais de 50%; o Brasil tem 45% dos registros e Colômbia apenas 5%. A título de comparação, observando as taxas de violência psicológica nesses locais, nota-se que, em 2017, o México apresentava taxa de 122 por 100 mil de mulheres; no Brasil, a taxa foi de 52 e na Colômbia,  de 25.

Os dados do México são elaborados com base nos registros municipais da segurança, pelos quais não é possível saber qual o sexo da vítima. O Brasil é o país que possui o maior registro nos órgãos de segurança. Fazendo uma análise da diferença desse tipo de violência por país, enquanto a violência psicológica no México corresponde a 57% dos registros da saúde, na Colômbia, esse tipo de violência corresponde apenas a 12% dos casos nesse sistema. Existe uma boa diferença entre os casos que chegam (ou são atendidos/considerados) nos órgãos da saúde nos dois países. No Brasil, a violência psicológica concentra 27% dos casos. A distribuição de casos por ano nos três países mostra que os registros na Colômbia vêm caindo, enquanto no Brasil dobraram e, no México, triplicaram.

É evidente que nos últimos anos se fala muito mais abertamente sobre a violência contra a mulher. Todos os dias, vemos desde depoimentos individuais, que chegam a se converter em iniciativas de denúncia coletiva, a manifestações públicas de protesto. Este crescimento pode estar associado, em primeiro lugar, aos espaços de reflexão e debate abertos por décadas de ativismo de mulheres no mundo e na região. Certamente, também há implicações relativas à melhoria da informação produzida para medir os riscos aí relacionados. São dados que mostram que as diversas manifestações dessa forma de violência estão se expandindo na região.

A disponibilidade dessas informações permite demonstrar que a violência contra as mulheres não é apenas demonstrada pela violência física, levando ao homicídio e ao feminicídio, mas também faz parte de uma cadeia dolorosa e silenciosa que inclui agressão psicológica, moral e econômica.

Para ajudar a entender a escala do problema, o Instituto Igarapé lançou a plataforma de dados e informações EVA – Evidências sobre violências e alternativas para as mulheres e meninas, no México, Colômbia e Brasil. Seu objetivo é identificar padrões de vitimização das mulheres e contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas para prevenir, reduzir e eliminar a violência contra elas. São apresentados no site dados sobre diversas manifestações de violência, avanços nas regulamentações nacionais e regionais e uma análise exploratória de iniciativas implementadas nos três países.

Os dados são e insuficientes e de má qualidade (Reprodução)

Mesmo com fontes oficiais, é difícil entender a real dimensão e as características da violência contra as mulheres na região. As formas de violência que as mulheres mais sofrem são subnotificadas, particularmente as formas de violência não física. Há uma grande ausência de padronização dos dados, dificultando a análise comparativa entre países e até estados dentro do país.

Em muitos casos, os registros são mal feitos ou incompletos, faltam dados particularmente cruciais para uma melhor compreensão dos padrões de vitimização. Da mesma forma, as fontes de informação não são confiáveis, os dados são escassos, incompletos e desatualizados.

EVA pretende dar um passo na coleta e apresentação de dados oficiais relativos à violência contra a mulher. As informações estão disponíveis para investigação e monitoramento por autoridades públicas que devem se preocupar com as deficiências de dados existentes.

*Katherine Aguirre é pesquisadora do Instituto Igarapé. EVA é uma produção do Instituto Igarapé com o apoio da Uber.

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A favela fala: militarização e censura em tempos ‘democráticos’ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/12/24/a-favela-fala-militarizacao-e-censura-em-tempos-democraticos/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/12/24/a-favela-fala-militarizacao-e-censura-em-tempos-democraticos/#respond Tue, 24 Dec 2019 17:13:44 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/GIZELE-320x213.jpeg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1859 Por Gizele Martins*

O livro “Militarização e censura: A luta por liberdade de expressão na Favela da Maré” é um registro de parte das violações que nós, moradores do Conjunto de Favelas da Maré, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, sofremos durante o período de 2014 a 2015, época em que o Exército invadiu a favela para garantir a realização da Copa do Mundo. 

A Maré fica em um local estratégico da cidade do Rio e é cercada por três vias expressas: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela, além de estar próxima ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Pelas nossas ruas, nas mais de 16 favelas que compõem todo o conjunto, havia tanques de guerra circulando que passavam quebrando nossas calçadas, arrebentando nossos encanamentos e, em alguns casos, até passando por cima de pessoas, de acordo com relatos. 

