#AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br Um espaço para mulheres em movimento Wed, 15 Apr 2020 11:52:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Carta Aberta dos alunos da Darcy Ribeiro https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/27/carta-aberta-dos-alunos-da-darcy-ribeiro/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/27/carta-aberta-dos-alunos-da-darcy-ribeiro/#respond Fri, 27 Jul 2018 11:56:12 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/36038097_ri_rio_de_janeiro_rj_22-03-2010_escola_de_cinema_darcy_ribeiro_sera_reformada_e_recebera_um-2-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1527 Em reunião realizada no dia 09 de julho de 2018, 13 alunas da Escola de Cinema Darcy Ribeiro relataram às turmas de Roteiro, Direção, Montagem e Produção I assédio sofrido pelo professor Rodrigo Fonseca ao longo das aulas do primeiro semestre do ano corrente.

Rodrigo Fonseca tornou-se professor da turma em março do ano de 2018, aparentemente cordial e prestativo. Docente notável, sempre tentando aproximar-se e agradar os alunos, levava comida e livros para distribuir durante as aulas, sempre sorridente e simpático. Mas sua simpatia tinha interesse restrito e direcionado. Desde as primeiras aulas dava orientações profissionais às suas alunas; os biscoitos e ofertas de livros logo viraram ingressos para filmes e debates, entradas gratuitas em eventos e cursos, bajulações sem fundamento profissional que poucos ou nenhum homem recebiam.

A partir disso, as alunas, crendo em sua boa fé, começaram a ver-se em situações constragedoras.  Ligações durante a madrugada, mensagens abusivas, olhares asquesoros, tentativa de contato físico, perseguição dentro de eventos. A bondade e atenção viraram constatação: a contribuição dele não era profissional, mas sim, dotada de interesse sexual, que como nunca foi correspondido, resultou em inúmeras ofensivas por parte do professor.

O docente não respondia mais às perguntas das alunas assediadas, e quando o fazia, era sem seriedade, demonstrando fúria e imaturidade, colocando-as em posição de extrema opressão. Durante as aulas, fazia piadas vexatórias com as alunas abordadas, com intenção de humilhação.

Com o tempo as aulas se esvaziaram, muitas mulheres ausentes; mulheres disciplinadas, assíduas, já não frequentavam as aulas. Um estranhamento começou a ocorrer, e com ele, uma identificação. As alunas começaram a se falar, e enfim, estavam num grupo de 13 mulheres relatando as mesmas vivências e opressão, do mesmo assediador.

Durante a reunião, foram relatados inúmeros assédios, desde simples cantadas, presentes dados às alunas pelo professor, ligações inescrupulosas, ameaçadoras e em horários inapropriados, a uma tentativa de beijo na boca de uma aluna sem consentimento e perseguição a outra durante um evento. Cabe ressaltar que todas as alunas que informaram ser comprometidas deixaram de contar com a mesma atenção.

Além dos relatos de assédio sexual, foram presenciados durante as aulas assédio moral, com ameaças de perda de pontos para quem questionasse o professor em qualquer conceito que não o agradasse. O mais grave ocorreu no dia 04 de julho, quando o professor disse, grosseiramente e de modo alterado, a um aluno que não responderia nenhuma pergunta enquanto ele “não sentasse o rabinho na cadeira”. Durante a reunião, outras pessoas denunciaram falas racistas, xenófobicas, homofobicas, preconceituosas e intolerantes. Todas travestidas de piada e licença poética.

Cabe ressaltar que o assédio pode vir de uma atitude verbal ou física, com ou sem testemunhas, e acontecer em sala de aula, ônibus, ambiente de trabalho, boates, consultórios médicos, na rua, em templos religiosos. O assédio não tem um local específico. No caso, há clara relação de poder de um professor, reconhecido no mercado, investindo contra alunas que sentem-se intimidadas com as consequências de suas denúncias.

Quando um homem tem interesse em conhecer uma mulher, ou elogiá-la, ele não lhe dirige palavras que a exponham ou a façam sentir-se invadida, ameaçada ou encabulada. Caracteriza-se como assédio verbal (artigo 61, da Lei das Contravenções Penais n. 3.688/1941), quando alguém diz coisas desagradáveis ou invasivas – como podem ser consideradas as famosas “cantadas” – ou faz ameaças.

