#AgoraÉQueSãoElas https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br Um espaço para mulheres em movimento Wed, 15 Apr 2020 11:52:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Minha história de aborto https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/08/02/minha-historia-de-aborto/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/08/02/minha-historia-de-aborto/#respond Thu, 02 Aug 2018 15:53:56 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/a0fc04700984f8a9553d266f227f5a26-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1536 Por Ladyane Souza

Eu seria chamada de L nas histórias. Aqui tenho nome e sobrenome. Quero que vejam meu rosto – sou Ladyane Souza, tenho 22 anos, fiz um aborto há aproximadamente 2 anos. Não suporto mais ser uma mulher anônima, um número entre o meio milhão que todos os anos se arrisca por um aborto na clandestinidade no Brasil. Sou advogada, uma mulher informada, parte das estatísticas de privilégio da sociedade brasileira – de classe média e branca. Mas como uma mulher comum, acabei em uma feira de rua para comprar os remédios para fazer o procedimento.

Não sei quais são as palavras certas, pois se digo “gravidez não planejada”, “erro de planejamento familiar”, “troca de métodos” – todas são insuficientes para descrever o que houve. Eu tinha um namorado e estávamos em mudança de métodos, do anticoncepcional para o DIU hormonal. Acho que isso já aconteceu com muitos homens e mulheres, eu não fui a primeira. Minha menstruação estava com atraso de quatro semanas, fiz um teste de farmácia e logo depois um de laboratório. Nós dois sabíamos que não poderíamos ter um filho naquele momento. Eu era estudante, vivia na casa dos meus pais.

Fiquei desesperada, meus sonhos de formatura ou de uma vida melhor estariam suspensos. Tive muito medo de morrer. Meu companheiro na época discordava de mim, mas me apoiou na decisão. Foi uma decisão responsável, eu ainda quero ser mãe um dia. O mais difícil foi o silêncio, porque eu não falei nem pra minha mãe, nem mesmo para as minhas melhores amigas, porque eu tinha medo da lei e medo de me julgarem.

Eu sabia que o método mais seguro seria receber os medicamentos de organizações que apoiam mulheres no mundo. Havia o risco de os medicamentos ficarem retidos na alfândega e de eu atrasar ainda mais para fazer o procedimento. A saída foi ir a uma feira em Brasília e procurar os remédios. Paguei R$700,00 e recebi os medicamentos enrolados em um papel – nunca vou saber mesmo o que tomei. O vendedor dizia serem cytotec. Estudei o que podia na internet; fui em sites como a Organização Mundial de Saúde e sabia se eu recebesse o cytotec teria muitas chances de tudo dar certo. Eu não conseguiria a mifepristona, o medicamento que combinado ao cytotec me daria 98% de segurança de tudo dar certo.

Era pouco tempo de atraso menstrual, por isso coloquei quatro medicamentos embaixo da língua durante meia hora. Esperei, senti dores, enjôo, quando comecei a sangrar. Sabia que não deveria ir ao hospital, eu tinha muito medo dos médicos. Só três dias depois do procedimento é que fui a um hospital. Queria saber se tudo estava bem e se havia dado certo. Disse que havia tido um aborto espontâneo, fui examinada sem julgamento.

Como advogada, sei que não deveria contar minha história agora. Por isso, não escrevo como uma advogada, mas como uma mulher comum que conta uma história. Eu deveria ficar oito anos calada para não ter risco de um processo penal. Esse, inclusive, é meu conselho a outras mulheres que fizeram aborto recentemente: por favor, não corram riscos, não contem suas histórias em público. Mas eu comecei a viver um martírio pelo dever do silêncio: como não contar e partilhar minha história com outras mulheres? Contar é uma forma de acomodar nossos sentimentos. Contar é uma forma de cuidar de outras mulheres. Contar é a única forma de prevenir que outras mulheres morram, como foi com Ingriane  Barbosa que tentou um aborto com um talo de mamona no interior do Rio de Janeiro.

Vim aqui para contar: fiz um aborto. Antes de escrever, conversei com meu ex-namorado, minha mãe, meu pai e irmãos, todos me apoiam na decisão de falar. Se sou a mulher comum que se arrisca em uma feira e teme os médicos ao fazer um aborto na clandestinidade, sou também uma mulher privilegiada. Muitas mulheres poderiam me ver na rua ou vestida de advogada em um tribunal e nunca imaginar: eu sou uma das mulheres da estatística de que uma em cada cinco mulheres no Brasil já fez um aborto. Você me imaginaria como uma delas?

Poderia ter sido diferente comigo, como pode ser diferente com outras mulheres. Não é fácil me expor, mas há mulheres que morrem e o meu silêncio é cúmplice dessa injustiça. Não quero que outras mulheres se arrisquem. Falo para que minhas palavras possam ser ouvidas por outras mulheres e amanhã pelo Supremo Tribunal Federal. Estou aqui com a força de minha voz para contar uma história. Eu não morri. É por estar viva que parei de temer a lei penal que obriga à sentença do silêncio – eu fiz um aborto e quero que você ouça a minha história. E conheça o meu rosto.

Ladyane Souza é advogada

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Porque precisamos tanto legalizar o aborto: a ADPF 442 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/30/porque-precisamos-tanto-legalizar-o-aborto-a-adpf-442/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/30/porque-precisamos-tanto-legalizar-o-aborto-a-adpf-442/#respond Mon, 30 Jul 2018 21:47:32 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/12042771_561160214042128_722749177871834907_n-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1530 *Por Luciana Boiteux

A ADPF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, n. 442, protocolada pelo PSOL com apoio do Instituto ANIS, questiona perante o Supremo Tribunal Federal a violação de direitos fundamentais das mulheres diante da manutenção dos artigos 124 e 126 do Código Penal de 1940, que hoje criminalizam o aborto com apenas três exceções, risco de vida e gravidez resultante de estupro, além do feto anencéfalo, incluído posteriormente.

Tal criminalização viola vários direitos das mulheres: dignidade, cidadania, direito à vida, à igualdade, à liberdade, direito de não ser torturada, o direito à saúde e ao planejamento familiar, previstos na Constituição de 1988. É mais do que urgente argumentar pela vida das mulheres contra uma criminalização do século passado, antes da lei do divórcio e da pílula anticoncepcional.

Essa opção de enfrentar o tema no STF surge diante do bloqueio das tentativas de avanço do debate no Parlamento, formado apenas por 11% de mulheres. Mesmo o excelente Projeto de Lei n. 882/15, do Deputado Jean Wyllys de legalizar o aborto acabou sendo impedido pela força da bancada evangélica, que ainda tenta nos fazer recuar com a PEC 181, o Estatuto do Nascituro e o famigerado PL 5069/13.

Enquanto você está lendo esse texto, a cada minuto uma mulher brasileira decide fazer um aborto, e vai realizar esse procedimento, ainda que na ilegalidade e com todos os riscos. A Pesquisa Nacional sobre Aborto, realizada pela ANIS em 2016, mostrou que uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já havia feito pelo menos um aborto. Só no ano de 2015, estima-se que 503 mil mulheres fizeram aborto. E elas são mulheres comuns, a maioria é jovem, tem mais de um filho e segue uma religião. Portanto, mesmo sendo crime, mulheres fazem abortos, ou seja, a criminalização não impede que isso ocorra, mas as submete aos riscos de um aborto inseguro.

Isso porque a interrupção da gravidez na ilegalidade, segundo a mesma pesquisa citada, traz consequências graves: 67% dessas mulheres que fizeram aborto tiveram que ser internadas, enquanto que estudos internacionais recentes apontam para entre 8 e 18% de mortes maternas como decorrentes de abortos inseguros, a maioria de mulheres negras e pobres.