As ruas da favela e a vida favelada foram brutalmente militarizadas pelos governantes naquele recente período dito democrático. Nós sobrevivemos 17 meses sob a Garantia de Lei e Ordem (GLO), lei utilizada durante o regime de exceção da Ditadura Civil-Militar no Brasil.

Convivíamos com toque de recolher, fichamentos, prisões, invasões às casas, além da proibição de qualquer tipo de atividade na rua, fosse cultural, religiosa ou comunitária. Além disso, censuravam os comunicadores. A prática da revista aos celulares era comum e invadiam os locais da comunicação comunitária, ameaçando, inclusive, alguns dos comunicadores por apenas relatarem o que eles e toda a favela estavam vivendo naquele período.

E o silêncio na favela – algo que não é normal – era interrompido pelo som de tiros, tiros e mais tiros que quebravam toda a nossa rotina de vida, de trabalho, de estudos, de ida às escolas, médicos etc. Era uma forma brutal de controle e que nós, comunicadores e comunicadoras, tínhamos como meta denunciar, relatar, questionar e fazer com que aqueles diversos tipos de violações saíssem dos muros visíveis e invisíveis da favela. 

Ao falar e tentar reportar tais fatos para o mundo, fomos ameaçados, procurados e expostos pelas mídias comerciais. Alguns comunicadores tiveram que sair de suas casas, outros desistiram de escrever, de relatar, de filmar e de fotografar. Outros foram detidos e levados nos jipes do Exército para o quartel, para servirem de exemplo. 

A partir de tantas intimidações, tantos desgastes, medos e censuras, muitos dos comunicadores começaram a se autocensurar. O que passou a ser também uma das formas de proteção para não sofrerem mais. A autocensura fazia com que alguns não tivessem mais coragem de estar em um meio comunitário. Outros saíram das mídias comunitárias e outros nem escrever ou circular nas ruas da Maré queriam mais.

O livro trata, em formato de relatos, os anos difíceis de sobrevivência na favela, na vida e na comunicação comunitária. O desafio é dar visibilidade à situação que passamos e também afirmar que não queremos mais que outros comunicadores de favelas, quilombo, aldeias indígenas, do campo ou da cidade passem por isso. É preciso mostrar, reorganizar, cobrar medidas e justiça contra o silenciamento de comunicadores comunitários. São eles que fazem a notícia popular e a nossa luta saírem dos muros que querem que sejam invisíveis. A favela vai falar!

 

*Gizele Martins é mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (Uerj-Febf). Formada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Por anos foi repórter e jornalista responsável do jornal O Cidadão, meio comunitário que circula há décadas no Conjunto de Favelas da Maré, Rio de Janeir

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Uma noite de 1982: uma cena de agressão da masculinidade tóxica https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/12/11/uma-noite-de-1982-uma-cena-de-agressao-da-masculinidade-toxica/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/12/11/uma-noite-de-1982-uma-cena-de-agressao-da-masculinidade-toxica/#respond Wed, 11 Dec 2019 11:04:08 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/AEQSE-Sharks-96-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1855 Por Hildete Pereira*

No início dos anos oitenta o regime militar agonizava no Brasil e seguindo o roteiro do mago Gal.Golbery, construía-se lentamente a passagem para uma sociedade mais democrática. Assim, em 1982, o governo militar convocou eleições para o Brasil. O ativismo feminista explodia e candidataram-se algumas militantes do Centro da Mulher Brasileira do Rio de Janeiro. 

Engajei-me na campanha para vereadora de Comba, ativista do feminismo carioca pelo PMDB. Tanto Comba, como eu, éramos oriundas do movimento estudantil e ardorosas defensoras da igualdade feminina na sociedade. Para financiar a campanha organizamos uma festa numa gafieira tradicional da rua do Catete e seguindo a tradição feminista, enfeitamos o salão com faixas e cartazes com as consignas do movimento feminista: “o privado é político”, “salário igual para trabalho igual” e “nosso corpo nos pertence”. 

