#AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br Um espaço para mulheres em movimento Wed, 15 Apr 2020 11:52:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Não foi a primeira, mas com certeza foi a ultima https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/19/nao-foi-a-primeira-mas-com-certeza-foi-a-ultima/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/19/nao-foi-a-primeira-mas-com-certeza-foi-a-ultima/#respond Thu, 19 Jul 2018 19:59:59 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/7c0de-deam-delegacia-mulher-1-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1516 por Kelly San

“Quando a experiência vivida da teorização está fundamentalmente ligada aos processos de auto-recuperarão, de libertação coletiva, não existe brecha entre a teoria e a prática”

Beel Hooks

Me chamo Kelly San, sou cria da Maré, historiadora da arte em formação pela UFRJ, entre outras tantas coisas. Tenho um filho chamado Gael, ele é a única coisa boa que tenho de um casamento abusivo que resisti por longos quatro anos.

Lembro como se fosse ontem da primeira vez que meu corpo foi lido como passivo de agressão física. Era uma noite em minha casa, onde amorosamente abri as portas para que pudéssemos construir nossa vida juntxs, e eu cozinhava um arroz. Um arroz que eu pedira a ele pra fazer, e que não fora preparado. Naquele dia, ele tinha me pedido para pegar um pendrive em um determinado lugar, e eu não achei. Cheguei em casa sem o pen drive e na expectativa de comer um arroz fresquinho que, lamentavelmente, não estava nem na idéia de ser feito. Tudo bem, acontece!, eu disse, já propondo: “Vamos pra cozinha agilizar, então?”.  Ao som de uma música que não me recordo, fui bailando no ritmo da comida que estava preparando, até ser questionada sobre não ter conseguido achar o tal do pendrive. Na tentativa de explicar o que havia acontecido fui duramente ofendida com insultos tais como: “estrupício, retardada, não serve pra nada, animal, doente e imbecil”. Não era primeira vez. Explodi, gritando: “Você não fez o arroz, e está tudo bem. Chega!”

O que parecia ser uma súplica de fim, foi só o começo. Ele me mandou “tomar no cu” e eu respondi “vai você”, e isso foi o suficiente para uma agressão física daquelas que não deixam marcas, mas que te destroem: um tapa no pescoço, bem forte, que me fez cair pra frente – até sinto arder enquanto escrevo. Em seguida, acuada e com dedo na minha cara, eu ouvi: “não se manda homem tomar no cu”. O que eu fiz? Me desculpei. E passei a noite sem acreditar no que havia acontecido.

No dia seguinte fui à delegacia da mulher, onde fui MUITO humilhada e até cheguei a ouvir, quando falei onde morava, que não seria possível mandar uma viatura na favela, pois não havia garantias de que o meu agressor não era um traficante. Depois dessas e muitas outras diferentes violências sofridas na delegacia da mulher, da Praça Tiradentes, Rio de Janeiro, fui desencorajada a fazer o registro de ocorrência. Em casa, me sentindo culpada e sendo culpabilizada pelo meu agressor, que por sua vez, dizia que eu estava provocando nele uma conduta violenta, pedi desculpas. Continuei naquela relação, afinal de contas, a “responsabilidade de fazer dar certo era minha” e só fui ladeira abaixo: impedida de freqüentar a faculdade, xingada, humilhada em público, desqualificada, explorada, empurrada, sofria terror psicológico e até estupros – um, inclusive, quando eu ainda estava me recuperando de um parto normal, que chegou a romper um ponto interno.

Sem coragem de contar pra minha família, segui naquele casamento destrutivo e cada vez mais anulador da mulher incrível que hoje eu consigo enxergar que sou. Saí dessa relação depois de muitas outras violências e quando pensei estar livre de viver outra agressão…

Me envolvi com um menino que vi crescer a uma certa distância, e virou um homem que hoje tem 23 anos, cinco a menos que eu. Ele era tão interessante, divertido e cuidadoso. Não demorou muito para eu ficar apaixonada.