É, então, pela vida das mulheres que precisamos legalizar o aborto. Hoje, a ADPF 442 conta com número recorde de amici curiae que ingressaram com pedido de habilitação no caso. Seguindo seu trâmite, a Relatora, Ministra Rosa Weber, determinou a realização de audiência pública nos dias 03 e 06 de agosto, destinada a ouvir experts, sociedade civil e organizações que atuam no tema, de forma a trazer para o caso informações úteis ao julgamento final, que ainda não tem data.

A ADPF representa um passo muito importante na legalização do aborto no Brasil, ao trazer uma nova esperança à luta do movimento feminista em nosso país, especialmente diante do cenário internacional. Na Europa, todos os países já legalizaram, até a católica Irlanda que recentemente legalizou o aborto. Na América Latina e na África, contudo, a maioria dos países ainda criminaliza mulheres por tal crime, embora tenhamos tido avanços recentes na Bolívia e no Chile, mas especialmente na Argentina, que aprovou na Câmara a legalização do aborto com milhares de mulheres nas ruas com lenços verdes, o que ainda será votado no Senado no próximo dia 08.08.

Esperamos que essa onda verde que veio da Argentina possa soprar no planalto central e fortalecer a ADPF 442 que poderá descriminalizar o aborto e garantir a normatização necessária para legalizar o aborto no Brasil. Aborto seguro, legal e gratuito, é o que as argentinas pedem nas ruas, e que nós pedimos também. Porque legalizar o aborto é defender a vida das mulheres.

 

Luciana Boiteux, Professora de direito da UFRJ e advogada do PSOL na ADPF 442, junto com Luciana Genro, Sinatra Gumieri e Gabriela Rondon.

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Carta Aberta dos alunos da Darcy Ribeiro https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/27/carta-aberta-dos-alunos-da-darcy-ribeiro/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/27/carta-aberta-dos-alunos-da-darcy-ribeiro/#respond Fri, 27 Jul 2018 11:56:12 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/36038097_ri_rio_de_janeiro_rj_22-03-2010_escola_de_cinema_darcy_ribeiro_sera_reformada_e_recebera_um-2-320x213.jpg https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1527 Em reunião realizada no dia 09 de julho de 2018, 13 alunas da Escola de Cinema Darcy Ribeiro relataram às turmas de Roteiro, Direção, Montagem e Produção I assédio sofrido pelo professor Rodrigo Fonseca ao longo das aulas do primeiro semestre do ano corrente.

Rodrigo Fonseca tornou-se professor da turma em março do ano de 2018, aparentemente cordial e prestativo. Docente notável, sempre tentando aproximar-se e agradar os alunos, levava comida e livros para distribuir durante as aulas, sempre sorridente e simpático. Mas sua simpatia tinha interesse restrito e direcionado. Desde as primeiras aulas dava orientações profissionais às suas alunas; os biscoitos e ofertas de livros logo viraram ingressos para filmes e debates, entradas gratuitas em eventos e cursos, bajulações sem fundamento profissional que poucos ou nenhum homem recebiam.

A partir disso, as alunas, crendo em sua boa fé, começaram a ver-se em situações constragedoras.  Ligações durante a madrugada, mensagens abusivas, olhares asquesoros, tentativa de contato físico, perseguição dentro de eventos. A bondade e atenção viraram constatação: a contribuição dele não era profissional, mas sim, dotada de interesse sexual, que como nunca foi correspondido, resultou em inúmeras ofensivas por parte do professor.

O docente não respondia mais às perguntas das alunas assediadas, e quando o fazia, era sem seriedade, demonstrando fúria e imaturidade, colocando-as em posição de extrema opressão. Durante as aulas, fazia piadas vexatórias com as alunas abordadas, com intenção de humilhação.

Com o tempo as aulas se esvaziaram, muitas mulheres ausentes; mulheres disciplinadas, assíduas, já não frequentavam as aulas. Um estranhamento começou a ocorrer, e com ele, uma identificação. As alunas começaram a se falar, e enfim, estavam num grupo de 13 mulheres relatando as mesmas vivências e opressão, do mesmo assediador.

Durante a reunião, foram relatados inúmeros assédios, desde simples cantadas, presentes dados às alunas pelo professor, ligações inescrupulosas, ameaçadoras e em horários inapropriados, a uma tentativa de beijo na boca de uma aluna sem consentimento e perseguição a outra durante um evento. Cabe ressaltar que todas as alunas que informaram ser comprometidas deixaram de contar com a mesma atenção.

Além dos relatos de assédio sexual, foram presenciados durante as aulas assédio moral, com ameaças de perda de pontos para quem questionasse o professor em qualquer conceito que não o agradasse. O mais grave ocorreu no dia 04 de julho, quando o professor disse, grosseiramente e de modo alterado, a um aluno que não responderia nenhuma pergunta enquanto ele “não sentasse o rabinho na cadeira”. Durante a reunião, outras pessoas denunciaram falas racistas, xenófobicas, homofobicas, preconceituosas e intolerantes. Todas travestidas de piada e licença poética.

Cabe ressaltar que o assédio pode vir de uma atitude verbal ou física, com ou sem testemunhas, e acontecer em sala de aula, ônibus, ambiente de trabalho, boates, consultórios médicos, na rua, em templos religiosos. O assédio não tem um local específico. No caso, há clara relação de poder de um professor, reconhecido no mercado, investindo contra alunas que sentem-se intimidadas com as consequências de suas denúncias.

Quando um homem tem interesse em conhecer uma mulher, ou elogiá-la, ele não lhe dirige palavras que a exponham ou a façam sentir-se invadida, ameaçada ou encabulada. Caracteriza-se como assédio verbal (artigo 61, da Lei das Contravenções Penais n. 3.688/1941), quando alguém diz coisas desagradáveis ou invasivas – como podem ser consideradas as famosas “cantadas” – ou faz ameaças.

Diante dos inúmeros relatos, reiterados de forma contundente e emocionada, a turma comunicou à coordenação da Escola de Cinema Darcy Ribeiro em uma reunião com a presença de cerca de 80 alunos, naquele mesmo dia, cobrando providências. Com a gravidade dos fatos e dos inúmeros relatos das alunas, a coordenação se comprometeu em frente aos presentes a desligar o professor, ratificando que esse tipo de comportamento não pode ser aceito pela instituição.

Destarte, reiteramos tudo que foi exposto na reunião e com o pronunciamento oficial da escola, para resguardar a integridade e a honra das alunas denunciantes, que foram vítimas de assédio.

Esta carta não é somente uma denúncia pública e coletiva, mas também uma resposta ao senhor Rodrigo Fonseca. As vítimas são muitas e estão unidas, fortes e tranquilas de sua postura, contando com o apoio da instituição, de todos os discentes e da opinião pública.

Não nos intimidaremos. Não nos silenciará. Somos muitos! Ao contrário do que você e muitos imaginam ao assediar, nós nos falamos e nos cuidamos e denunciamos, sim, cada assédio sofrido. A cada assédio denunciado, outros tantos aparecem. Não por histeria coletiva, não estamos fantasiando, e não queríamos estar aqui hoje, perdendo saúde, tempo e vida para berrar os assédios sofridos; queríamos não ter sido, mas fomos, por você.

Os inocentes não ficarão calados, por mais difícil que seja falar.

*Até o momento presente, a carta consta com a assinatura de 56 alunos da Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

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#QuemFezEssePixoFuiEu: Caça às bruxas de Maceió https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/26/quemfezessepixofuieu-caca-as-bruxas-de-maceio/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/26/quemfezessepixofuieu-caca-as-bruxas-de-maceio/#respond Thu, 26 Jul 2018 21:51:41 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/Captura-de-Tela-2018-07-26-às-6.50.54-PM-320x213.png https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1523 Por Ana Antunes (atriz), Bruna Teixeira (educadora social e empreendedora criativa), Juliana Barretto (antropóloga) e Ticiane Simões (atriz).

