As masmorras femininas e o novo coronavírus

#AgoraÉQueSãoElas

Por Natália Damázio*

Em tempos normais, em um país racista e masculinista como o nosso, os sistemas de justiça criminal e de aprisionamento transformaram-se em um dos principais dispositivos de manutenção das desigualdades e de contenção de qualquer movimento que conteste a lógica colonial ainda regente. As mulheres que estão presas sofrem um impacto não dimensionável em termos de vulnerabilização à imposição das violências advindas de sistemas opressivos. 

O país, nos últimos anos, já passava por este processo de ampliação desproporcional do encarceramento de mulheres, que em sua maioria são negras. Prende-se por crimes de cunho econômico (roubo e furto) e tráfico. Destaca-se que ambos em baixas quantidades: tanto drogas em pouca quantidade, facilmente interpretadas como destinadas ao uso, a depender do território habitado ou grupo social/racial pertencente; quanto o roubo e furto de bens de pouca valia, que simplesmente poderia gerar a aplicação do princípio da insignificância, o que afastaria a ilicitude de seu cometimento. 

Assim, não prender mulheres não seria uma tarefa difícil, especialmente contando que 74% são mães, segundo o Infopen Mulheres (2018), número subdimensionado já que os dados oficiais dão conta de apenas 7% das mulheres presas. Parte delas, com filhos de até 12 anos ou com deficiência, que deveriam, como arrimo familiar que são, beneficiarem-se do Marco da Primeira Infância, caso presas provisórias – que são 45% das presas brasileiras. Apesar dessa matemática simples, ainda assim, mulheres tiveram seu índice de aprisionamento aumentado em 700% nos últimos 16 anos. Por quê?

Não pode deixar de ser dito: as mulheres presas são, em sua esmagadora maioria, negras, e prisão no Brasil não é utilizada como método de resolução de conflitividade social, mas sim como metodologia central da necropolítica genocida do Estado. A epidemia de COVID-19, assim, torna-se a criação da tempestade perfeita para os intentos de um Estado que repete suas mesmas violências há mais de 500 anos, mesmo que com novas roupagens – às vezes nem tão novas. 

A Organização Mundial de Saúde é clara: medida de proteção à saúde de presas e presos é redução drástica da população prisional de forma emergencial para diminuição de superlotação, dando ênfase à liberação de grupos de risco. O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Recomendação 62, já nos deu indicativos de como fazê-lo.

Não obstante, o discurso do Departamento Penitenciário Nacional segue o mesmo: “isolamento é a solução, soltar demais é perigoso”. Se valer exclusivamente de reduzir o trânsito dentro da prisão como única forma de lidar com a pandemia de COVID-19, sem nenhuma outra estratégia agregada, é panaceia. Falar de segurança como eixo central do debate é desumano. Essa “estratégia” não nos levará a nenhum lugar além da morte em massa de pessoas presas, sem que sejamos capazes sequer da construção de memória de mais uma das muitas barbáries de nossa história. 

Entendamos que se a lógica é distanciamento social, as presas no Rio de Janeiro hoje encontram-se confinadas em celas superlotadas, sem locais sequer para dormir de modo adequado, como na Penitenciária Talavera Bruce, onde dividem um cubículo destinado para uma pessoa, trancadas por uma porta de “chapão” (madeira maciça, sem ventilação para além de uma pequena janela no alto da cela). 

Se é necessária a higiene frequente, elas estão com acesso limitado à água, que cai, no máximo, duas vezes ao dia, como no Instituto Penal Ismael Sirieiro, cujas denúncias de falta de água são frequentes. Se a demanda é por álcool gel e sabonetes, elas não acessam itens básicos de higiene necessários a toda população prisional feminina. Tais itens não são distribuídos pelo Estado e normalmente dependem de custódia (entrega de itens por familiares), que ocorrem em menor quantidade para mulheres devido ao alto índice de abandono familiar que sofrem após serem presas. 

Busca ativa de casos sintomáticos dentro das unidades? Um fluxo estruturado com a rede pública extramuros, caso o pior aconteça? Não se tem notícia de nenhuma estruturação factual desses dentro dos presídios fluminenses. Da SEAP só se ouve “não temos nenhum caso confirmado”, sem que sequer testes estejam disponíveis às presas e aos presos. Lembremos: o sistema prisional carioca tem um dos piores índices de cobertura médica do país, tendo colapsado muito antes da pandemia, e o acesso à rede pública extramuros é inexistente. De todos os óbitos nas prisões fluminenses, somente 0.7% morreram fora das prisões entre os anos de 2016 e de 2017.

Nem após a morte a dignidade mínima dessas mulheres está garantida. Em uma SEAP sem testes, sem médicos, sem equipes de saúde, sem ambulatórios equipados, dependendo exclusivamente de um pronto-socorro geral, que mais se assemelha a uma UPA, após a Resolução SEAP/SEPOL nº 10 de 2020, nem chegar ao IML as presas chegarão. Declarações de óbito, contrariando todos os padrões internacionais mínimos, serão feitos pela própria SEAP. Pela Portaria Conjunta nº 1 do CNJ/MS, serão enterradas com poucas chances de possuírem uma declaração feita de modo adequado, podendo ser cremadas ou enterradas sem anuência familiar, simplesmente desaparecidas. Sem serem identificadas pelo seu próprio nome, por todas as brechas ali abertas, agravadas pelo fato de que, no Rio de Janeiro, 6,9% das pessoas mortas no sistema prisional entre 2016-2017 foram enterradas sem identificação civil. 

Ainda são poucas as regras internacionais disponíveis para o tratamento adequado de mulheres presas desde a pandemia de COVID-19, mas soluções existem, como as recomendações feitas pela organização WOLA e estratégias de soltura como as propostas pelo CNJ. É possível não ampliar ainda mais a política de genocídio de mulheres negras e presas em curso, garantindo que não vivam a experiência catastrófica de estarem em um espaço de privação de liberdade durante a pandemia. Mas não podemos esperar o amanhã, o desencarceramento feminino em massa é medida de sobrevivência, humanitária, para mais de 42 mil mulheres presas. E deve ser agora, sob pena de, mais uma vez, nem memória termos para não repetir nossos erros do passado, sempre tão presentes.

*Natália Damázio é Membra do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ), mestre em Teoria e Filosofia do Direito na UERJ, Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional na PUC-Rio.