Entrei para o grupo de corrida voltado para o público feminino a fim de potencializar o empoderamento de mulheres na favela, do qual ele era treinador.  E tudo começou a não fazer mais sentido entre ele e eu. O que era doce ficou amargo. O cuidado se tornou maus tratos excessivos. O interesse se transformou em um desdenho sem razão,  onde toda hora me via questionando o porque de tanta mudança de comportamento, e a resposta era que estava “tudo bem”. Tentei, sem saber muito bem como, compreender e respeitar os espaços dele, afinal de contas, éramos meros “ficantes” e eu não tinha grandes acessos à sua vida.

Também era noite, e também lembro como se fosse ontem. Era um momento bom onde eu entendi que havia uma boa energia, e pedi para que ele me ensinasse umas técnicas de jiu-jitsu. Imobilizada e aos risos, pois era uma brincadeira, sinalizei que lhe daria um “jeb” e falei para que ele esquivasse, não sei bem como, mas o soco entrou na guarda dele deixando-o enfurecido. Levantei rapidamente, aos muitos pedidos de desculpas para pegar água pra ele e de costas recebi um soco na nuca e chute nas pernas que quase me fizeram cair. Ele se levantou, me chamando pra “brigar em pé” e foi a hora que eu me abaixei dizendo que não. Ele armou um soco dizendo que ia arrebentar minha cara, que me deixaria roxa. Me fechei, agachada no chão, com medo, e ele, desistindo do tal soco, seguiu com as agressões, me pegou pelos braços e começou um sexo forte e doloroso, nunca feito antes, que me deixou com muitos hematomas nas costas, na bunda, nos braços, uma mordida que demoraram longas quatro semanas pra desaparecer e a memória de mais um estupro. Desta vez, não tive coragem de ir a delegacia. Não queria novamente ser hostilizada. E só agora, depois de 8 meses, consegui procurar a ONG para reclamar essa agressão.

Saio dessa segunda experiência de agressão, com a sensação de que nós, enquanto sociedade, não temos medidas eficazes pra lidar com as estruturas operante do machismo em nenhuma escala. Ele existe, fere, anula… E a vítima muita das  vezes fica entre a culpa (por reivindicar uma punição efetiva) ou a passividade pedagógica (meu caso). Isso, falando de um lugar de exceção, pois, na maioria das vezes nossa única opção é a culpa e principalmente, o silêncio.

São dolorosos e duros os impactos que uma agressão tem em nossas vidas, trata-se de marcas que nunca vão nos deixar. Superamos, eu sei! Mas nunca esquecemos. É muito difícil perceber que você estava disposta a dar amor e recebeu violência, quando talvez, honestidade fosse o mais sensato, é duro perceber que o seu corpo foi lido como passivo de socos e chutes…

Diariamente muitas mulheres são agredidas e abusadas nos mais variáveis níveis e formas. Mensurar o impacto que essas violências causam em seus corpos e saúde mental é quase impossível e irreparável em muitos casos. Mas sigo acreditando no afeto e coletividade. Assim como iniciei, fecho com a nossa querida bell.

“teorias arraigadas na tentativa de compreender tanto a natureza da nossa situação atual quanto aos meios pelos quais podemos nos engajar numa resistência capaz de transformar nossa realidade”

Não estamos sozinhas, somos potências!

* Kelly San é mãe, estudante, mulher da favela e feminista

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“A denúncia contra um ex obsessivo que tentou destruir minha carreira e meu trabalho” por Panmela Castro https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/denuncia-panmela-castro/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/denuncia-panmela-castro/#respond Wed, 20 Jun 2018 18:55:23 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1480
Recuperação do mural feita por Panmela Castro em 19 de outubro de 2017.

Por Panmela Castro*

Há dez anos eu iniciei o projeto que hoje se chama Graffiti Pelo Fim da Violência Contra a Mulher e é realizado pela Rede NAMI. No projeto visitamos escolas e comunidades e aplicamos uma metodologia onde conversamos sobre a Lei Maria da Penha e em seguida pintamos um mural temático com os participantes. Logo no início das primeiras oficinas, escutando a facilitadora falar sobre a violência doméstica, eu identifiquei que eu vivenciava uma relação abusiva.