Compramos tecidos de tafetá rosa e bordamos estas faixas em lantejoulas azuis. Ficaram lindas. Durante a tarde trabalhamos no salão fazendo a decoração. Tudo pronto, fomos para casa nos arrumar para a festa. Voltei horas depois e quando cheguei já havia muita gente no salão, inclusive a candidata e seus familiares e amigas. Ao atravessar a sala notei certo constrangimento em alguns olhares. A linda faixa “Nosso Corpo Nós Pertence” tinha sido alterada e agora lia-se  “Nosso Corpo Vós Pertence”, não acreditei! 

Olhei para as pessoas, diversos homens riam, todos tradicionais militantes democráticos. Uma profunda indignação tomou conta de mim. Isto não era uma brincadeira inocente. Era o machismo escondido na sociedade que se desnudava cruelmente aos meus olhos, avancei e arranquei a faixa da parede. Ficou nítido para mim que aquela não era uma mera brincadeira: a perda de uma perna da letra “N” transforma esta letra em “V” e revelava a ideia de que os corpos femininos pertencem aos homens. E para minha surpresa tinha sido o primeiro marido da nossa candidata feminista que havia realizado a brincadeira machista.  E a festa não foi mais a mesma: entendi que a sociedade dos homens reagia ao novo que se desenhava, mas ainda não tinha nascido.

 

*Hildete Pereira é Doutora em Economia e Professora associada da Faculdade de Economia do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da UFF. Foi militante desde os anos 1960 e doou parte de seu acervo ao Arquivo Nacional. 

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O FÓRUM M: saber legítimo, epistemologia potente https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/11/19/o-forum-m-saber-legitimo-epistemologia-potente/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/11/19/o-forum-m-saber-legitimo-epistemologia-potente/#respond Tue, 19 Nov 2019 10:56:40 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/Heloisa-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1849 Por Heloísa Buarque de Hollanda*

A Universidade hoje está sob pressão. Pressão econômica, pressão à liberdade de ensino e expressão,  pressão aos estudos e às identidades de gênero. É urgente que questões sob censura autoritária e conservadora – como a que se refere aos temas chamados erroneamente de “ideologia de gênero” – avancem e mostrem seu potencial transformador e produtivo nas ciências exatas e humanas, nas artes, nas letras, assim como na política.

O Feminismo não é uma ideologia. É simplesmente uma luta por direitos iguais na política, no mercado, na vida privada. É uma política de autodefesa contra a violência doméstica, contra o feminicídio,  a favor da liberdade de expressão e da liberdade sobre o próprio corpo. São apenas direitos fundamentais que pedimos. 

A confusão da defesa de direitos fundamentais com a noção de ideologia é  absolutamente nociva e perversa e tem levado à desqualificação de uma luta indispensável para a convivência democrática. Daí a importância e a urgência da tarefa de aprofundar e divulgar o pensamento feminista como um saber legítimo e como epistemologia potente. Falamos sobre reunir o movimento feminista e a universidade, e convidar todas e todos para uma reflexão sobre quem somos e quem querendo ser. É isso que move a parceria inspirada que reúne o Laboratório de Teoria e Práticas Feministas da UFRJ, o Fórum Ciência e Cultura, também da UFRJ, é o Agora É Que São Elas.

O pensamento feminista, que começa a se  formalizar como conhecimento acadêmico na década de 1980,  já produziu mudanças decisivas nas formas de percepção da vida e do mundo social.  Várias correntes e posições políticas dialogam nesse universo com a missão de interpelar a  objetividade científica enquanto valor acadêmico, e valorizar a experiência social da mulher como constituinte das perspectivas epistemológicas, científicas,  e metodológicas .

Ou, como chama a atenção a professora emérita da Universidade da Califórnia e autora de Manifesto Ciborgue, Donna Haraway, a importância de defendermos a noção de ponto de vista epistemológico enquanto conhecimento situado em oposição a um relativismo aparente deste mesmo ponto de vista. É essa a função social e política da produção teórica feminista: reivindicar o fim das injustiças epistemólogicas e pensar as perspectivas de um mundo mais justo.

Apesar destes estudos estarem se desenvolvendo em  profundidade e rapidez, eles têm se confinado no mundo fechado das universidades, seminários e grupos de estudo.  O cruzamento entre o ativismo feminista e as teorias feministas é um caminho eficaz para a ampliação não apenas das práticas feministas mas também da própria produção de conhecimento acadêmico. A articulação teoria e prática, infelizmente tão rara, pode ser o caminho que nos falta para enfrentar esse momento difícil para o feminismo.

