Uma noite de 1982: uma cena de agressão da masculinidade tóxica
Por Hildete Pereira*
No início dos anos oitenta o regime militar agonizava no Brasil e seguindo o roteiro do mago Gal.Golbery, construía-se lentamente a passagem para uma sociedade mais democrática. Assim, em 1982, o governo militar convocou eleições para o Brasil. O ativismo feminista explodia e candidataram-se algumas militantes do Centro da Mulher Brasileira do Rio de Janeiro.
Engajei-me na campanha para vereadora de Comba, ativista do feminismo carioca pelo PMDB. Tanto Comba, como eu, éramos oriundas do movimento estudantil e ardorosas defensoras da igualdade feminina na sociedade. Para financiar a campanha organizamos uma festa numa gafieira tradicional da rua do Catete e seguindo a tradição feminista, enfeitamos o salão com faixas e cartazes com as consignas do movimento feminista: “o privado é político”, “salário igual para trabalho igual” e “nosso corpo nos pertence”.
Compramos tecidos de tafetá rosa e bordamos estas faixas em lantejoulas azuis. Ficaram lindas. Durante a tarde trabalhamos no salão fazendo a decoração. Tudo pronto, fomos para casa nos arrumar para a festa. Voltei horas depois e quando cheguei já havia muita gente no salão, inclusive a candidata e seus familiares e amigas. Ao atravessar a sala notei certo constrangimento em alguns olhares. A linda faixa “Nosso Corpo Nós Pertence” tinha sido alterada e agora lia-se “Nosso Corpo Vós Pertence”, não acreditei!
Olhei para as pessoas, diversos homens riam, todos tradicionais militantes democráticos. Uma profunda indignação tomou conta de mim. Isto não era uma brincadeira inocente. Era o machismo escondido na sociedade que se desnudava cruelmente aos meus olhos, avancei e arranquei a faixa da parede. Ficou nítido para mim que aquela não era uma mera brincadeira: a perda de uma perna da letra “N” transforma esta letra em “V” e revelava a ideia de que os corpos femininos pertencem aos homens. E para minha surpresa tinha sido o primeiro marido da nossa candidata feminista que havia realizado a brincadeira machista. E a festa não foi mais a mesma: entendi que a sociedade dos homens reagia ao novo que se desenhava, mas ainda não tinha nascido.
*Hildete Pereira é Doutora em Economia e Professora associada da Faculdade de Economia do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da UFF. Foi militante desde os anos 1960 e doou parte de seu acervo ao Arquivo Nacional.