Namorava há algum tempo um rapaz que também era grafiteiro e que por nunca ter me violentado fisicamente, eu pensava ser um cara legal. Com o aprendizado das oficinas, entendi que a agressão física não era o único tipo de violência doméstica, mas que existem outras ações mais sutis que podem ser tão devastadoras quanto um tapa na cara. Eu percebi que tudo o que meu ex chamava de cuidado e proteção, na verdade era controle: um sentimento de posse como se eu fosse mais um dos objetos pertencentes a ele e que tinha o direito de controlar o destino.

Me lembro que eu nunca podia participar de projetos ou pintar com outras pessoas sem que ele estivesse por perto ou desse seu consentimento. Era muito ciumento e por várias vezes me constrangia me acusando de estar “olhando para outros caras”. Nesta época, minha carreira como artista se encontrava completamente estagnada por falta de soberania.

Com muita resistência da parte dele eu rompi o relacionamento. Ainda me lembro de minha madrinha ir atrás de sua mãe pedindo que ela conversasse com ele para me deixasse em paz.  Liberta, logo minha carreira ascendeu, mas volta e meia eu recebia mensagens anônimas negativas e murais meus apareciam riscados com xingamentos. Eu ficava pensando o porquê disso já que eu não possuía embates com pessoas que poderiam chegar a tal ponto de obsessão, a não ser, ele… Ainda alguns me alertavam de vez em outra, para o fato de ele desqualificar o meu trabalho de arte diante do círculo profissional da área. Como minha carreira crescia verticalmente, fui deixando isso tudo para lá, e ignorando, até que, um dia no mês de julho de 2017, eu criei um mural que foi totalmente danificado com letras de graffiti que formavam o nome do meu ex: sua assinatura. A mesma simbologia que ele usava para espalhar sua tag pela cidade; a mesma que eu conservava em arquivo, dezenas de fotos na qual ele aparecia fazendo. Sequencialmente, comecei a receber mensagens postadas em meu Instagram com uma certa constância. Nessas mensagens o público dos meus fãs, patrocinadores, clientes e seguidores em geral eram expostos à xingamentos, ironias, desqualificações do meu trabalho e até mesmo graves acusações de crimes como assassinatos.

Grafiti feito por Panmela em 8 de julho 2017.

Reuni todo este material e busquei ajuda no CIAM e na NUDEM, ambos sem sucesso. Lá me desencorajaram a ir adiante, alegando que tais ações não se enquadravam em violência doméstica. Mas lendo e relendo a Lei Maria da Penha durante esses dez anos de trabalho, ninguém poderia tirar de mim a consciência dos meus direitos.

Eu poderia dissertar aqui sobre a violência psicológica e moral na qual estava passando, mas prefiro ir ao ponto que mais me prejudica: a violência patrimonial que é descrita no Artigo 7o : “entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. Desde que comecei a ser indenizada por marcas que usaram sem autorização a imagem dos meus murais públicos em suas propagandas, entendi que um graffiti mesmo na rua é meu patrimônio intelectual, garantido pela Lei de Direitos Autorais.

Rasura feita pelo ex-namorado de Panmela em 10 de julho de 2017.

Ainda a Lei Maria da Penha garante vínculo trabalhista à vítimas de violência doméstica, pois entre muitos casos, os companheiros e ex companheiro procuram os trabalhos das mulheres a fim que estas sejam mandadas embora e assim passarem por dificuldades financeiras. No meu caso eu não tenho vínculo empregatício, mas danificar meus murais é uma forma de me anular no trabalho já que empresas me contratam para revitalizar espaços e garantir sua permanência sem pichações e outras intervenções e enfim, quem vai querer contratar uma grafiteira que tem suas paredes detonadas?

Para que o meu caso não fosse mais um deixado de lado pelos órgãos públicos, Marielle Franco se ofereceu para me ajudar e com o apoio da advogada do seu gabinete, consegui fazer um BO na delegacia da mulher do centro, receber uma medida protetiva de afastamento, ser atendida pelo Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) que é o órgão da Defensoria Pública e ter meu processo aberto.