Diante dos inúmeros relatos, reiterados de forma contundente e emocionada, a turma comunicou à coordenação da Escola de Cinema Darcy Ribeiro em uma reunião com a presença de cerca de 80 alunos, naquele mesmo dia, cobrando providências. Com a gravidade dos fatos e dos inúmeros relatos das alunas, a coordenação se comprometeu em frente aos presentes a desligar o professor, ratificando que esse tipo de comportamento não pode ser aceito pela instituição.

Destarte, reiteramos tudo que foi exposto na reunião e com o pronunciamento oficial da escola, para resguardar a integridade e a honra das alunas denunciantes, que foram vítimas de assédio.

Esta carta não é somente uma denúncia pública e coletiva, mas também uma resposta ao senhor Rodrigo Fonseca. As vítimas são muitas e estão unidas, fortes e tranquilas de sua postura, contando com o apoio da instituição, de todos os discentes e da opinião pública.

Não nos intimidaremos. Não nos silenciará. Somos muitos! Ao contrário do que você e muitos imaginam ao assediar, nós nos falamos e nos cuidamos e denunciamos, sim, cada assédio sofrido. A cada assédio denunciado, outros tantos aparecem. Não por histeria coletiva, não estamos fantasiando, e não queríamos estar aqui hoje, perdendo saúde, tempo e vida para berrar os assédios sofridos; queríamos não ter sido, mas fomos, por você.

Os inocentes não ficarão calados, por mais difícil que seja falar.

*Até o momento presente, a carta consta com a assinatura de 56 alunos da Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

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Por que tão poucas? https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/24/por-que-tao-poucas/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/24/por-que-tao-poucas/#respond Tue, 24 Jul 2018 22:55:46 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/20150330211926_divulgacao-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1520  

Por Claudia Moraes e Samira Bueno


Nas últimas décadas as mulheres vêm ocupando espaço nas diferentes áreas profissionais e, em algumas delas, a presença feminina ainda causa surpresa. Certamente nas atividades de polícia isso não é diferente, em especial nas Polícias Militares, profissão normalmente associada à força e 
ethos guerreiro, atributos tidos como essencialmente masculinos.  

Em boa parte dos estados brasileiros as mulheres já integram os quadros das polícias militares há mais de trinta anos, mas é possível imaginar as grandes dificuldades enfrentadas por essas pioneiras que acreditaram que lugar de mulher é onde ela quiser. Muitas corporações não se planejaram, deixando de lado o olhar institucional sobre as diferenças de gênero e impondo a estas policiais todo o tipo de ausências: equipamentos, instalações e uniformes. Você, caro leitor, já se perguntou se as policiais femininas têm acesso a coletes à prova de balas adaptados à anatomia da mulher? Uma pesquisa produzida pela Secretaria Nacional de Segurança Pública mostrou que isso é realidade para pouco mais de 20% delas. Na ausência desse equipamento a solução é usar coletes masculinos com numeração menor, o que acaba machucando e provocando dores no corpo das policiais. E apesar de para muitos parecer banal, os relatos indicam que as primeiras lutas de mulheres nas instituições policiais foram por um banheiro feminino.

Situações como essa são agravadas pela existência de cotas nos concursos públicos com a fixação de percentuais através de restrições tácitas ou expressas, que variam em torno de 5% a 10% do total das vagas. Se, em um primeiro momento, poderia se defender que as cotas serviram para garantir o direito ao ingresso das mulheres nas polícias militares, atualmente se converteram em teto que limita significativamente suas oportunidades e que são vistos até nos concursos para cargos de cirurgião-dentista e médico Policial Militar. Como é se de esperar, as restrições nos concursos têm impacto direto nos quadros policiais. A última pesquisa de Informações Básicas Estaduais divulgada pelo IBGE mostrou que o Brasil conta com 425 mil policiais militares dos quais 41,8 mil são mulheres, apenas 9,8% de todo o efetivo do país.

O argumento daqueles que se mostram favoráveis a existência de “cotas” para mulheres nos concursos diz respeito ao risco de feminização da tropa. Sob esta lógica, a essência da atividade policial reside na força física e em outros atributos relacionados ao universo masculino, ignorando uma série de outras habilidades tão ou mais importantes para o dia a dia do trabalho policial como a capacidade de avaliação de cenários ou a interação com a população. Premissas como essas reforçam a manutenção do número reduzido de mulheres nas polícias militares, o que em grande medida favorece o isolamento institucional das mesmas, que acabam alienadas dos espaços de poder e decisão institucional.