Foi com essa meta que o Laboratório de Teoria e Práticas Feministas do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) Letras/ UFRJ, associou-se ao Fórum de Ciência e Cultura,  espaço de estudos superiores e debates da UFRJ e ao #AgoraÉQueSãoElas, um dos mais importantes polos do ativismo feminista da web. 

 Essa articulação  pretende levar e discutir o pensamento feminista em espaços abertos, gratuitos e democráticos para que o pensamento feminista, suas teorias e narrativas , sejam debatidos  nas universidades e em pontos estratégicos do centro e das periferias do Rio de Janeiro. O Fórum Mulher é esse espaço político acadêmico e político que vai invadir a cidade e o universo das mídias sociais. 

*Heloísa Buarque de Hollanda é Coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ e desenvolve o laboratório de tecnologias sociais da Universidade das Quebradas. Recentemente, publicou o “Explosão Feminista: Arte, cultura, política e universidade” (Cia das Letras).

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Livro aberto para vencer o autoritarismo de Bolsonaro https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/11/08/livro-aberto-para-vencer-o-autoritarismo-de-bolsonaro/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/11/08/livro-aberto-para-vencer-o-autoritarismo-de-bolsonaro/#respond Fri, 08 Nov 2019 14:50:16 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/EDIT-IMG_1711-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1842 Por Valéria Correia*

A Bienal Internacional do Livro de Alagoas, a única do Brasil produzida por uma universidade pública, nesta semana ocupa as ruas do histórico bairro de Jaraguá para levar uma vasta produção cultural aos alagoanos. Em tempos de ataques às instituições de ensino públicas, o maior evento cultural e social de Alagoas segue a sua programação até o dia 10 de novembro com tema “Livro aberto: leitura, liberdade e autonomia” e diz não ao autoritarismo, se colocando aberta para a diversidade de pensamento crítico. 

A Bienal é coordenada pela professora Elvira Barreto que também dirige a editora da Universidade de Alagoas (Edufal). A nossa gestão é composta majoritariamente por mulheres pró-reitoras, que além de quadros técnicos da administração pública são brilhantes cientistas. Somos a gestão que dobrou a Ufal de tamanho em área construída, entregando 26 prédios e o maior Complexo Esportivo do nordeste. Crescemos com qualidade e entramos no ranking Times Higher Education como uma das melhores universidades do mundo.

Liberdade e autonomia na produção científica são essenciais para a função civilizatória da Ciência e da Universidade. Nesta direção, segue a brilhante definição de Universidade expressa pelo professor Gilberto de Macedo no livro “Universidade Dialética”, publicado em 1985: “A Universidade autêntica é reflexiva, compreensiva, criadora. Isso mostra logo que ela não é acomodada, passiva ou omissa. Mas crítica, ao permitir o conhecimento, dos homens [e das mulheres] e das coisas através do pensamento dialético […]” (MACEDO, 1985). 

Entretanto, na direção contrária, observamos uma tendência ao Anti-intelectualismo, ao anticonhecimento, à anticiência, e ao recrudescimento do conservadorismo, com tentativas de imposição de um pensamento único. Movimentos autoritários expressos nas perseguições a pesquisadores, ataques às Universidades, como nas propostas da Escola sem Partido, do fim da Filosofia e da Sociologia nas Universidades e nas Escolas, além da militarização das escolas públicas.

É neste palco de acontecimentos que a Ufal realiza a 9ª edição da Bienal, reafirmando a importância da leitura, da educação, do conhecimento, da ciência, da cultura e da arte, como fundamentais para uma sociedade mais humana, mais desenvolvida e menos desigual.

Homenageamos as mulheres lutadoras, que muitas vezes são invisibilizadas pela sociedade, mas – sabemos e queremos destacar – que contribuem definitivamente com a história de Alagoas a partir dos interesses das mulheres oprimidas. Esta homenagem põe em evidencia e valoriza as mulheres marisqueiras, trabalhadoras rurais sem terra, indígenas, quilombolas, sem teto, e de religião de matriz africana. Especialmente, no contexto da cultura ao estupro e à misoginia, nutrida pelos que vêm de cima. 

Esta Bienal convoca à defesa da educação, da Universidade, da ciência, da cultura, da arte e da liberdade! Pois somos da terra de Dandara e Zumbi dos Palmares, Artur Ramos, Aurélio Buarque de Holanda, Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Nise da Silveira, Octávio Brandão, Théo Brandão, Newton Sucupira, e de tantos outros homens e mulheres que orgulham o nosso povo. Viva a soberania da nossa gente e do nosso País!