 

Bruxa foi um termo designado para classificar, julgar e queimar mulheres. Entre a Idade Medieval e a Idade Moderna, principalmente na Europa: parteiras, rezadeiras, curandeiras e todo tipo de mulheres que assumissem uma postura diferente ao molde feminino construído pelo sistema dominante dos homens eram caçadas e, literalmente, queimadas em praça pública como castigo exemplar. A pergunta que se faz aqui é: na contemporaneidade haveria caça pública de mulheres do tipo “bruxa”? Tudo indica que em Maceió, capital das Alagoas, em pleno nordeste brasileiro, sim.

No último dia 8 de julho a tradicional Praça do Skate foi lugar escolhido (por autoria anônima ou sobrenatural) para ocupação das mulheres pela intervenção urbana das caligrafias de rua. A pista de skate, popularmente conhecida como “Banks”, que estava sendo reformada, ganhou pichações com pautas feministas de direitos sexuais e reprodutivos. Expressões como “a revolução será feminista!” e “meu útero é laico! Legalize!”, foram escritas,  junto a imagens grafitadas em stencil com representações de relacionamentos lésbicos.

No dia seguinte, fotografias da pista de skate com seus novos escritos foram divulgadas na rede social de um jornalista e skatista. A partir de então, o debate se travou entre comentários de cunho machista e lesbofóbico em oposição ao apoio feminista e de admiradores da arte de rua. Lembremos que o skate, o pixo e o grafite são expressões de uma mesma origem: a rua periférica, marginal e transgressora. Essas expressões caminham juntas, o pixo está para o skate, assim com as ondas estão para o surfe. O pixo faz parte do patrimônio da cultura do skate. Inclusive, a pista dos Banks estava há 16 anos sem reformas e completamente abandonada pela Prefeitura de Maceió, mas devidamente pichada. Sempre. A identidade dos “povos das rodinhas” estava por lá há décadas.

Mas, dessa vez, os boys entenderam dessa forma somente até a página 20 e, ao que tudo indica, denunciaram o pixo para as autoridades. E aqui merecemos uma pausa para reafirmar exatamente isso, car@s membrxs da sociedade planetária do skateboard, porque pode parecer constrangedor ou um lapso de escrita, mas não, não é. Skatistas de Maceió denunciam pixo em pista de skate sim! São tempos temerosos, que jamais imaginávamos vivas para ver. Pois bem. A reportagem “Em reforma, praça do Skate é alvo de vandalismo”, publicada no dia 10/07 e repetida nos principais portais de internet, já anunciava em seu título o argumento criminalizador que se seguia. Nela, uma entrevista com o Secretário Municipal de Desenvolvimento Sustentável de Maceió declara a instauração de procedimento criminal no intuito de multar e apreender as realizadoras. Essa mesma afirmativa foi anunciada em outros veículos de comunicação como na rádio e repetidamente no principal telejornal do Estado. A reportagem insistentemente solicitava à população que denunciasse as ditas “vândalas”, perseguindo a pichação de uma forma jamais vista em Alagoas, fato que tornou visível o machismo institucional e a lesbofobia, instalados junto ao órgão e dentro da comunidade de skatistas nutellas da Praça do Skate, que diga-se por passagem, está localizada na orla da cidade em plena Ponta Verde, bairro nobre de Maceió.

Vale a pena trazer aqui alguns indicadores que ressaltam a violência da desigualdade de gênero em Alagoas. O silenciamento de mulheres na “terra dos marechais”, como muitas vezes é referida, não é novidade. Em 2017 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anunciou que apesar de ser um dos estados onde mais se mata mulheres no país, é o que tem a menor quantidade de inquéritos de violência doméstica contra mulher. O que aconteceria com as vozes de denúncia da violência? Chegariam as delegacias? Seriam arquivadas? As imagens na pista de skate são afirmativas que buscam enfrentar o feminicídio, incomodam por abrir possibilidades para reflexão, ação esta que é evitada por quem ocupa confortavelmente espaços de poder.

Porém, dessa vez as vozes não foram silenciadas, muito pelo contrário, ganharam eco. Mulheres de diferentes origens, classes, grupos, sentiram-se afetadas com a ação na praça e sua retaliação resolvendo se posicionar ativamente ante as investigações. A autoria da pichação foi assumida por várias de nós, incluindo figuras públicas de referência para os direitos da mulher no Estado, com publicações em redes sociais através do hashtag #quemfezessepixofuieu. Citamos abaixo trechos de publicações:

“Bom, para quem tiver procurando as “culpadas”, sou eu, sou ela, somos todas nós. Mulheres. Todos os dias. Acordamos e vamos dormir culpadas, sempre. Então, tanto faz pra mim, ser a autora ou não dessa pichação. Podem me culpar, se quiserem. As manas que fizeram, fazem parte de mim, e eu, parte delas. Pq elas disseram tudo o que acredito. Já foi o tempo em que não éramos cúmplices. Oficialmente culpadas. Patriarcalmente culpadas. Não é uma novidade.” (Publicação de Bruna Teixeira, membro da ONG Ateliê Ambrosina)

“#quemfezessepixofuieu e se preparem porque outros tantos estão sendo aplicados agora mesmo, enquanto você lê essa mensagem, por um mana, em qualquer parte da cidade até não sobrar mais espaço para agressões que sofremos todos os dias só por existirmos como fêmeas, alvo de caça. Assumimos o lado de lá. Viramos a mesa. Agora é correr ou aprender a conviver com o que vivemos durante séculos, o medo da possibilidade de ser caçado.” (Autoria desconhecida)

“Quem fez esse pixo fui eu. E aí? O que vai ter?

É tão vergonhoso ver como o estado age ferozmente contra ações de transgressão (desde que sejam elas praticadas por mulheres, para mulheres, sobre mulheres), de “violação do bem público” e blá blá blá. O que incomoda no pixo é seu conteúdo, é sua autoria, sua declaração de guerra contra o patriarcado. #quemfezessepixofuieu e se preparem, porque outros tantos estão sendo aplicados agora mesmo, enquanto você lê essa mensagem, por uma mana, em qualquer parte da cidade até não sobrar mais espaço para as agressões que sofremos todos os dias só por existirmos como fêmea, alvo de caça. Assumimos o lado de lá. Viramos a mesa. Agora é correr ou aprender a conviver com o que vivemos durante séculos, o medo da possibilidade de ser caçado.” (Autoria desconhecida, com disseminação generalizada)

Embora a polissemia da caçada tenha classificado a ação hora como vandalismo, ora como crime, ora como arte ou liberdade de expressão, foi o protagonismo da mulher o marco divisor deste caso, em Maceió. Não vamos retroceder. Se a cidade não inclui a mulher, nós ocupamos. E com certeza a pista do skate não será mais a mesma. Não só mulheres foram afetadas pelas pichações, mas a própria história daquele espaço foi afetada. Quanto ao procedimento de investigação criminal, tudo indica que a autoria continuará atribuída ao sobrenatural. Até porque não seria interessante para o Estado abrir mais um espaço de debate e novamente ouvir nossas vozes ecoarem.  

*As autoras são fundadoras e associadas da Ambrosina – Ateliê para Igualdade de Gênero e Empoderamento de Mulheres, ONG feminista sediada em Maceió-AL que no auge das investigações policiais que estavam baseadas em perfis do facebook, reivindicou a autoria coletiva de todas as mulheres. Hoje, as bruxas autoras dos pixos são incontáveis em Maceió.