Mas aos poucos o cenário está mudando e conquistas importantes precisam ser comemoradas. A mais recente veio direto dos pampas gaúchos: Ana Maria Haas, de 55 anos, é a primeira mulher em 180 anos a chegar ao posto de coronel na Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Policiais femininas começam a ocupar posições de comando nas suas instituições, e, superando todos os obstáculos, concluem cursos de natureza operacional, pilotam aeronaves, além de atuarem em funções de natureza administrativa e operacional.

É notório que as mulheres vieram para ficar nas organizações policiais. O grande desafio está em, dentro de uma estrutura tão marcadamente hierarquizada e masculina, ampliar a presença feminina e dar voz às mulheres permitindo que elas possam fazer parte de um esforço planejado que tenha como objetivo a igualdade de tratamento com respeito às diferenças, afinal, o discurso de que “policial não tem sexo” não mais se sustenta. 

*Claudia Moraes é Major da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Samira Bueno é diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

 

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Fifa, por que te calas sobre o assédio? https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/03/fifa-por-que-te-calas-sobre-o-assedio/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/03/fifa-por-que-te-calas-sobre-o-assedio/#respond Tue, 03 Jul 2018 14:00:50 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/julia-globo-640x356-320x213.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1494 por Amanda Célio*

Esta matéria foi fechada no sábado (23) pela manhã, tendo de ser atualizada no domingo (24) à noite, antes do envio, pelo conhecimento de mais um caso de assédio sofrido por uma jornalista brasileira em pleno exercício de seu trabalho na Copa do Mundo de Futebol Masculino da Rússia.

O caso em questão aconteceu no domingo (24), quando a repórter Júlia Guimarães, que entrava ao vivo pela Rede Globo, antes do jogo entre Japão e Senegal, em Ecaterimburgo, foi vítima de um assédio de um torcedor russo que tentava beijá-la no rosto. Júlia conseguiu desviar e advertiu o homem: “Atrevido. Não faça isso. Nunca mais faça isso, ok?”, disse. O torcedor parece se desculpar e ela encerra: “Eu não permito você fazer isso comigo. Isso não é simpático. Isso não é certo. Nunca mais faça isso com uma mulher. Respeito”. Mesmo após o ocorrido, Júlia conseguiu fazer sua entrada ao vivo. Ao site do Globo Esporte, a repórter disse que é a segunda vez que tenta ser agarrada no país que sedia a Copa, fora as situações envolvendo “brincadeiras”, “cantadas” e circunstâncias constrangedoras.

Os assédios diários sofridos por mulheres no ambiente profissional não são novidade e muito menos exclusividade de quem trabalha no meio jornalístico. Essas situações abusivas, muitas vezes, engolida a seco nos bastidores das notícias, levou, por exemplo, a jornalista estadunidense Jessica Bennet a construir um guia irônico e incisivo de como sobreviver ao sexismo no ambiente de trabalho, lançado em 2016, mesclando experiências pessoais e de outras mulheres. Feminist Fight Club – traduzido em mais de 10 idiomas  já ocupou a lista dos mais vendidos do The Wall Street Journal e foi eleito um dos melhores do ano por veículos como a Forbes e o Chicago Tribune.

Com o triste episódio de Júlia, somam em cinco os casos de assédio cometidos contra jornalistas, noticiados pela imprensa mundial na Copa 2018 e iniciada há quase duas semanas, sem nenhuma declaração oficial da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e dos demais órgãos que realizam o evento. O primeiro caso de assédio aconteceu ainda na abertura do evento, quando a repórter colombiana Julieth González Therán, enviada especial da Deutsche Welle a Moscou, foi agarrada à força e beijada por um homem, na praça Manege, enquanto fazia uma transmissão sobre a contagem regressiva para início da cerimônia.

O segundo ocorreu no jogo entre Argentina e Islândia, no dia 16, na parte externa do estádio de Nizhny Novgorod. Um torcedor islandês, fantasiado, ameaçava interromper a transmissão ao vivo da equipe da ESPN e da repórter Agos Larocca. Ele tentou agarrar Agos e precisou ser impedido por um produtor da emissora. No mesmo dia, outros dois torcedores argentinos assediaram e tentaram roubar um beijo de uma compatriota jornalista. A repórter do Superesportes se defendeu com o microfone e o braço para não ser beijada pelos agressores.