Hoje no Brasil estamos passando por um processo de perda de direitos e desmonte dos equipamentos que a Lei Maria da Penha nos garantia, e isso se apresentou ao receber a notícia de que o Juiz considerou que os fatos narrados por mim não sugerem risco à minha integridade psicofísica e que seria necessário perícias e provas a serem produzidas em ação civil. Uma das coisas que aprendi com as oficinas do meu projeto é que a violência doméstica acontece sem testemunhas e que um homem não pode decidir sobre como eu me sinto. Junto à minha defensora pública, pedi a reconsideração do processo. Refiz o meu mural e nele coloquei uma mensagem sobre as mulheres denunciarem e irem atrás de seus direitos juntamente com o número do ligue 180 que é canal direto de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população de mulheres em todo o país (a ligação é gratuita) e a partir disso recebi a seguinte mensagem do meu ex: “A Pessoa não precisa se identificar para rasurar essa bosta de grafite. É só jogar uma lata de tinta e eu quero ver vc usar essa merda de medida protetiva de bosta!”

Marielle foi assassinada e eu fiquei orfã de alguém que acreditou na gravidade do que estava acontecendo comigo.

No mês passado aconteceu um festival de graffiti no Rio, e o nome dele estava na lista dos artistas participantes. Comuniquei a produção que eles estavam se associando a um homem agressor de mulher. Logo o festival me comunicou o desejo de afastá-lo das atividades, mas retornando em seguida explicando que por uma questão contratual com um dos patrocinadores, não poderiam fazê-lo. Este patrocinador é uma marca de tinta que apoia o trabalho do meu ex agressor. Eu fico pensando, como uma cara que faz o que faz com as mulheres pode ser usado como exemplo para toda uma geração de novos artistas que irão crescer achando que violência contra mulher é normal? Como uma marca pode apoiar isso?

Cheguei a conclusão do quanto é importante que meu processo não seja mais um arquivado, pois sem esta condenação, apesar dos dois prêmios internacionais de direitos humanos que já recebi pelo meu trabalho com a Lei Maria da Penha e das diversas listas na mídia que ressaltam a minha relevância nesta luta, ainda assim eu poderia ser acusada de mentirosa, louca, e todos os demais adjetivos usados para desqualificar as mulheres quando elas fazem nada mais do que denunciarem o machismo, a violência e irem atrás de seus direitos básicos, como este de não ser agredida por uma pessoa com quem um dia elas dividiram a vida.

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*Panmela Castro é artista, feminista, grafiteira.

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#ChegaDeFiuFiu: uma campanha, um filme, um aprendizado coletivo https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/#respond Fri, 08 Jun 2018 18:26:54 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1444

Por Juliana de Faria, Amanda Kamancheck e Fernanda Frazão

Uma das consequências mais tristes do assédio sexual é a solidão que ele traz. Não queremos ser inocentes: é claro que os traumas psicológicos e as dores físicas decorrentes de uma violência podem ser duradouros, até eternos. Mas a culpabilização da vítima é padrão tão arraigado no processo que leva até a própria mulher a se culpar pelo que sofreu. “Foi a minha roupa? O horário que saí de casa? O caminho pelo qual escolhi passar?” O assediador nos violenta e leva consigo parte da nossa autonomia, da nossa história, pois é difícil falar sobre o ocorrido quando acreditamos que o que aconteceu foi derivado de nossas escolhas.

A Chega de Fiu Fiu, que surgiu em 2013 como a primeira campanha da ong Think Olga, tinha como objetivo denunciar o assédio sexual, principalmente em locais públicos. Aquilo que por anos foi entendido como algo trivial, “parte do jogo de ser homem” ou até mesmo uma brincadeira, não seria mais tolerado. Era preciso mostrar que o que a sociedade normalizava, estava machucando, humilhando e amedrontando as mulheres. E um efeito não mapeado da ação foi justamente o combustível para que ela tivesse força para durar até hoje: unir vítimas ao redor de suas dores, antigas e novas. Falar sobre elas não as eliminava, mas certamente extinguiu a solidão que o silêncio e a vergonha conservavam. Aprendemos que somos mulheres diferentes, mas nossas experiências violentas dialogam entre si. Não por uma opção de vestuário ou caminhar na rua, mas sobretudo por enfrentar a vida como mulheres.