*Valéria Correia é Reitora da Universidade Federal de Alagoas.

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Você conhece o conceito de imagem de controle? https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/11/05/voce%cc%82-conhece-o-conceito-de-imagem-de-controle/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/11/05/voce%cc%82-conhece-o-conceito-de-imagem-de-controle/#respond Tue, 05 Nov 2019 12:22:38 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/img_1307-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1812 Por Clara Averbuck*

Imagem de controle é um conceito advindo do Feminismo Negro e usado por Patricia Hill Collins e bell hooks. Há muito material sobre isso. Este controle é o que fazem com as mulheres todos os dias. Todas as mulheres, pois esse conceito é amplo. Uma advogada negra, por exemplo, pode passar por desleixada porque não “arrumou” o cabelo, ou seja, alisou e se colocou mais próxima ao padrão branco e aceitável numa sociedade racista. Uma aeromoça deve sempre estar com cabelos e maquiagem impecáveis e as unhas feitas. Uma acadêmica de humanas não pode ser muito vaidosa, mas também não pode ser muito largada, porque né, é mulher..

Já uma mulher no meio da ciência é vista com desconfiança ao se importar demais com a aparência, já que deveria focar em coisas realmente importantes. Uma vítima de violência que estava com a roupa “errada” ou em alguma situação que não em casa dormindo ou na igreja vai ter sua denúncia questionada pois não é a vítima perfeita e pode ser culpabilizada pela violência que sofreu. Quer dizer: nunca está bom.

Vivemos sendo literalmente fiscalizadas para ver se cabemos na caixinha x ou y. Eu nunca coube. Publiquei o primeiro livro aos 22, fora do padrão de comportamento – e do gênero – da maioria esmagadora dos escritores do começo dos anos 2000. Eu era uma das pouquíssimas mulheres e a mais jovem do meio, e ainda escrevendo “como um homem”, coisa que eu achava elogiosa até então, ai de mim. Eu lia homens, convivia com homens, parecia um elogio. O que eu tinha como feminino era frágil e fútil.

Que bom que veio o feminismo para me salvar dessa bobagem. Eu escrevo como uma escritora e escrevo como quiser. Também nunca “me pareci” com uma escritora. Era muito tatuada, me vestia de maneira pouco formal, decote, saia e, especialmente, me portava bem fora do que se esperava de uma mulher. Hoje eu tenho 9 livros publicados, 2 peças, alguns roteiros e infinitos textos. Eu também sou pole dancer. Isso deu tilt na cabeça de muita gente. Como pode escrever e mostrar o corpo dessa maneira? Como? Como? Não pode!
Bom, minha função no mundo não é ser só um corpo e nem só um discurso. Sou mulher e temos nossa sexualidade controlada e nosso intelecto posto em dúvida quando “usamos o corpo”, conforme pede a imagem de controle. Como se a cabeça estivesse desatarrachada do corpo. Como se não usásemos as mãos, os olhos, o frio na barriga, como se o cérebro não mandasse estímulos para o corpo funcionar.

Hoje, mais uma vez, tive meu intelecto questionado por causa das fotos do meu corpo postadas no meu perfil do instagram. Fui chamada de prostituta (uma profissão, não um xingamento), de vagabunda, de “attention whore” (achei que esse termo tivesse ficado em 2004), enfim, centenas de ofensas direcionadas a minha sexualidade e meu corpo. Isso porque ousei dizer, em um post do ator Juliano Cazarré, que fez parte do elenco da adaptação cinematográfica de meu primeiro livro, que não queremos homens provedores, queremos homens analisados e que não tenham o pensamento parado em 1940, diante de uma postagem em que ele exaltava a masculinidade e dizia que não era uma construção social usando o vídeo de um… gorila.

Que enxurrada de chorume! O próprio disse que não esperava menos de mim, o que foi um elogio involuntário. Obrigada! Eu também não esperaria menos de uma mulher feminista em busca de equidade de gênero e combatedora ferrenha da masculinidade tóxica, que aleija os homens de seus sentimentos desde pequenos (não, não é bacana dizer pra uma criança “virar homem” ou engolir o choro), criando gerações e gerações de homens que não sabem sequer nomear seus sentimentos, de tão distantes deles que ficaram. É coisa de mulherzinha, e coisa de mulherzinha é a pior ofensa a um macho adoecido.