 

15.7.2018.

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Fifa, por que te calas sobre o assédio? https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/03/fifa-por-que-te-calas-sobre-o-assedio/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/07/03/fifa-por-que-te-calas-sobre-o-assedio/#respond Tue, 03 Jul 2018 14:00:50 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/julia-globo-640x356-320x213.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1494 por Amanda Célio*

Esta matéria foi fechada no sábado (23) pela manhã, tendo de ser atualizada no domingo (24) à noite, antes do envio, pelo conhecimento de mais um caso de assédio sofrido por uma jornalista brasileira em pleno exercício de seu trabalho na Copa do Mundo de Futebol Masculino da Rússia.

O caso em questão aconteceu no domingo (24), quando a repórter Júlia Guimarães, que entrava ao vivo pela Rede Globo, antes do jogo entre Japão e Senegal, em Ecaterimburgo, foi vítima de um assédio de um torcedor russo que tentava beijá-la no rosto. Júlia conseguiu desviar e advertiu o homem: “Atrevido. Não faça isso. Nunca mais faça isso, ok?”, disse. O torcedor parece se desculpar e ela encerra: “Eu não permito você fazer isso comigo. Isso não é simpático. Isso não é certo. Nunca mais faça isso com uma mulher. Respeito”. Mesmo após o ocorrido, Júlia conseguiu fazer sua entrada ao vivo. Ao site do Globo Esporte, a repórter disse que é a segunda vez que tenta ser agarrada no país que sedia a Copa, fora as situações envolvendo “brincadeiras”, “cantadas” e circunstâncias constrangedoras.

Os assédios diários sofridos por mulheres no ambiente profissional não são novidade e muito menos exclusividade de quem trabalha no meio jornalístico. Essas situações abusivas, muitas vezes, engolida a seco nos bastidores das notícias, levou, por exemplo, a jornalista estadunidense Jessica Bennet a construir um guia irônico e incisivo de como sobreviver ao sexismo no ambiente de trabalho, lançado em 2016, mesclando experiências pessoais e de outras mulheres. Feminist Fight Club – traduzido em mais de 10 idiomas  já ocupou a lista dos mais vendidos do The Wall Street Journal e foi eleito um dos melhores do ano por veículos como a Forbes e o Chicago Tribune.

Com o triste episódio de Júlia, somam em cinco os casos de assédio cometidos contra jornalistas, noticiados pela imprensa mundial na Copa 2018 e iniciada há quase duas semanas, sem nenhuma declaração oficial da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e dos demais órgãos que realizam o evento. O primeiro caso de assédio aconteceu ainda na abertura do evento, quando a repórter colombiana Julieth González Therán, enviada especial da Deutsche Welle a Moscou, foi agarrada à força e beijada por um homem, na praça Manege, enquanto fazia uma transmissão sobre a contagem regressiva para início da cerimônia.

O segundo ocorreu no jogo entre Argentina e Islândia, no dia 16, na parte externa do estádio de Nizhny Novgorod. Um torcedor islandês, fantasiado, ameaçava interromper a transmissão ao vivo da equipe da ESPN e da repórter Agos Larocca. Ele tentou agarrar Agos e precisou ser impedido por um produtor da emissora. No mesmo dia, outros dois torcedores argentinos assediaram e tentaram roubar um beijo de uma compatriota jornalista. A repórter do Superesportes se defendeu com o microfone e o braço para não ser beijada pelos agressores.

Um grupo de brasileiros, que já foi identificado, também protagonizou um episódio de assédio na Rússia, com uma repórter local que não entendia o português – todo o mundo viu eles cantando ofensas misóginas, machistas e racistas.

O assédio contra mulheres jornalistas não é uma especificidade da Copa da Rússia, uma vez que está umbilicalmente ligado aos primórdios do futebol. Na última Copa, quando o Mundial aconteceu no Brasil, a repórter da Rede Globo Sabina Samonato foi agarrada durante as transmissões, duas vezes, por torcedores que a beijaram no rosto, sem o consentimento dela. Casos humilhantes, envolvendo jornalistas esportivas, que foram diminuídas, xingadas ou escrachadas por homens pelo seu gênero durante o trabalho levaram um grupo de jornalistas brasileiras a criarem, em 2018, o movimento “Deixa Ela Trabalhar”.

Mesmo com a repercussão desses casos estampadas nas mídias do mundo inteiro e pipocando nas redes sociais, a Fifa, organizadora do maior evento esportivo do mundo, com os seus 100 anos de fundação, não pretende mudar o curso dessa luta histórica contra o machismo no futebol e, novamente, desfila na Copa da Rússia com o seu mais batido figurino: o silêncio.  

Todo ano de Copa do Mundo, a entidade é pressionada a se posicionar sobre campanhas mais incisivas de racismo e homofobias nos estádios. Em março, a entidade e o Comitê Organizador foram colocados na parede para agir com mais firmeza no combate ao racismo em estádios russos. Isso porque em amistoso realizado naquele mês em São Petersburgo, entre Rússia e França, Pogba e outros jogadores afro-franceses, como Kanté e Dembélé, ouviam imitações de macaco cada vez que pegavam na bola. Por essa situação, o presidente Gianni Infantino disse, na época, que a entidade será “muito, muito firme” no combate ao racismo durante o Mundial.

Na Copa de 2014, a organização foi duramente criticada pela falta de rigor no enfrentamento ao racismo e à homofobia. Gritos de “bicha”, especialmente em jogos do México (“putos” era a palavra usada), e imitações de macaco no jogo entre Alemanha e Gana provocaram desconforto a entidades que combatem manifestações desse tipo. Neste ano, mudanças a passos lentos já puderam ser notadas.

 

O mínimo esperado de uma entidade da magnitude da Fifa e do evento esportivo em questão – campanhas, pronunciamento, sanções – já representa um começo. O mesmo definitivamente não ocorre quando se trata de machismo e assédio contra jornalistas. Ora, o que acontece fora de seus estádios não lhe diz respeito? Existe um fenômeno mundial de jornalistas que são assediadas e atacadas sem consentimento diariamente, principalmente em coberturas de futebol e em nenhum desses casos existe um posicionamento da Fifa ou de federações nacionais.  

Não deveriam os torcedores que causam o infortúnio serem punidos? Não cabe à seleção dos torcedores que assediam ser igualmente multada por esse tipo de conduta? Nem ao menos uma nota de repúdio? Além disso, a Fifa poderia pressionar, junto ao país sede do evento – considerado um dos mais machistas e homofóbicos do mundo, diga-se de passagem – a tomar medidas protetivas que punissem esses torcedores ou a realizar campanhas junto a coletivos e associações oficiais de jornalistas para levantar a questão do machismo em jogos de futebol. Era o mínimo esperado.

O silenciamento da organização não causa espanto, muito pelo contrário. A Fifa é conhecida historicamente por não se pronunciar em casos de machismo no futebol, mesmo que tudo esteja acontecendo debaixo dos seus olhos. Afinal, até quando o assédio e desrespeito com uma mulher, que esteja cobrindo o evento ou não, será tolerado pela instituição? O que é, ainda, necessário ocorrer para que haja algum tipo de atitude do referido órgão? De quem uma postura mais incisiva pode ser cobrada, senão da segunda organização internacional com mais participantes do mundo, que abraça 209 organizações esportivas privadas associadas representando o esporte em países ou territórios?

Com esse histórico questionável, é fácil concordar com o pesquisador Ellis Cashmore, da Universidade Staffordshire, autor do livro Making sense of sports (Entendendo os esportes), que, entrevistado pela revista Época em 2014 para comentar sobre o caso de machismo envolvendo a auxiliar em arbitragem Fernanda Colombo – por cometer dois erros seguidos, um na partida entre São Paulo e CRB e outro no clássico mineiro entre Atlético-MG e Cruzeiro, foi insultada pelo diretor de futebol do Cruzeiro na época, Alexandre Mattos: “Se é bonitinha, que vá posar para a Playboy, não trabalhar com futebol”, disse.