Aprendemos também que a coragem é viral. Basta a denúncia de uma mulher para que outras a sigam – como no jogo de dominó em que a primeira peça derrubada leva consigo todas as outras. Foi essa força coletiva que nos ajudou, lá atrás, a dar mais um passo na campanha. Queríamos produzir um documentário sobre o tema e, por meio de um financiamento coletivo, conseguimos o apoio de mais de 1200 pessoas que igualmente acreditavam no poder do audiovisual como ferramenta de educação social.

A partir da pergunta “a cidade tem um gênero?”, fomos mergulhando em uma série de camadas que nos mostram por que as cidades são inseguras para as mulheres. Percorremos os principais obstáculos ao direito à cidade, desde a ausência da perspectiva de gênero no planejamento urbano, à má qualidade dos serviços de atendimento às vítimas de violência e à escassez de um debate aberto sobre o tema nas escolas.

A fim de demonstrar por que o espaço público não pertence às mulheres, trouxemos para a narrativa a desigualdade de poder entre homens e mulheres no uso desse espaço. Para isso, utilizamos estratégias como diários feitos com celular, onde nós e as personagens catalogávamos assédios do cotidiano; um experimento com um óculos com uma microcâmera, a fim de registrar olhares e falas dos autores da violência; entrevistas diretas com especialistas no tema; grupos focais com os homens, para debater masculinidades; e, mais importante, a história de 3 personagens: Rosa Luz, uma mulher trans, negra e artista visual moradora de Brasília; Raquel Carvalho, manicure e estudante de enfermagem, negra, de Salvador; e Teresa Chaves, professora do Ensino Médio e cicloativista, de São Paulo.

Priorizamos na escolha das personagens não somente diferentes regiões do país, mas dialogar com as mulheres mais vulneráveis, aquelas às quais as políticas não chegam, que são as mulheres negras, pobres, e as trans. Embora as mulheres negras já circulem há muito mais tempo nos espaços públicos, dado que sempre trabalharam como operárias – nas casas de outras pessoas por exemplo –, a elas o direito à cidade é ainda mais restrito. O acesso ao transporte público e à mobilidade como um todo, à moradia, à qualidade de vida e ao lazer são ainda mais limitados. A violência aí aparece de forma brutal e latente, não somente na restrição aos direitos, mas também no assédio que se mostra ainda mais violento e objetificador.

Trazer a força da campanha Chega de Fiu Fiu para um filme foi um esforço imenso. Envolveu reviver violências e registrá-las. Mas, nossa grande preocupação sempre foi mostrar a agência das mulheres, sua força e capacidade de transformação de um cenário hostil e opressor. Queríamos mostrar como elas estão ocupando as cidades, a partir de uma perspectiva feminista, seja na internet ou nas ruas. E, com isso, trazer ideias sobre como construir juntas cidades para as mulheres. Já não estamos mais sozinhas.

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* Juliana de Faria é fundadora da ONG Think Olga e criadora da campanha Chega de Fiu Fiu; Amanda Kamancheck Lemos e Fernanda Frazão assinam a direção do documentário homônimo, em cartaz nos cinemas

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La Manada: machismo e proteção a estupradores na Justiça espanhola https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/30/la-manada-machismo-na-justica-espanhola/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/30/la-manada-machismo-na-justica-espanhola/#respond Wed, 30 May 2018 13:59:48 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1435
Mulher protesta em frente ao Tribunal em Pamplona onde os acusados do caso “La Manada” foram julgados. Foto: VICTOR J BLANCO (©GTRESONLINE)

*Por Nataly Cabanas

O 8M espanhol de 2018 foi épico. A maior greve geral feminista da história do país colocou a Espanha na vanguarda do feminismo mundial. No mês de abril as ruas voltaram a ser ocupadas, desta vez em espírito de indignação por um caso de estupro coletivo ocorrido em 2016 na festa de San Fermín,, em Pamplona.

