A favela fala: militarização e censura em tempos ‘democráticos’

Por Gizele Martins*

O livro “Militarização e censura: A luta por liberdade de expressão na Favela da Maré” é um registro de parte das violações que nós, moradores do Conjunto de Favelas da Maré, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, sofremos durante o período de 2014 a 2015, época em que o Exército invadiu a favela para garantir a realização da Copa do Mundo. 

A Maré fica em um local estratégico da cidade do Rio e é cercada por três vias expressas: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela, além de estar próxima ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Pelas nossas ruas, nas mais de 16 favelas que compõem todo o conjunto, havia tanques de guerra circulando que passavam quebrando nossas calçadas, arrebentando nossos encanamentos e, em alguns casos, até passando por cima de pessoas, de acordo com relatos. 

As ruas da favela e a vida favelada foram brutalmente militarizadas pelos governantes naquele recente período dito democrático. Nós sobrevivemos 17 meses sob a Garantia de Lei e Ordem (GLO), lei utilizada durante o regime de exceção da Ditadura Civil-Militar no Brasil.

Convivíamos com toque de recolher, fichamentos, prisões, invasões às casas, além da proibição de qualquer tipo de atividade na rua, fosse cultural, religiosa ou comunitária. Além disso, censuravam os comunicadores. A prática da revista aos celulares era comum e invadiam os locais da comunicação comunitária, ameaçando, inclusive, alguns dos comunicadores por apenas relatarem o que eles e toda a favela estavam vivendo naquele período.

E o silêncio na favela – algo que não é normal – era interrompido pelo som de tiros, tiros e mais tiros que quebravam toda a nossa rotina de vida, de trabalho, de estudos, de ida às escolas, médicos etc. Era uma forma brutal de controle e que nós, comunicadores e comunicadoras, tínhamos como meta denunciar, relatar, questionar e fazer com que aqueles diversos tipos de violações saíssem dos muros visíveis e invisíveis da favela. 

Ao falar e tentar reportar tais fatos para o mundo, fomos ameaçados, procurados e expostos pelas mídias comerciais. Alguns comunicadores tiveram que sair de suas casas, outros desistiram de escrever, de relatar, de filmar e de fotografar. Outros foram detidos e levados nos jipes do Exército para o quartel, para servirem de exemplo. 

A partir de tantas intimidações, tantos desgastes, medos e censuras, muitos dos comunicadores começaram a se autocensurar. O que passou a ser também uma das formas de proteção para não sofrerem mais. A autocensura fazia com que alguns não tivessem mais coragem de estar em um meio comunitário. Outros saíram das mídias comunitárias e outros nem escrever ou circular nas ruas da Maré queriam mais.

O livro trata, em formato de relatos, os anos difíceis de sobrevivência na favela, na vida e na comunicação comunitária. O desafio é dar visibilidade à situação que passamos e também afirmar que não queremos mais que outros comunicadores de favelas, quilombo, aldeias indígenas, do campo ou da cidade passem por isso. É preciso mostrar, reorganizar, cobrar medidas e justiça contra o silenciamento de comunicadores comunitários. São eles que fazem a notícia popular e a nossa luta saírem dos muros que querem que sejam invisíveis. A favela vai falar!

 

*Gizele Martins é mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (Uerj-Febf). Formada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Por anos foi repórter e jornalista responsável do jornal O Cidadão, meio comunitário que circula há décadas no Conjunto de Favelas da Maré, Rio de Janeir