Um grupo de brasileiros, que já foi identificado, também protagonizou um episódio de assédio na Rússia, com uma repórter local que não entendia o português – todo o mundo viu eles cantando ofensas misóginas, machistas e racistas.

O assédio contra mulheres jornalistas não é uma especificidade da Copa da Rússia, uma vez que está umbilicalmente ligado aos primórdios do futebol. Na última Copa, quando o Mundial aconteceu no Brasil, a repórter da Rede Globo Sabina Samonato foi agarrada durante as transmissões, duas vezes, por torcedores que a beijaram no rosto, sem o consentimento dela. Casos humilhantes, envolvendo jornalistas esportivas, que foram diminuídas, xingadas ou escrachadas por homens pelo seu gênero durante o trabalho levaram um grupo de jornalistas brasileiras a criarem, em 2018, o movimento “Deixa Ela Trabalhar”.

Mesmo com a repercussão desses casos estampadas nas mídias do mundo inteiro e pipocando nas redes sociais, a Fifa, organizadora do maior evento esportivo do mundo, com os seus 100 anos de fundação, não pretende mudar o curso dessa luta histórica contra o machismo no futebol e, novamente, desfila na Copa da Rússia com o seu mais batido figurino: o silêncio.  

Todo ano de Copa do Mundo, a entidade é pressionada a se posicionar sobre campanhas mais incisivas de racismo e homofobias nos estádios. Em março, a entidade e o Comitê Organizador foram colocados na parede para agir com mais firmeza no combate ao racismo em estádios russos. Isso porque em amistoso realizado naquele mês em São Petersburgo, entre Rússia e França, Pogba e outros jogadores afro-franceses, como Kanté e Dembélé, ouviam imitações de macaco cada vez que pegavam na bola. Por essa situação, o presidente Gianni Infantino disse, na época, que a entidade será “muito, muito firme” no combate ao racismo durante o Mundial.

Na Copa de 2014, a organização foi duramente criticada pela falta de rigor no enfrentamento ao racismo e à homofobia. Gritos de “bicha”, especialmente em jogos do México (“putos” era a palavra usada), e imitações de macaco no jogo entre Alemanha e Gana provocaram desconforto a entidades que combatem manifestações desse tipo. Neste ano, mudanças a passos lentos já puderam ser notadas.

 

O mínimo esperado de uma entidade da magnitude da Fifa e do evento esportivo em questão – campanhas, pronunciamento, sanções – já representa um começo. O mesmo definitivamente não ocorre quando se trata de machismo e assédio contra jornalistas. Ora, o que acontece fora de seus estádios não lhe diz respeito? Existe um fenômeno mundial de jornalistas que são assediadas e atacadas sem consentimento diariamente, principalmente em coberturas de futebol e em nenhum desses casos existe um posicionamento da Fifa ou de federações nacionais.  

Não deveriam os torcedores que causam o infortúnio serem punidos? Não cabe à seleção dos torcedores que assediam ser igualmente multada por esse tipo de conduta? Nem ao menos uma nota de repúdio? Além disso, a Fifa poderia pressionar, junto ao país sede do evento – considerado um dos mais machistas e homofóbicos do mundo, diga-se de passagem – a tomar medidas protetivas que punissem esses torcedores ou a realizar campanhas junto a coletivos e associações oficiais de jornalistas para levantar a questão do machismo em jogos de futebol. Era o mínimo esperado.

O silenciamento da organização não causa espanto, muito pelo contrário. A Fifa é conhecida historicamente por não se pronunciar em casos de machismo no futebol, mesmo que tudo esteja acontecendo debaixo dos seus olhos. Afinal, até quando o assédio e desrespeito com uma mulher, que esteja cobrindo o evento ou não, será tolerado pela instituição? O que é, ainda, necessário ocorrer para que haja algum tipo de atitude do referido órgão? De quem uma postura mais incisiva pode ser cobrada, senão da segunda organização internacional com mais participantes do mundo, que abraça 209 organizações esportivas privadas associadas representando o esporte em países ou territórios?

Com esse histórico questionável, é fácil concordar com o pesquisador Ellis Cashmore, da Universidade Staffordshire, autor do livro Making sense of sports (Entendendo os esportes), que, entrevistado pela revista Época em 2014 para comentar sobre o caso de machismo envolvendo a auxiliar em arbitragem Fernanda Colombo – por cometer dois erros seguidos, um na partida entre São Paulo e CRB e outro no clássico mineiro entre Atlético-MG e Cruzeiro, foi insultada pelo diretor de futebol do Cruzeiro na época, Alexandre Mattos: “Se é bonitinha, que vá posar para a Playboy, não trabalhar com futebol”, disse.