Para Elis Cashmore, essas atitudes ocorrem porque o machismo não coloca em risco o modelo de negócios da Fifa. Segundo Cashmore, se o comportamento racista ficar impregnado no futebol, o crescimento econômico da Fifa nesses mercados pode ser comprometido. Já com o machismo, a Fifa não vê o mesmo risco. Não à toa, episódios como os comentários do dirigente do Cruzeiro e a falta de posicionamento em casos extra-campo, mesmo em competições credenciadas pelo órgão, são comuns em várias partes do mundo. O próprio ex-presidente da Fifa Joseph Blatter já sugeriu certa vez em uma declaração que as jogadoras mulheres deveriam usar shorts curtos e mais justos para “ter uma estética mais feminina”. As mulheres nunca serão levadas a sério enquanto o futebol for controlado exclusivamente por homens.

Jornalistas esportivas que passam por situações de machismo e assédio normalmente encontram amparo apenas nos colegas de profissão, alguns coletivos de jornalistas ou sindicatos, mas nunca há uma posição ou atitude vinda por órgãos oficiais de futebol, nem mesmo quando os insultos acontecem dentro dos campos.

Nesta sexta-feira (22), a ONU Mulheres Brasil divulgou uma nota pública em solidariedade às mulheres do mundo e contra a violência de gênero na Copa 2018. A ONU defende que “grandes eventos devem colocar a questão de gênero e os direitos das mulheres no centro dos encaminhamentos preparativos por meio de medidas de prevenção e consciência pública sobre a violência contra as mulheres. Iniciativas de prevenção, a exemplo da campanha do Secretário-Geral da ONU “UNA-SE pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, precisam ser adotadas pelas próprias instituições organizadoras de grandes eventos, ampliando o alcance e a circulação de mensagens de conscientização sobre práticas e comportamentos sociais baseados no respeito e na igualdade de direitos e alerta sobre como a violência de gênero acontece, como evitar, como apoiar as vítimas e como responsabilizar os agressores”.

A caminhada até o fim da Copa é longa, não pelas duras horas cobrindo uma seleção ou outra, pelos pesos dos equipamentos nos ombros ou por estar longe de casa, mas por, além de tudo isso, sair para trabalhar sabendo que, a qualquer momento, poderá ser desrespeitada, insultada e assediada por homens e “poderosos” que ainda não aprenderam o significado da palavra respeito. A indignação é por eles e pela Fifa, afinal: até quando ela será co-responsável pelos assédios sofridos daquelas que só querem trabalhar?

Amanda Célio é jornalista e feminista.

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“A denúncia contra um ex obsessivo que tentou destruir minha carreira e meu trabalho” por Panmela Castro https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/denuncia-panmela-castro/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/denuncia-panmela-castro/#respond Wed, 20 Jun 2018 18:55:23 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1480
Recuperação do mural feita por Panmela Castro em 19 de outubro de 2017.

Por Panmela Castro*

Há dez anos eu iniciei o projeto que hoje se chama Graffiti Pelo Fim da Violência Contra a Mulher e é realizado pela Rede NAMI. No projeto visitamos escolas e comunidades e aplicamos uma metodologia onde conversamos sobre a Lei Maria da Penha e em seguida pintamos um mural temático com os participantes. Logo no início das primeiras oficinas, escutando a facilitadora falar sobre a violência doméstica, eu identifiquei que eu vivenciava uma relação abusiva.

Namorava há algum tempo um rapaz que também era grafiteiro e que por nunca ter me violentado fisicamente, eu pensava ser um cara legal. Com o aprendizado das oficinas, entendi que a agressão física não era o único tipo de violência doméstica, mas que existem outras ações mais sutis que podem ser tão devastadoras quanto um tapa na cara. Eu percebi que tudo o que meu ex chamava de cuidado e proteção, na verdade era controle: um sentimento de posse como se eu fosse mais um dos objetos pertencentes a ele e que tinha o direito de controlar o destino.

Me lembro que eu nunca podia participar de projetos ou pintar com outras pessoas sem que ele estivesse por perto ou desse seu consentimento. Era muito ciumento e por várias vezes me constrangia me acusando de estar “olhando para outros caras”. Nesta época, minha carreira como artista se encontrava completamente estagnada por falta de soberania.

Com muita resistência da parte dele eu rompi o relacionamento. Ainda me lembro de minha madrinha ir atrás de sua mãe pedindo que ela conversasse com ele para me deixasse em paz.  Liberta, logo minha carreira ascendeu, mas volta e meia eu recebia mensagens anônimas negativas e murais meus apareciam riscados com xingamentos. Eu ficava pensando o porquê disso já que eu não possuía embates com pessoas que poderiam chegar a tal ponto de obsessão, a não ser, ele… Ainda alguns me alertavam de vez em outra, para o fato de ele desqualificar o meu trabalho de arte diante do círculo profissional da área. Como minha carreira crescia verticalmente, fui deixando isso tudo para lá, e ignorando, até que, um dia no mês de julho de 2017, eu criei um mural que foi totalmente danificado com letras de graffiti que formavam o nome do meu ex: sua assinatura. A mesma simbologia que ele usava para espalhar sua tag pela cidade; a mesma que eu conservava em arquivo, dezenas de fotos na qual ele aparecia fazendo. Sequencialmente, comecei a receber mensagens postadas em meu Instagram com uma certa constância. Nessas mensagens o público dos meus fãs, patrocinadores, clientes e seguidores em geral eram expostos à xingamentos, ironias, desqualificações do meu trabalho e até mesmo graves acusações de crimes como assassinatos.

Grafiti feito por Panmela em 8 de julho 2017.

Reuni todo este material e busquei ajuda no CIAM e na NUDEM, ambos sem sucesso. Lá me desencorajaram a ir adiante, alegando que tais ações não se enquadravam em violência doméstica. Mas lendo e relendo a Lei Maria da Penha durante esses dez anos de trabalho, ninguém poderia tirar de mim a consciência dos meus direitos.

Eu poderia dissertar aqui sobre a violência psicológica e moral na qual estava passando, mas prefiro ir ao ponto que mais me prejudica: a violência patrimonial que é descrita no Artigo 7o : “entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. Desde que comecei a ser indenizada por marcas que usaram sem autorização a imagem dos meus murais públicos em suas propagandas, entendi que um graffiti mesmo na rua é meu patrimônio intelectual, garantido pela Lei de Direitos Autorais.

Rasura feita pelo ex-namorado de Panmela em 10 de julho de 2017.

Ainda a Lei Maria da Penha garante vínculo trabalhista à vítimas de violência doméstica, pois entre muitos casos, os companheiros e ex companheiro procuram os trabalhos das mulheres a fim que estas sejam mandadas embora e assim passarem por dificuldades financeiras. No meu caso eu não tenho vínculo empregatício, mas danificar meus murais é uma forma de me anular no trabalho já que empresas me contratam para revitalizar espaços e garantir sua permanência sem pichações e outras intervenções e enfim, quem vai querer contratar uma grafiteira que tem suas paredes detonadas?

Para que o meu caso não fosse mais um deixado de lado pelos órgãos públicos, Marielle Franco se ofereceu para me ajudar e com o apoio da advogada do seu gabinete, consegui fazer um BO na delegacia da mulher do centro, receber uma medida protetiva de afastamento, ser atendida pelo Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) que é o órgão da Defensoria Pública e ter meu processo aberto.