Adoecido, sim: eis os dados de suicídio de 2011 a 2016: das 62.204 mortes por suicídio, 79% foram de homens. 48.204 tentativas, sendo 31% homens e 14.354 reincidentes na tentativa, sendo 26% homens. Essa masculinidade tóxica e o fardo do tal “provedor” tem muito a ver com esses números. O homem que se sente inútil e não cumprindo esse papel acaba por se deprimir e não procura ajuda, pois acham que devem ser fortes e machões… Até que não aguentam mais.

Cumprir o mínimo da obrigação com os filhos não é “ser provedor”. Pagar pensão, muito menos. Não é disso que estamos falando, e sim de um fardo que não precisa mais ser levado adiante. E o mais incoerente é que quando mulheres entram nessa lógica, a de buscar um provedor, são taxadas de interesseiras. Ué?

Eu, Clara, estou em busca de poder existir enquanto intelectual que sou há anos e que habita esse corpo, como escritora, ficcionista, tradutora, roteirista, dramaturga, pole dancer e dona de mim. E quero distância de qualquer um que identificar em um gorila o ideal de sociedade. Se livrem dessa masculinidade. Vai ser melhor para todo mundo.

P.S.: sugiro que assistam “O Silêncio dos Homens” e “The Mask You Live In”

*Clara Averbuck é escritora, tem nove livros publicados, é professora de escrita criativa e pole dancer em formação.

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A Filomena de ‘A Vida Invisível’ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/10/30/a-filomena-de-a-vida-invisivel/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/10/30/a-filomena-de-a-vida-invisivel/#respond Wed, 30 Oct 2019 15:14:50 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/img_0833-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1793 Por Bárbara Santos*

Trabalho com o Teatro do Oprimido há trinta anos, vinte dos quais diretamente com Augusto Boal, na coordenação do Centro de Teatro do Oprimido, em produções artísticas e projetos sócio-culturais na rede de pontos de cultura, no sistema penitenciário, na educação e na saúde mental.

Desenvolvo o Teatro das Oprimidas, que estrutura uma rede internacional de grupos feministas da América Latina, Europa e África, há dez anos. Escrevi três livros sobre processos estéticos e técnicas teatrais interativas e sou diretora artística do espaço teatral KURINGA, em Berlim, Alemanha, onde vivo há uma década. O teatro é minha principal atividade, como diretora, formadora e ativista.

Em março de 2018, fui convidada por Karim Aïnouz para dar corpo e alma à Filomena, no filme “A Vida Invisível”. Aceitei o convite sem titubear, pela alegria de voltar a atuar como atriz e pela oportunidade de criar uma personagem negra plena em complexidade e humanidade. Desde os primeiros contatos, percebi a abertura do diretor e de sua equipe para o diálogo crítico e propositivo. Em nenhum momento, houve receio em se falar sobre racismo, tanto nas análises do roteiro quanto na concepção das cenas. Além de mim, várias das integrantes da equipe, também mulheres negras, tomaram para si a responsabilidade de cuidar da construção de Filomena. Aliás, preciso destacar a força das mulheres nessa produção e a presença marcante de diversas mulheres negras que compuseram essa equipe.

Não há como negar que é alto o risco de se cair numa representação caricata ao se incluir uma personagem negra na história de uma família branca, de origem portuguesa e de classe média no Brasil dos anos de 1950. Nesse sentido, o encontro e a construção de amizade e companheirismo entre uma mulher negra e uma mulher branca em uma sociedade alicerçada sobre a escravatura e marcadamente racista, pode facilmente reproduzir a relação a mucama-ama de leite e a sinhazinha. Creio que foi a consciência desse perigo que nos permitiu produzir um encontro real de amizade e de acolhimento entre duas mulheres, sem a tentativa de esvaziar ou minimizar as diferenças raciais e sociais que existiam entre elas.

Na elaboração dessa personagem, me concentrei em cuidar para que tivesse existência autônoma e não fosse definida a partir de Guida, uma das irmãs que protagonizam a trama. Busquei desenvolver uma mulher plena em sua subjetividade e protagonista de sua própria história. Além de momentos frutíferos de discussão com Karim Aïnouz e Nina Kopko, escrevi diversos textos sobre a história de vida de Filomena, reconstruindo sua infância, adolescência e vida adulta até o encontro com Guida. A escrita foi exercício fundamental para a construção da personagem, que assim ganhou nuances, filosofia e objetivos de vida.