Para Elis Cashmore, essas atitudes ocorrem porque o machismo não coloca em risco o modelo de negócios da Fifa. Segundo Cashmore, se o comportamento racista ficar impregnado no futebol, o crescimento econômico da Fifa nesses mercados pode ser comprometido. Já com o machismo, a Fifa não vê o mesmo risco. Não à toa, episódios como os comentários do dirigente do Cruzeiro e a falta de posicionamento em casos extra-campo, mesmo em competições credenciadas pelo órgão, são comuns em várias partes do mundo. O próprio ex-presidente da Fifa Joseph Blatter já sugeriu certa vez em uma declaração que as jogadoras mulheres deveriam usar shorts curtos e mais justos para “ter uma estética mais feminina”. As mulheres nunca serão levadas a sério enquanto o futebol for controlado exclusivamente por homens.

Jornalistas esportivas que passam por situações de machismo e assédio normalmente encontram amparo apenas nos colegas de profissão, alguns coletivos de jornalistas ou sindicatos, mas nunca há uma posição ou atitude vinda por órgãos oficiais de futebol, nem mesmo quando os insultos acontecem dentro dos campos.

Nesta sexta-feira (22), a ONU Mulheres Brasil divulgou uma nota pública em solidariedade às mulheres do mundo e contra a violência de gênero na Copa 2018. A ONU defende que “grandes eventos devem colocar a questão de gênero e os direitos das mulheres no centro dos encaminhamentos preparativos por meio de medidas de prevenção e consciência pública sobre a violência contra as mulheres. Iniciativas de prevenção, a exemplo da campanha do Secretário-Geral da ONU “UNA-SE pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, precisam ser adotadas pelas próprias instituições organizadoras de grandes eventos, ampliando o alcance e a circulação de mensagens de conscientização sobre práticas e comportamentos sociais baseados no respeito e na igualdade de direitos e alerta sobre como a violência de gênero acontece, como evitar, como apoiar as vítimas e como responsabilizar os agressores”.

A caminhada até o fim da Copa é longa, não pelas duras horas cobrindo uma seleção ou outra, pelos pesos dos equipamentos nos ombros ou por estar longe de casa, mas por, além de tudo isso, sair para trabalhar sabendo que, a qualquer momento, poderá ser desrespeitada, insultada e assediada por homens e “poderosos” que ainda não aprenderam o significado da palavra respeito. A indignação é por eles e pela Fifa, afinal: até quando ela será co-responsável pelos assédios sofridos daquelas que só querem trabalhar?

Amanda Célio é jornalista e feminista.

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#NãoVamosMaisTaparOsOlhos: produtoras brasileiras firmam pacto anti-assédio sexual no setor https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/04/09/nao-vamos-mais-tapar-os-olhos/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/04/09/nao-vamos-mais-tapar-os-olhos/#respond Mon, 09 Apr 2018 11:47:38 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1389

por Antonia Pellegrino*

Há um ano, a hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas moveu o Brasil. Quatro dias antes, este blog publicou o texto denúncia da figurinista Su Tonani: “José Mayer me assediou“. Depois de ter percorrido as instâncias institucionais da empresa onde trabalhava denunciando abusos e em busca de justiça, Tonani cansou de não ser ouvida. E decidiu falar publicamente sobre a violência que sofrera ao longo de 8 meses em seu ambiente de trabalho.

Espontaneamente, as funcionárias da mesma empresa se articularam numa gigantesca e acolhedora retaguarda, iniciando o movimento #MexeuComUmaMexeuComTodas, que inundou a rede. O resultado foram quatro milhões de menções e o marco histórico desta ser maior hashtag no combate à violência contra a mulher nas redes sociais virtuais.

A partir daí, este blog passou a receber por inbox muitas denúncias de violência, agressão, alienação parental, assédio etc, mas não as publicou por duas razões: falta de estrutura para checagem; e a missão de incidir ou pautar nos debates da sociedade (nosso DNA nunca foi ser uma plataforma de escracho). Acreditamos que o escracho público é um ato extremo e nocivo, o último recurso quando a institucionalidade é claramente ineficiente.