Hoje no Brasil estamos passando por um processo de perda de direitos e desmonte dos equipamentos que a Lei Maria da Penha nos garantia, e isso se apresentou ao receber a notícia de que o Juiz considerou que os fatos narrados por mim não sugerem risco à minha integridade psicofísica e que seria necessário perícias e provas a serem produzidas em ação civil. Uma das coisas que aprendi com as oficinas do meu projeto é que a violência doméstica acontece sem testemunhas e que um homem não pode decidir sobre como eu me sinto. Junto à minha defensora pública, pedi a reconsideração do processo. Refiz o meu mural e nele coloquei uma mensagem sobre as mulheres denunciarem e irem atrás de seus direitos juntamente com o número do ligue 180 que é canal direto de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população de mulheres em todo o país (a ligação é gratuita) e a partir disso recebi a seguinte mensagem do meu ex: “A Pessoa não precisa se identificar para rasurar essa bosta de grafite. É só jogar uma lata de tinta e eu quero ver vc usar essa merda de medida protetiva de bosta!”

Marielle foi assassinada e eu fiquei orfã de alguém que acreditou na gravidade do que estava acontecendo comigo.

No mês passado aconteceu um festival de graffiti no Rio, e o nome dele estava na lista dos artistas participantes. Comuniquei a produção que eles estavam se associando a um homem agressor de mulher. Logo o festival me comunicou o desejo de afastá-lo das atividades, mas retornando em seguida explicando que por uma questão contratual com um dos patrocinadores, não poderiam fazê-lo. Este patrocinador é uma marca de tinta que apoia o trabalho do meu ex agressor. Eu fico pensando, como uma cara que faz o que faz com as mulheres pode ser usado como exemplo para toda uma geração de novos artistas que irão crescer achando que violência contra mulher é normal? Como uma marca pode apoiar isso?

Cheguei a conclusão do quanto é importante que meu processo não seja mais um arquivado, pois sem esta condenação, apesar dos dois prêmios internacionais de direitos humanos que já recebi pelo meu trabalho com a Lei Maria da Penha e das diversas listas na mídia que ressaltam a minha relevância nesta luta, ainda assim eu poderia ser acusada de mentirosa, louca, e todos os demais adjetivos usados para desqualificar as mulheres quando elas fazem nada mais do que denunciarem o machismo, a violência e irem atrás de seus direitos básicos, como este de não ser agredida por uma pessoa com quem um dia elas dividiram a vida.

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*Panmela Castro é artista, feminista, grafiteira.

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Aborto na Argentina e no Brasil: Esperamos a onda verde! https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/14/aborto-esperamos-a-onda-verde/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/14/aborto-esperamos-a-onda-verde/#respond Thu, 14 Jun 2018 18:26:00 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1459

Por Debora Diniz*

Uma onda verde avança na América Latina. Teve início no extremo sul da região. Quando eleito, o Papa Francisco surpreendeu-se com a escolha, pois “venho quase do fim do mundo”, disse ele. Para nós, a Argentina não é o fim do mundo, e a razão é mais do que a rivalidade no futebol: para as mulheres, nasce ali a esperança. É de lá que se anuncia uma decisão inédita do Congresso Nacional – a possibilidade de descriminalizar o aborto até as primeiras 14 semanas de gravidez. Se aprovada como lei, nenhuma mulher mais poderá ser presa por interromper uma gestação.

Como o Brasil e outros países da América Latina e Caribe, a Argentina é um país entranhado na cultura patriarcal, em que desde os anos 1920 se acredita no uso da lei penal para controlar os corpos das mulheres – uma mulher que faça aborto pode ser penalizada com até 4 anos de prisão. No Brasil, o Código Penal que criminaliza o aborto é de 1940, e uma mulher pode ser presa por até 3 anos, ou investigada até 8 anos depois de realizado o aborto. Além do medo da prisão, há a tortura do silêncio imposto pela lei penal. É para modificar esse quadro injusto contra as mulheres que a onda verde saiu às ruas.

Não foram só mulheres que pediram “tirem seus rosários dos meus ovários” ou “nenhuma mulher morta por aborto clandestino” pelas esquinas de Buenos Aires. Foi todo tipo de gente, como diz a música espanhola sobre a onda feminista pelo país: havia mulher, trans, homem, criança, velho. Talvez, tenham faltado os bispos ou pastores na onda verde, mas alguns mostraram seu respeito pelo silêncio. Há coerência no silêncio obsequioso, pois o projeto de lei fala de valores cristãos para a vida. É pela dignidade, saúde e liberdade de consciência ou crença que um país deve descriminalizar o aborto. Retirar o caráter de crime é respeitar a liberdade de pensamento, inclusive de religião.

Nenhuma mulher será obrigada a fazer um aborto nem na Argentina, nem em nenhum outro país do mundo que o tenha descriminalizado. Cada mulher será livre, no respeito às suas crenças, para tomar a decisão. Hoje, é a liberdade de crença o que se viola ao criminalizar o aborto: as mulheres são carregadas ao risco da clandestinidade, por isso um dos dizeres mais fortes das ruas era “todos somos pró-aborto. Uns pró-aborto clandestino, nós pró-aborto legal”. Vivemos na região do mundo com maior taxa de aborto e, não por coincidência, somos quem mais acredita que a lei penal pode coibir o aborto. Sei que é difícil de entender, mas a fórmula é ao contrário: lei penal não diminui aborto, aumenta. Somente a descriminalização é capaz de reduzir o número de abortos.

A explicação da fórmula é simples, apesar do caráter contra-intuitivo. A legalidade garante que os serviços de saúde ou de educação possam falar de prevenção ao aborto, como menciona o projeto de lei. Quando uma mulher chega a um hospital com evidências de um aborto provocado, hoje, ela não conta a verdade aos profissionais de saúde. Por que? Por medo de ser denunciada. A consequência é que se perde a chance de entender o que se passa na vida desta mulher para que tenha feito um aborto. Perdemos uma oportunidade de prevenção. O que seria prevenção ao aborto? Garantir políticas de saúde acessíveis e universais ao planejamento familiar: desde acesso à informação ao uso correto de métodos anticonceptivos. É isso que diz o debate político na Argentina.

O projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 14 de junho: ganhou o lenço verde, símbolo do sim à vida das mulheres, descrito na proposta como “igualdade real de oportunidades”. Foram 129 votos a 125, um placar apertado, é verdade. Se olharmos para fora do plenário dos deputados, veremos que não há comparação no placar: eram milhares de pessoas com o lenço verde, as fábricas de tecidos não conseguiram responder a demanda. Tanto lá quanto aqui, o tema movimenta paixões, e alguns o consideram matéria religiosa. É acima de tudo uma questão democrática, pois “nem mortas, nem presas por abortar. Aborto legal é uma dívida da democracia”.

Também no Brasil há uma dívida da democracia às mulheres e que o Supremo Tribunal Federal poderá solucionar em breve. Em agosto próximo serão realizadas as audiências públicas sobre descriminalização do aborto, sob a relatoria da Ministra Rosa Weber. É certo que a corte suprema não se move pelas ruas como a política partidária, que até o último instante balançou os indecisos da história no parlamento argentino – esperamos a soberania da razão pública para correção de nosso Código Penal à luz da Constituição Federal de 1988. Mesmo assim, estou certa de que a onda verde que teve início no fim do mundo se agiganta para crescer em Brasília. Seremos milhares de mulheres se somando às argentinas para propagar o “sim à vida das mulheres” nos países da América Latina e Caribe.


