#AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br Um espaço para mulheres em movimento Wed, 15 Apr 2020 11:52:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Família Submersa e Los Silencios https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/04/08/familia-submersa-e-los-silencios/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2019/04/08/familia-submersa-e-los-silencios/#respond Mon, 08 Apr 2019 16:20:55 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1677 *Por Luciana Veras

Há, entre Família submersa (Argentina/Brasil/Alemanha/Noruega, 2018) e Los silencios  (Brasil/Colômbia/França, 2018), duas produções sul-americanas em exibição no Brasil – a primeira já em cartaz, a segunda em rodada de pré-estreias e lançamento confirmado para esta próxima quinta-feira, 11 -, uma infinidade de elos para além do idioma. Sim, existe a força do espanhol como elemento catalisador de uma espécie de fraternidade geográfica, como se o continente exercesse uma gravidade particular a fim de atrair suas respectivas protagonistas para lidar com suas tragédias. Mas não é só da linguagem e seus meandros afetivos que se cinzelam os vínculos entre ambos os filmes.

Antes mesmo de pensarmos nos pontos de convergência, temos dois filmes dirigidos por mulheres. Atrizes que se tornaram realizadoras, María Alché e Beatriz Seigner entregam ao público seus longas-metragens com maturidade na condução estética e firmeza no posicionamento político: sim, fazer cinema com uma equipe majoritariamente feminina é uma ato da política, ainda mais quando exibidos em um país como o nosso, onde machismo e misoginia estão arraigados em sua matriz.

Pois na lista dos créditos, lá estão a argentina María e a brasileira Beatriz cercadas por profissionais como as fotógrafas Hélène Louvart e Sofia Oggioni, que respectivamente concebem o visual de Família submersa e Los silencios de modo a estarmos, nas duas obras, em um contínuo mergulho nas sensações de Marcela (Mercedes Morán) e Amparo (Marleyda Soto). As personagens principais nos surgem como telas em branco, cujos contornos e matizes vão sendo definidos pelos enredos e, também, pela construção imagética. Palavra e imagem, assim, conduzem Marcela e Amparo, e por conseguinte a todas nós, em delicadas travessias de ternura e memória.

María e Mercedes trabalharam juntas em A menina santa (2004), da cineasta portenha Lucrecia Martel, e agora revigoram a parceria em Família submersa. Marcela mora em Buenos Aires, é mãe de duas meninas e um menino, dona de um apartamento repleto de evidências da rotina familiar (a louça na pia, a bicicleta no corredor, as tarefas com o caçula) e com uma vida em espiral depois da morte da irmã. No processo de esvaziar o apartamento da falecida, ela encontra em Nacho (Esteban Bigliardi), jovem amigo de seus filhos, um aliado improvável que lhe ajudará a singrar os mares de tristeza.

A diretora quis confrontar as sensações que invadem uma mulher a vivenciar o que ela descreve como “epicentro do luto”: algumas das coisas que a atravessam são triviais – ,o que fazer com as plantas que Rina criava e seus vários casacos de pele? – e outras são metafísicas, como as visitas que os parentes já mortos insistem em lhe fazer. “Queria transmitir isso deixando uma sensação aberta para que cada espectador fizesse sua própria leitura”, afirma María.

Maria Alche, diretora de Familia Submersa

Eis um convite, na verdade, igualmente proposto por Beatriz em Los silencios. O que sabemos de Amparo quando ela irrompe na tela, passageira em uma canoa que trafega pelo rio numa noite escura? Ela chega a uma pequena cidade lastreada e alagada na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, com dois filhos, Nuria (María Paula Tabares Peña) e Fabio (Adolfo Savilvino) e um pleito: que a morte de seu marido nos conflitos armados das selvas colombianas seja reconhecida, ainda que o corpo nunca tenha sido resgatado dos confins para onde convergem vivos e mortos.

Mas acontece que o marido, de nome Adão como o primeiro criado pelos desígnios divinos (vivido por Enrique Díaz), ressurge em sua casa de palafitas. Carrega uma metralhadora, senta com Amparo e seus filhos para tomar sopa, vai a uma reunião…. Na ilha onde vive com suas crianças e seus fantasmas, Amparo aprende que vida e morte não precisam estar em cizânia. Talvez nelas possa haver uma coexistência, como se passado, presente e futuro fossem capazes de se imiscuir nas águas turvas do rio Amazonas.

Gravação de Los Silencios

Uma temporalidade dilatada, a ausência de uma fronteira nítida entre os que se foram e os que aqui ficaram e narrativas ancoradas em duas mulheres sem nada a temer: cinzelando os caminhos entre Los silencios e Família submersa, Beatriz Seigner e María Alché nos oferecem perspectivas interessantes para olhar questões como maternidade e relações familiares. Com seus filmes, feito por mulheres de fibra sobre mulheres que tomam as rédeas de suas existências e se descortinam ante as probabilidades e impossibilidades que delas resultam, criam duas personagens inesquecíveis. Contudo, por mais ficcionais que sejam, Amparo e Marcela simbolizam as mulheres da contemporaneidade: seja no trabalho braçal que a primeira assume ou na liberdade para se revisitar que a segunda adota, não existe lugar que elas não possam reivindicar.

Se isso decorre do talento das duas realizadoras, da potência que impregna as duas produções com olhar e labor femininos, da magia que assombra as obras de arte a captar o espírito do tempo ou da soma desses fatores, respostas hão de surgir da experiência de assistir a Los silencios e Família submersa. É bom lembrar, sempre, que no Brasil de 2019, assim como um presidente não parece ser um presidente, esses dois filmes não são apenas lançamentos a ser percebidos nos roteiros que ainda resistem nas páginas dos jornais impressos. São atos políticos, que podem repercutir como ferramentas a ser manejadas no campo onde se disputam as narrativas de hoje – a internet.