Até que, em dezembro de 2017, já indo dormir, recebi um telefonema de uma mulher que eu não conhecia, fazendo uma denuncia que me tirou o sono. Diferentemente de todas as mulheres que nos procuram, Silvana Moura não era a vítima. E sim a figurinista-chefe da vítima de um suposto estupro – ainda em investigação –  em um set de filmagem, pelo ator Thogun.

Conversamos pelo telefone e percebi: eu estava diante de uma mulher se responsabilizando por outra. Nada trivial no país da pichação “não fui eu”. Onde é preferível ignorar a ideia de responsabilidade coletiva, para seguir ignorando confortavelmente os passivos das nossas histórias familiares, da nossa sociedade – ao mesmo tempo que reagimos como leões acuados ante a discussão de taxação sobre herança. O Brasil é o país de baixo capital cívico, onde alta é desconfiança entre as pessoa conhecidas, desconhecidas ou da mesma equipe. E o desconhecimento da lei é proporcional ao seu descumprimento. A lei do trabalho diz que, quando um caso de violência ocorre no ambiente de trabalho, aquilo não diz respeito somente à vítima e ao agressor – é responsabilidade de todos os agentes da relação de trabalho, sobretudo dos superiores hierárquicos, os quais, à letra da Lei, quando agressores, ou seus cúmplices, são passíveis de enquadramento criminoso.

Silvana me fez um convite para mais uma quebra de silêncio e um escracho público. Mas embora o produtor americano Harvey Weinstein já tivesse caído, nós sabemos como as denúncias no Brasil acabam: com as vítimas sendo desacreditadas, humilhadas, retaliadas e perdendo seus empregos. A estrutura do machismo brasileiro é tão radical que, dificilmente conseguiríamos (conseguiremos), um efeito dominó como o que aconteceu internacionalmente.

É preciso mudar a estrutura. E qual ferramenta eu tenho? A mesma que tantas de nós:  minha palavra e minhas redes – sociais virtuais e de afetos. Gravei um vídeo tosco, postei e envie para amigas e amigos produtores, com a seguinte provocação: vamos criar um pacto de responsabilidade anti-assédio no audiovisual.

Os produtores Rodrigo Teixeira, Beto Grauss, da Pródigo Filmes, e Renata Brandão, da Conspiração, acolheram a iniciativa imediatamente. Marcamos um encontro para janeiro. E, no primeiro dia do ano, as americanas lançaram o Time’s Up. Uma semana depois, no Golden Globe, atrizes e ativistas vestiram preto e Oprah Winfrey anunciou o fim da era do assédio.

No Brasil, essa hora também chegou – pelo menos no audiovisual independente. Não é uma canetada de política pública, capaz de mudar a vida de milhões de pessoas, mas é o primeiro passo concreto para mudarmos uma cultura dentro de um setor fundamental da economia criativa. E, se conseguirmos, a um tempo, nos mover e avançar, seremos exemplo. Essa realização foi possível graças aos esforços institucionais da APRO (Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais), com apoio do advogado Caio Mariano, e a força das incríveis Renata Brandão e Marianna Souza, entre tantas e tantos.

Daqui em diante, todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores do audiovisual independente decidimos que não vamos mais tapar os olhos. A CARTILHA-PACTO DE RESPONSABILIDADE ANTI-ASSÉDIO SEXUAL NO SETOR marca o começo de um novo tempo.

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*Antonia Pellegrino é editora deste blog, roteirista de cinema e tv, escritora e feminista.

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“Cuspiram na minha cara dentro do estádio” – assédio e machismo no Jornalismo Esportivo | #AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/03/28/deixaelatrabalhar/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/03/28/deixaelatrabalhar/#respond Thu, 29 Mar 2018 01:11:35 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1370 por Aline Andrade

As recentes denúncias de casos de assédio sexual, amplamente divulgados nas redes sociais, chamaram a atenção para uma cultura na qual os homens foram autorizados a hostilizar, humilhar e até mesmo estuprar mulheres com impunidade. Embora a narrativa em torno dessa cultura tenha sido ligada principalmente às indústrias de entretenimento, o recente caso da jornalista Bruna Dealtry, repórter do Esporte Interativo, deu luz à mídia esportiva, uma área que por muitas vezes fecha os olhos para a má conduta sexual.