Desses textos brotaram um feminismo negro intuitivo, uma atitude antipatriarcal impulsiva e uma consciência política forjada nas agruras da vida. Pouco a pouco, Filomena ia sendo composta por Marias, Elzas, Margaridas, Suelis, Conceições, Carolinas e muitas das mulheres negras que encontrei pela vida, em comunidades, grupos culturais, penitenciárias, hospitais psiquiátricos e no movimento de mulheres negras. A cantora Elza Soares e sua história de vida foi uma inspiração essencial e a música A Mulher do Fim do Mundo compôs a trilha sonora de Filomena. Além dos textos sobre a personagem, escrevi também diversos poemas para o filme: a separação Eurídice e Guida, o cruzamento entre as vidas de Filomena e de Guida; o desejo de liberdade de Guida, o sonho de Filomena de ser cantora e a esperança no futuro do “filho” partilhado. Dessa forma, interagi com o filme como um todo, tentando entendê-lo como o contexto social de Filomena.

Os encontros e ensaios com a atriz Julia Stockler, que interpreta Guida, se concentraram na relação afetiva e social entre as duas personagens. Juntas, buscamos entender quais seriam os pontos de contato, os possíveis intercâmbios e os interesses de cada uma na relação que construíamos juntas. Guida ganhava um lar, amparo, apoio e força para ser uma mulher capaz de exercer sua vontade e autonomia. Filomena ganhava uma família, exercia uma maternidade partilhada e vislumbrava a possibilidade concreta de efetivar o plano de criar uma creche comunitária.

Nesse processo de construção, entendi a capacidade de adaptação e de planejamento estratégico de Filomena. Me surpreendi com sua astúcia em driblar o sistema e em enfrentar sua face machista e racista. Filomena, como boa capoeira, ginga, finge que vai, mas não vai, finge que fica quando já foi.

Vida invisível*

A vida dela sem ela
A vida de uma sem outra
A vida d’outra sem uma
A vida de uma por outra

Vidas de tantas outras
Vida inteira tão pouca

Vida… escapou no vento
Voou!
sem memória ou história
Sem linha do tempo

Vida… projeto intangível
Corre, voa, pára!
Pára, corre, voa!
Transcorre invisível.

(BS, abril de 2018)

*Bárbara Santos é socióloga, escritora, atriz e diretora teatral, é fundadora da Rede Ma(g)dalena Internacional de Teatro das Oprimidas.

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#AngelaDay – Diário de uma feminista negra, cria da favela https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/10/25/angeladay-diario-de-uma-feminista-negra-cria-da-favela/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/10/25/angeladay-diario-de-uma-feminista-negra-cria-da-favela/#respond Fri, 25 Oct 2019 21:00:32 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/2019-10-23-09.00.43-3-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1795 Por Renata Souza*

00h47 — Após o jantar com a Angela Davis, no Bar da Dida, na Zona Norte do Rio de Janeiro, o sono custou a chegar. “Histórico” é o termo mais correto para classificar o nosso encontro com as principais lideranças feministas negras brasileiras, erguidas após a dor na alma dilacerada com o feminicídio político de Marielle Franco.

Servido o drinque “Pantera Negra”, criado especialmente para a convidada, começamos a narrar nossas histórias de militância aos ouvidos atentos de Angela, que dispunha de caneta e papel para as “escrevivências” de Aurea Carolina, Mônica Francisco, Dani Monteiro, Andrea de Jesus, Talíria Petrone, Jô Cavalcanti, Erica Malunguinho, Vilma Reis, e para as minhas impressões sobre as feituras da vida. Não bastava lhe dizer quem sou, mas em quem me tornei após a luta pela sobrevivência no chão da favela. Pude falar sobre o significado da nossa mandata de deputada estadual na Alerj, uma mandata pedagógica, de ocupação do poder para amplificar as lutas de mulheres, em especial a negras, que sentem dor por perderem seus filhos e companheiros para a barbárie do Estado. Expliquei também o porquê de ter cunhado de maneira inédita o conceito de “feminicídio político” para categorizar e caracterizar a execução sumária da Marielle.  