La Manada”, como o caso ficou conhecido, era o nome do grupo de whatsapp que mantinham os cinco jovens sevilhanos acusados, dos quais quatro possuíam histórico de abuso sexual. Na primeira noite de festa, conduziram a vítima – uma jovem madrilenha de 18 anos – ao hall de entrada de um prédio e a violentaram repetidamente sem preservativo. Ao final, para coroar, roubam-lhe o celular deixando-a incomunicável. Até a data do veredito final, a defesa protagonizou uma campanha difamadora da vítima na imprensa e nos autos. Como resposta crescia nas redes um movimento em defesa da jovem. No dia do julgamento, 26 de abril, coletivos de feministas se reuniram em frente ao Palácio da Justiça de Navarra. A acusação pedia 22 anos de prisão por agresión sexual (estupro). Porém a sentença final foi: 9 años por delito continuado de abuso sexual. No Código Penal Espanhol o abuso caracteriza-se quando o ato sexual é praticado sem consentimento, porém sem uso violência ou intimidação. Não temos delito equivalente no Código Penal Brasileiro. Segundo a advogada feminista Gabriela Biazi Justino da Silva: “A tendência é que aqui casos como esse sejam considerados estupro ou estupro de vulnerável”.

Os cinco acusados no caso “La Manada”: Antonio Manuel Guerrero (30 anos), guarda civil; Jesús Escudero (30 anos), cabeleireiro; Jose Ángel (27 anos) Prenda, sem ocupação; Ángel Boza (26 anos), estudante; Alfonso Jesús Cabezuelo (30 anos), militar. Foto: Reprodução

Contraditório em sua própria definição, o abuso sexual espanhol não vê na falta de consentimento uma violência. Assim, o que deveria ser a prova cabal da acusação acabou tornando-se o grande trunfo do acusados. Um dos estupradores gravou em seu celular o ato e, como troféu, compartilhou no grupo. As imagens revelam uma vítima em estado de choque: “só queria que tudo acabasse depressa então fechei os olhos para não ter de ver nada” – disse a vítima. Submeter-se para sobreviver. Cegados pela misoginia, os juízes não viram violência ou intimidação no vídeo, e assim reduziram a pena em mais da metade do tempo.

O veredito das ruas era categórico: No es abuso, es violación. No mesmo dia protestos por toda a Espanha eram convocados através das hashtags #NoesNo, #YoSiTeCreo #LaManadaSomosNosotras. Um novo 8M, mais combativo. O fracasso da Justiça ofendeu a todas as mulheres.  

O caso ganharia contornos ainda mais surrealistas com o voto de um dos juízes, que decide pela absolvição dos cinco, alegando ver no vídeo um clima de “festivo prazer. É a gota d’água para explodir a revolta. Nas ruas vê-se estampado o rosto do juiz sob a legenda “cúmplice de estupradores”. Um abaixo-assinado pede sua destituição do cargo. Nos dias que se seguem é convocado em Madrid o protesto Stop Cultura de la Violación. Das redes brota uma  hashtag, o #cuéntalo, novo diapasão de depoimentos de agressões sexuais. É o encontro do #metoo com o #meuprimeiroassédio, agressões da infância, assédios que aconteceram ontem, muito cabe no #cuéntalo. E ainda sobra espaço para florescer um novo gênero, o “se lo cuento porque Maria no lo puede”. São mulheres relembrando as histórias daquelas que já se foram, vítimas do feminicídio. Abalado pela opinião pública, o governo atual convoca um Conselho para rever a tipificação dos crimes contra a liberdade sexual no Código Penal Espanhol. O Conselho, que se pretende reformador do machismo, é composto por um total de vinte membros, dos quais todos são… homens. O movimento feminista espanhol promete que os protestos não vão parar.

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*Nataly Cabanas é jornalista brasileira e mora em Madri.

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