Debora Diniz é Antropóloga, Professora da Universidade de Brasília e Pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética)

]]> 0 #ChegaDeFiuFiu: uma campanha, um filme, um aprendizado coletivo https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/chega-de-fiu-fiu/#respond Fri, 08 Jun 2018 18:26:54 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1444

Por Juliana de Faria, Amanda Kamancheck e Fernanda Frazão

Uma das consequências mais tristes do assédio sexual é a solidão que ele traz. Não queremos ser inocentes: é claro que os traumas psicológicos e as dores físicas decorrentes de uma violência podem ser duradouros, até eternos. Mas a culpabilização da vítima é padrão tão arraigado no processo que leva até a própria mulher a se culpar pelo que sofreu. “Foi a minha roupa? O horário que saí de casa? O caminho pelo qual escolhi passar?” O assediador nos violenta e leva consigo parte da nossa autonomia, da nossa história, pois é difícil falar sobre o ocorrido quando acreditamos que o que aconteceu foi derivado de nossas escolhas.

A Chega de Fiu Fiu, que surgiu em 2013 como a primeira campanha da ong Think Olga, tinha como objetivo denunciar o assédio sexual, principalmente em locais públicos. Aquilo que por anos foi entendido como algo trivial, “parte do jogo de ser homem” ou até mesmo uma brincadeira, não seria mais tolerado. Era preciso mostrar que o que a sociedade normalizava, estava machucando, humilhando e amedrontando as mulheres. E um efeito não mapeado da ação foi justamente o combustível para que ela tivesse força para durar até hoje: unir vítimas ao redor de suas dores, antigas e novas. Falar sobre elas não as eliminava, mas certamente extinguiu a solidão que o silêncio e a vergonha conservavam. Aprendemos que somos mulheres diferentes, mas nossas experiências violentas dialogam entre si. Não por uma opção de vestuário ou caminhar na rua, mas sobretudo por enfrentar a vida como mulheres.

Aprendemos também que a coragem é viral. Basta a denúncia de uma mulher para que outras a sigam – como no jogo de dominó em que a primeira peça derrubada leva consigo todas as outras. Foi essa força coletiva que nos ajudou, lá atrás, a dar mais um passo na campanha. Queríamos produzir um documentário sobre o tema e, por meio de um financiamento coletivo, conseguimos o apoio de mais de 1200 pessoas que igualmente acreditavam no poder do audiovisual como ferramenta de educação social.

A partir da pergunta “a cidade tem um gênero?”, fomos mergulhando em uma série de camadas que nos mostram por que as cidades são inseguras para as mulheres. Percorremos os principais obstáculos ao direito à cidade, desde a ausência da perspectiva de gênero no planejamento urbano, à má qualidade dos serviços de atendimento às vítimas de violência e à escassez de um debate aberto sobre o tema nas escolas.

A fim de demonstrar por que o espaço público não pertence às mulheres, trouxemos para a narrativa a desigualdade de poder entre homens e mulheres no uso desse espaço. Para isso, utilizamos estratégias como diários feitos com celular, onde nós e as personagens catalogávamos assédios do cotidiano; um experimento com um óculos com uma microcâmera, a fim de registrar olhares e falas dos autores da violência; entrevistas diretas com especialistas no tema; grupos focais com os homens, para debater masculinidades; e, mais importante, a história de 3 personagens: Rosa Luz, uma mulher trans, negra e artista visual moradora de Brasília; Raquel Carvalho, manicure e estudante de enfermagem, negra, de Salvador; e Teresa Chaves, professora do Ensino Médio e cicloativista, de São Paulo.

Priorizamos na escolha das personagens não somente diferentes regiões do país, mas dialogar com as mulheres mais vulneráveis, aquelas às quais as políticas não chegam, que são as mulheres negras, pobres, e as trans. Embora as mulheres negras já circulem há muito mais tempo nos espaços públicos, dado que sempre trabalharam como operárias – nas casas de outras pessoas por exemplo –, a elas o direito à cidade é ainda mais restrito. O acesso ao transporte público e à mobilidade como um todo, à moradia, à qualidade de vida e ao lazer são ainda mais limitados. A violência aí aparece de forma brutal e latente, não somente na restrição aos direitos, mas também no assédio que se mostra ainda mais violento e objetificador.

Trazer a força da campanha Chega de Fiu Fiu para um filme foi um esforço imenso. Envolveu reviver violências e registrá-las. Mas, nossa grande preocupação sempre foi mostrar a agência das mulheres, sua força e capacidade de transformação de um cenário hostil e opressor. Queríamos mostrar como elas estão ocupando as cidades, a partir de uma perspectiva feminista, seja na internet ou nas ruas. E, com isso, trazer ideias sobre como construir juntas cidades para as mulheres. Já não estamos mais sozinhas.

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* Juliana de Faria é fundadora da ONG Think Olga e criadora da campanha Chega de Fiu Fiu; Amanda Kamancheck Lemos e Fernanda Frazão assinam a direção do documentário homônimo, em cartaz nos cinemas

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La Manada: machismo e proteção a estupradores na Justiça espanhola https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/30/la-manada-machismo-na-justica-espanhola/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/30/la-manada-machismo-na-justica-espanhola/#respond Wed, 30 May 2018 13:59:48 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1435
Mulher protesta em frente ao Tribunal em Pamplona onde os acusados do caso “La Manada” foram julgados. Foto: VICTOR J BLANCO (©GTRESONLINE)

*Por Nataly Cabanas

O 8M espanhol de 2018 foi épico. A maior greve geral feminista da história do país colocou a Espanha na vanguarda do feminismo mundial. No mês de abril as ruas voltaram a ser ocupadas, desta vez em espírito de indignação por um caso de estupro coletivo ocorrido em 2016 na festa de San Fermín,, em Pamplona.

La Manada”, como o caso ficou conhecido, era o nome do grupo de whatsapp que mantinham os cinco jovens sevilhanos acusados, dos quais quatro possuíam histórico de abuso sexual. Na primeira noite de festa, conduziram a vítima – uma jovem madrilenha de 18 anos – ao hall de entrada de um prédio e a violentaram repetidamente sem preservativo. Ao final, para coroar, roubam-lhe o celular deixando-a incomunicável. Até a data do veredito final, a defesa protagonizou uma campanha difamadora da vítima na imprensa e nos autos. Como resposta crescia nas redes um movimento em defesa da jovem. No dia do julgamento, 26 de abril, coletivos de feministas se reuniram em frente ao Palácio da Justiça de Navarra. A acusação pedia 22 anos de prisão por agresión sexual (estupro). Porém a sentença final foi: 9 años por delito continuado de abuso sexual. No Código Penal Espanhol o abuso caracteriza-se quando o ato sexual é praticado sem consentimento, porém sem uso violência ou intimidação. Não temos delito equivalente no Código Penal Brasileiro. Segundo a advogada feminista Gabriela Biazi Justino da Silva: “A tendência é que aqui casos como esse sejam considerados estupro ou estupro de vulnerável”.

Os cinco acusados no caso “La Manada”: Antonio Manuel Guerrero (30 anos), guarda civil; Jesús Escudero (30 anos), cabeleireiro; Jose Ángel (27 anos) Prenda, sem ocupação; Ángel Boza (26 anos), estudante; Alfonso Jesús Cabezuelo (30 anos), militar. Foto: Reprodução

Contraditório em sua própria definição, o abuso sexual espanhol não vê na falta de consentimento uma violência. Assim, o que deveria ser a prova cabal da acusação acabou tornando-se o grande trunfo do acusados. Um dos estupradores gravou em seu celular o ato e, como troféu, compartilhou no grupo. As imagens revelam uma vítima em estado de choque: “só queria que tudo acabasse depressa então fechei os olhos para não ter de ver nada” – disse a vítima. Submeter-se para sobreviver. Cegados pela misoginia, os juízes não viram violência ou intimidação no vídeo, e assim reduziram a pena em mais da metade do tempo.