Na última semana, Bruna publicou um desabafo no Instagram após ser assediada ao vivo, quando um torcedor lhe deu um beijo na boca sem consentimento. Visivelmente constrangida, ela continuou a transmissão. O caso dela foi só mais um dos muitos abusos que acontecem diariamente no jornalismo esportivo. Com intuito de denunciar o machismo e buscar combater o assédio, cerca de 50 jornalistas, entre produtoras, apresentadoras e repórteres de diversas emissoras e veículos, se reuniram para lançar o manifesto “Deixa Ela Trabalhar”.

 

Sempre fui uma repórter que adora uma festa de torcida. Não me importo com banho de cerveja, torcedor pulando, pisando no meu pé… sempre me deixo levar pela emoção e tento sentir o momento para fazer o meu trabalho da melhor maneira possível. Sempre me orgulhei por ter uma boa relação com todas as torcidas e por ser tratada com muito respeito!! Mas ontem, senti na pele a sensação de impotência que muitas mulheres sentem em estádios, metrôs, ou até mesmo andando pelas ruas. Um beijo na boca, sem a minha permissão, enquanto eu exercia a minha profissão, que me deixou sem saber como agir e sem entender como alguém pode se sentir no direito de agir assim. Com certeza o rapaz não sabe o quanto eu ralei para estar ali. O quanto eu estudei e me esforcei para ter o prazer de poder contar histórias incríveis e estar em frente às câmeras mostrando tudo ao vivo. Faculdade, cursos, muitos finais de semana perdidos, muitos jogos de futebol analisados, estudo tático, técnico, pesquisas etc. Mas pelo simples fato de ser uma mulher no meio de uma torcida, nada disso teve valor para ele. Se achou no direito de fazer o que fez. Hoje, me sinto ainda mais triste pelo que aconteceu comigo e pelo que acontece diariamente com muitas mulheres, mas sigo em frente como fiz ao vivo. Com a certeza que de cabeça erguida vamos conquistar o respeito que merecemos e que o cidadão que quis aparecer é quem deve se envergonhar do que fez. Sou repórter de futebol, sou mulher e mereço ser respeitada.

A post shared by Bruna Dealtry (@brunadealtry) on Mar 14, 2018 at 5:46am PDT

 

“Já recebi ameaça de estupro por mensagem, já fui xingada, ofendida. Cuspiram na minha cara dentro do estádio”

Bibiana Bolson, colunista do portal ESPNW

 

“Não quer ouvir, vem de fone para o estádio.”

Resposta de torcedor ao receber críticas da jornalista Monique Danello, do Esporte Interativo

 

Em pesquisa publicada pela ONU em 2017, praticamente uma a cada duas jornalistas já sofreu abuso sexual ou psicológico, agressões digitais e outras formas de violência por serem mulheres. Na mídia esportiva, o cenário parece ainda pior. Os ataques misóginos são normalmente de cunho sexual, direcionados a aparência, submissão e a falta de conhecimento sobre esportes. “É sempre uma luta a mais, como se a gente tivesse que provar que temos conhecimento por sermos mulheres. O conhecimento independe de gênero, depende de interesse, dedicação e ponto. Sempre é muito colocado em prova isso, temos que fazer um esforço a mais para sermos respeitadas, consideradas boas jornalistas”, destaca Ana Hissa, do SporTV.

Em uma indústria dominada por homens, os abusos e preconceitos vão muito além do mostrado pelas câmeras, vêm de todos os lados nos bastidores: nas redações, clubes e relações com profissionais do esporte. Em parte, o público apenas reage a falta de confiança que as jornalistas têm no seu próprio ambiente trabalho, sendo muitas vezes desacreditadas e estigmatizadas pelos próprios colegas de profissão. “As situações no estádio já são de conhecimento geral. Mas por mais que a gente não tenha que deixar de falar, de ser incansável nesse sentido, tem muitas situações que acontecem fora do estádio e no ambiente esportivo que a gente acaba não dando luz. E, no meu caso e de muitas, passa pelo assédio de pessoas que estão no comando de algumas redações” diz Bibiana Bolson, colunista do ESPNW. De acordo com algumas jornalistas entrevistadas, situações como a de ficar fora de uma cobertura jornalística por reagir de forma negativa a um assédio são recorrentes.

 

“Muitas coisas acontecem de forma sútil no dia a dia, tem coisas que a gente sabe que aconteceram simplesmente por ser mulher, porque as vezes há interesse nessa relação. As grandes redações têm a presença feminina, mas elas continuam sendo comandadas por homens. As grandes figuras das redações esportivas são homens. Em muitas situações, as mulheres não têm nem para onde correr dentro de uma redação”

Bibiana Bolson, ESPNW.