Não foi possível falar sobre a superação ao pragmatismo político que reproduz o racismo, o machismo e classismo da sociedade. Um pragmatismo que gera violência e assédio político, dentro e fora das nossas fileiras de luta, experimentado com um gosto amargo durante o processo eleitoral e que se agudiza quanto maior a visibilidade de nossas ações políticas. Angela, com gentileza e sensibilidade, deixou clara a satisfação em nos escutar e disse que, ao ouvir Marinete e Toinho, pais da Mari, conseguia compreender de fato quem é Marielle Franco. Luyara Franco, Anielle Franco, Jurema Werneck e Lúcia Xavier também participaram do jantar. Foi um grande encontro, proporcional ao tamanho da minha insônia.

9h57 — Cheguei na Alerj para a votação do relatório final da CPI do Feminicídio, da qual participei como membro efetivo. E a cada indicação de propostas de políticas públicas para acabar com a violência contra a mulher, me vinha mais forte à cabeça a tríade do livro de Angela sob o signo de “Mulheres, raça e classe”. Fazer parte de qualquer um desses significantes, é uma condição de risco ao feminicídio no Brasil, onde a cada duas horas uma mulher é assassinada, e as negras e pobres são as principais vítimas, de acordo com dados de 2018 divulgados pelo Monitor da Violência. Uma conclusão inequívoca é a de que são mortes evitáveis.

11h47 — Por atropelo do tempo, ficou para a última hora a compra de uma roupa à altura da homenagem para Angela Davis. Saio correndo do gabinete com uma única certeza: quero um vestido africano. Parto para a Rua do Catete. Do carro, avisto uma pessoa flanando na calçada e logo reconheço o jeito faceiro de andar, era Vilma Reis. Vilma é uma feminista negra, antirracista e anticapitalista, é a nossa esperança de uma futura candidatura à prefeitura de Salvador, para a subversão à histórica dominação de uma elite política e econômica. Estou aguardando ansiosa a sua decisão. Mas não houve indecisão na escolha do vestido: um longo com tecido em esferas amarelo ouro, olhos em tom de Oxum. Como diz Ana Maria Gonçalves, serendipidade. Um feliz encontro, nunca ando só.

17h45 — Marco com Talíria Petrone pelo Whatsapp de entrarmos juntas no Odeon, passamos em meio à multidão, abraços, bênçãos em troca de energia. Um pouco antes, ainda no carro, repasso a fala que preparei para a entrega da Medalha Tiradentes a Angela Davis. Nesse momento, lembro do sonho da Mari em homenageá-la, não resisto às lágrimas. Angela parecia tão distante de nós, ainda que sua onipresença habitasse nas nossas citações e referências: “Mulheres negras movendo estruturas”, dizíamos sempre. Falar da Angela é falar de nós, é nos reencontrarmos com todas as gigantes ancestrais que nos formam. É lembrar das gargalhadas gostosas da Mari  e dos esporros em momentos de tensão e emoção, quando mandava eu parar de chorar.

20h17 — Chega o momento da entrega da Medalha Tiradentes. Pego na mão da Talíria que sentada ao meu lado, me acalma. Acabada a exibição do filme “Um dia com Jerusa”, um longa-metragem de Viviane Ferreira, estrelado pela potência máxima Léa Garcia, sou chamada ao palco. De microfone em punho, ao convidar a Luyara para compartilhar aquele momento, a sensação era de que sonhava acordada. As palavras saíam, sem filtro, do coração, eu era toda sentimento. Nessa vida, que muito bem definiu o poetinha como a arte do encontro, dou devido valor à gratidão: Boitempo, 12º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, militância feminista, negra e/ou marxista que lotou a Cinelândia para assistir o telão na praça, já que o Odeon não comportou o gigantismo de Angela Davis.

Um dia de preto. Para lembrar, como diz Angela, que derrotar o racismo, é derrotar o capitalismo. Dia em que Angela Davis exigiu justiça para Marielle Franco. Dia de festa na favela com a goleada de 5 a 0 do Flamengo. Dia de sonho, de felicidade subversiva e liberdade revolucionária, para pesadelo dos opressores e do capital.

*Renata Souza é cria da favela da Maré, feminista negra, anticapitalista. Formada em Jornalismo pela PUC-Rio. Doutora e mestra em Comunicação e Cultura pela UFRJ.  Está deputada estadual (PSOL-RJ) e presidenta da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Alerj.

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