O veredito das ruas era categórico: No es abuso, es violación. No mesmo dia protestos por toda a Espanha eram convocados através das hashtags #NoesNo, #YoSiTeCreo #LaManadaSomosNosotras. Um novo 8M, mais combativo. O fracasso da Justiça ofendeu a todas as mulheres.  

O caso ganharia contornos ainda mais surrealistas com o voto de um dos juízes, que decide pela absolvição dos cinco, alegando ver no vídeo um clima de “festivo prazer. É a gota d’água para explodir a revolta. Nas ruas vê-se estampado o rosto do juiz sob a legenda “cúmplice de estupradores”. Um abaixo-assinado pede sua destituição do cargo. Nos dias que se seguem é convocado em Madrid o protesto Stop Cultura de la Violación. Das redes brota uma  hashtag, o #cuéntalo, novo diapasão de depoimentos de agressões sexuais. É o encontro do #metoo com o #meuprimeiroassédio, agressões da infância, assédios que aconteceram ontem, muito cabe no #cuéntalo. E ainda sobra espaço para florescer um novo gênero, o “se lo cuento porque Maria no lo puede”. São mulheres relembrando as histórias daquelas que já se foram, vítimas do feminicídio. Abalado pela opinião pública, o governo atual convoca um Conselho para rever a tipificação dos crimes contra a liberdade sexual no Código Penal Espanhol. O Conselho, que se pretende reformador do machismo, é composto por um total de vinte membros, dos quais todos são… homens. O movimento feminista espanhol promete que os protestos não vão parar.

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*Nataly Cabanas é jornalista brasileira e mora em Madri.

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O tempo não é nosso inimigo: por uma revolução estética feminina https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/21/por-uma-revolucao-estetica-feminina/ https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2018/05/21/por-uma-revolucao-estetica-feminina/#respond Mon, 21 May 2018 06:49:31 +0000 https://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/envelhecer-320x213.jpg http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/?p=1425

por Gleicimara Araujo Queiroz Klotz*

Quantas vezes nos deparamos com manchetes como: “Giovanna Antonelli aparece envelhecida em foto”?

A beleza, não obstante um substantivo feminino, se refere aquilo que é agradável aos olhos. Mas por que a beleza é um tida como dever eminentemente feminino? Simone de Beauvoir já nos alertava que a mulher é um outro, ou seja, não é um homem. Socialmente o corpo feminino tem a função primordial de agradar ao outro, para isso está sujeito à regras e precisa ser moldado e submetido à inúmeros procedimentos: pintar as unhas e cabelos, depilar, maquiar, usar saltos, roupas desconfortáveis. A lista seria interminável!

O processo de envelhecimento produz transformações nos corpos que são incompatíveis com o padrão de beleza, como as rugas e os cabelos brancos. Comumente as mulheres relatam com sofrimento o surgimento dos primeiros cabelos brancos. Porém, homens e mulheres são vistos de forma diferente quando envelhecem. É comum vermos os homens de cabelos brancos sendo vistos como charmosos e a mulheres como desleixadas.

Desta forma o corpo é o objeto de maior investimento feminino pois é tido como seu capital social. Em uma sociedade em que a mulher tanto mais vale quanto mais bela é, justifica a corrida pelo consumo de produtos de beleza, uma vez que proporciona mais chances no campo afetivo, social e laboral. A mulher feia é a mulher falha, invisível e inapropriada. Em incontáveis filmes e telenovelas foi retratada a mulher feia que corrige “sua falha” e retorna triunfalmente bela, sendo merecedora do amor e do sucesso, como em “O Diabo Veste Prada”, ou na novela “Betty a feia”.

Esta exigência com os corpos femininos evidencia sua relação política e econômica. Do ponto de vista político as exigências estéticas nos colocam relação assimétrica aos homens, na qual as mulheres podem ser entendidas como frágeis ou acessórias. No sentido econômico o padrão de beleza nos torna ávidas consumidoras de produtos que prometem corrigir os corpos errados e nos trazer a beleza.

O envelhecimento traz uma perda significativa, nos tornamos invisíveis quando não somos mais belas. Perdemos a utilidade, isto denuncia dois grandes problemas: a função social da mulher e o padrão de beleza. Simone de Beauvoir dizia em “O segundo sexo” que desde a mais tenra idade as mulheres são treinadas a ser belas e recatadas, ao contrário dos meninos, são o bibelô do pai e ao longo da vida reproduzem este papel de serem belas e graciosas. Ao envelhecer, que não é mais possível ser bela, a mulher perde sua função e sua visibilidade social. Me recordo da fala de uma mulher idosa, colhida na minha pesquisa de doutorado sobre o tema aqui tratado: “Quando era jovem os carros buzinavam para mim, agora que sou velha me atropelam”.

Atualmente envelhecer bem significa apagar as marcas do envelhecimento, por isso as rugas e os cabelos brancos precisam ser exterminados, ou seja, somos individualmente responsáveis pelo nosso envelhecimento e a forma correta de envelhecer se dá pelo consumo de produtos. Algumas atrizes são tidas como exemplos de bom envelhecimento, pois não aparentam sua idade real.

Na contramão do discurso dominante temos acompanhado o despertar de uma resistência feminina, resistência que tem se expressado pelo empoderamento de seus corpos. Tal fenômeno tem ocorrido a partir das novas mídias, na qual mulheres tem criado seus próprios espaços de discussão e difusão de imagens, seja no âmbito individual por fotos e ocupação das ruas, seja no social por meio de blogs, grupos de discussão e produção de documentários.

Acompanhei diversas mulheres idosas que realizam resistências cotidianas ao ostentarem seus cabelos brancos, suas rugas, com seus corpos reais e diversos, criando novas imagens estéticas e resistindo ao padrão imposto. Apesar de ainda grande parte das mulheres apresentarem uma relação de sofrimento com o corpo por não se encaixarem nos padrões estéticos, no doutorado tive a chance conhecer idosas que tiveram suas vidas controladas por maridos, filhos, pais e padrões que agora conseguiram romper e se relacionar de forma autêntica e satisfatória com seus corpos.

Em seu documentário Elca Rubinstein aborda a aceitação dos cabelos brancos em qualquer idade, já que podem surgir ainda na juventude. A produção de conteúdos em blogs também tem sido relevante como os de Mirian Goldenberg, Beltrina Corte do Portal do Envelhecimento, e de Yara Schechtmann no qual relata suas experiências cotidianas. No instagram a atriz Vera Holtz publica fotos críticas com senso de humor. No campo da moda, apesar de ainda não apresentar uma ruptura de padrões, temos alguns representantes internacionais como a famosa Iris Apfel e o fotógrafo Ari Seth Cohen da Advanced Style.

Também tem sido de extrema relevância as resistências das mulheres comuns, de diferentes classes, e estilos de vida, que em sua vida cotidiana tem produzido uma nova forma de se apresentar no mundo, se desvencilhando dos padrões. Apesar de não romperem completamente pois este discurso ainda é uma forma forte de poder, o fazem da forma possível individualmente.

O que há de comum nestas mulheres é que suas vivências individuais, se unem em um discurso grupal e assim ganham força na transformação social. As mulheres idosas tem sido também protagonistas na criação de uma nova estética feminina, quando discutem sobre os padrões, quando se associam, quando se apoiam e principalmente quando falam através de seus corpos. corpo enquanto corporeidade é a existência subjetiva do sujeito, através dele que é possível perceber o mundo e relacionar-se com os outros. O corpo que aprisionava agora é o palco da nossa revolução.

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* Gleicimara Araujo Queiroz Klotz é psicóloga, doutora em Psicologia Social pela USP

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