 

“Uma vez eu consegui uma entrevista com um grande jogador, importante, em um momento chave que ninguém esperava. Logo depois, ouvi de um colega: ‘Mas também é bonita, é mulher.’ Você tem que estar sempre provando sua capacidade para convencer as pessoas de que você está lá porque você tem potencial. Eu conheço meninas que desistiram da carreira no jornalismo esportivo porque foram assediadas por empresários, jogadores, se sentiam constrangidas e não gostavam da forma como eram tratadas na redação. Desde comentários sobre roupas à situações mais extremas”

Isabela Pagliari, do Esporte Interativo.

 

Bibiana e Isabela passaram por uma humilhação em 2016, enquanto faziam a cobertura da Eurocopa, na França. As jornalistas foram cercadas por um grupo de homens enquanto faziam uma gravação. “Mais de 20 homens vieram correndo na nossa direção, para tentar nos abraçar, tentar nos pegar. Não conseguimos terminar o trabalho, tivemos que sair correndo. Quando fomos relatar para um policial francês o que tinha acontecido, ele foi muito intolerante, nos acusou de estar mentindo” conta Bibiana.

As agressões nas redes sociais são as mais comuns e recorrentes: “Quando a gente expõe uma opinião sobre um determinado assunto, que não agrada os torcedores do time X ou Y, eles respondem “vai lavar uma louça” ou coisas até piores e mais ofensivas como “bom é quando a mulher servia só pra dar a xota pra gente”, diz Monique Danello, do canal Esporte Interativo. Para Ana Hissa, do SporTV, as ofensas são cada vez mais cruéis. Após conseguir uma importante entrevista exclusiva e ser ofendida por um internauta no twitter, ela ficou impressionada com a quantidade de curtidas que o comentário teve e com a reação dos colegas: “Depois de ver um comentário desses, muita gente vira para você e fala: relaxa isso é coisa de internet”, ou “você é zoada dentro de uma redação, dentro de um estádio. São tantas coisas que falam para gente relaxar, relevar, esquecer. Acho que esse movimento vem como um basta para isso tudo. Não é relaxa, esquece, não se importa.”.

A relação com clubes e profissionais do esporte também é complicada. A cada mensagem, uma preocupação em ser mal interpretada ou dar abertura para comentários inadequados e ao assédio. Não há muito tempo, um conhecido jogador mostrou uma foto sua nu no celular para uma jornalista.

 

“Se você sair pra jantar comigo, eu posso te dar mais detalhes sobre isso.”

Resposta de um empresário de jogadores para a jornalista Bibiana Bolson

 

“Durante a apresentação de um jogador, houve uma confusão na hora que ele subiu para o campo e um segurança do clube começou a empurrar a gente. A Cristina* estava grávida e ele estava nos empurrando para cima de uma grade. Eu reclamei falando que ela estava grávida. Ele respondeu: se ela está grávida, está fazendo o que aqui? A gente começou a discutir e ele ameaçou vir para cima de mim”

Monique Danello, do Esporte Interativo. (*nome fictício)

 

Monique Danello fala da importância do momento, “a atitude da Bruna, de compartilhar o vídeo e falar nas redes sociais foi muito importante. As vezes falta coragem, ficamos constrangidas de compartilhar vídeos como esses. São casos corriqueiros”. Bibiana completa, “muito importante mais do que mencionar casos, é esse desejo que a gente tem de refletir e não se sentir sem força, sem poder de mudança, que a gente consiga expor isso também. Nossa intenção é de fato debater outras ações, conversar com Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) para saber se algo pode ser implementado no código desportivo, de que maneira os clubes podem nos acolher, de que forma as queixas podem ser feitas. De que maneira a gente pode levar isso para frente, para que outras se sintam envolvidas e tenham vontade. Nossa intenção é converter isso em ações concretas, criar mecanismos, desenvolver o debate e também falar dessas situações de assedio que acontecem dentro da redação.

 

A hashtag #DeixaElaTrabalhar ficou entre os trending topics do Twitter e foi compartilhada por diversos clubes, organizações de torcidas e profissionais da área. A campanha trouxe luz a situação e já vem tendo resultado, ao levar a discussão – urgente e essencial – para um público mais amplo. Agora, tão importante quanto, é saber quais medidas concretas serão tomadas por todas as partes envolvidas no processo. E o recado está dado: deixa ela trabalhar. Nenhum assédio será tolerado.

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