É preciso vê-los e deles falar. A luta por paridade de gênero e representatividade feminina no cinema, afinal, é contínua, constante e coletiva. Feminismo é revolução.

 

*Luciana Veras é repórter especial da revista Continente (www.revistacontinente.com.br) e coautora do livro Eu Acho é Pouco – O Carnaval em vermelho e amarelo (Zolu, 2019).

 

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#ChegaDeFiuFiu: uma campanha, um filme, um aprendizado coletivo https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/#respond Fri, 08 Jun 2018 18:26:54 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1444

Por Juliana de Faria, Amanda Kamancheck e Fernanda Frazão

Uma das consequências mais tristes do assédio sexual é a solidão que ele traz. Não queremos ser inocentes: é claro que os traumas psicológicos e as dores físicas decorrentes de uma violência podem ser duradouros, até eternos. Mas a culpabilização da vítima é padrão tão arraigado no processo que leva até a própria mulher a se culpar pelo que sofreu. “Foi a minha roupa? O horário que saí de casa? O caminho pelo qual escolhi passar?” O assediador nos violenta e leva consigo parte da nossa autonomia, da nossa história, pois é difícil falar sobre o ocorrido quando acreditamos que o que aconteceu foi derivado de nossas escolhas.

A Chega de Fiu Fiu, que surgiu em 2013 como a primeira campanha da ong Think Olga, tinha como objetivo denunciar o assédio sexual, principalmente em locais públicos. Aquilo que por anos foi entendido como algo trivial, “parte do jogo de ser homem” ou até mesmo uma brincadeira, não seria mais tolerado. Era preciso mostrar que o que a sociedade normalizava, estava machucando, humilhando e amedrontando as mulheres. E um efeito não mapeado da ação foi justamente o combustível para que ela tivesse força para durar até hoje: unir vítimas ao redor de suas dores, antigas e novas. Falar sobre elas não as eliminava, mas certamente extinguiu a solidão que o silêncio e a vergonha conservavam. Aprendemos que somos mulheres diferentes, mas nossas experiências violentas dialogam entre si. Não por uma opção de vestuário ou caminhar na rua, mas sobretudo por enfrentar a vida como mulheres.

Aprendemos também que a coragem é viral. Basta a denúncia de uma mulher para que outras a sigam – como no jogo de dominó em que a primeira peça derrubada leva consigo todas as outras. Foi essa força coletiva que nos ajudou, lá atrás, a dar mais um passo na campanha. Queríamos produzir um documentário sobre o tema e, por meio de um financiamento coletivo, conseguimos o apoio de mais de 1200 pessoas que igualmente acreditavam no poder do audiovisual como ferramenta de educação social.

A partir da pergunta “a cidade tem um gênero?”, fomos mergulhando em uma série de camadas que nos mostram por que as cidades são inseguras para as mulheres. Percorremos os principais obstáculos ao direito à cidade, desde a ausência da perspectiva de gênero no planejamento urbano, à má qualidade dos serviços de atendimento às vítimas de violência e à escassez de um debate aberto sobre o tema nas escolas.

A fim de demonstrar por que o espaço público não pertence às mulheres, trouxemos para a narrativa a desigualdade de poder entre homens e mulheres no uso desse espaço. Para isso, utilizamos estratégias como diários feitos com celular, onde nós e as personagens catalogávamos assédios do cotidiano; um experimento com um óculos com uma microcâmera, a fim de registrar olhares e falas dos autores da violência; entrevistas diretas com especialistas no tema; grupos focais com os homens, para debater masculinidades; e, mais importante, a história de 3 personagens: Rosa Luz, uma mulher trans, negra e artista visual moradora de Brasília; Raquel Carvalho, manicure e estudante de enfermagem, negra, de Salvador; e Teresa Chaves, professora do Ensino Médio e cicloativista, de São Paulo.

Priorizamos na escolha das personagens não somente diferentes regiões do país, mas dialogar com as mulheres mais vulneráveis, aquelas às quais as políticas não chegam, que são as mulheres negras, pobres, e as trans. Embora as mulheres negras já circulem há muito mais tempo nos espaços públicos, dado que sempre trabalharam como operárias – nas casas de outras pessoas por exemplo –, a elas o direito à cidade é ainda mais restrito. O acesso ao transporte público e à mobilidade como um todo, à moradia, à qualidade de vida e ao lazer são ainda mais limitados. A violência aí aparece de forma brutal e latente, não somente na restrição aos direitos, mas também no assédio que se mostra ainda mais violento e objetificador.

Trazer a força da campanha Chega de Fiu Fiu para um filme foi um esforço imenso. Envolveu reviver violências e registrá-las. Mas, nossa grande preocupação sempre foi mostrar a agência das mulheres, sua força e capacidade de transformação de um cenário hostil e opressor. Queríamos mostrar como elas estão ocupando as cidades, a partir de uma perspectiva feminista, seja na internet ou nas ruas. E, com isso, trazer ideias sobre como construir juntas cidades para as mulheres. Já não estamos mais sozinhas.

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* Juliana de Faria é fundadora da ONG Think Olga e criadora da campanha Chega de Fiu Fiu; Amanda Kamancheck Lemos e Fernanda Frazão assinam a direção do documentário homônimo, em cartaz nos cinemas

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