Você conhece o conceito de imagem de controle?
Por Clara Averbuck*
Imagem de controle é um conceito advindo do Feminismo Negro e usado por Patricia Hill Collins e bell hooks. Há muito material sobre isso. Este controle é o que fazem com as mulheres todos os dias. Todas as mulheres, pois esse conceito é amplo. Uma advogada negra, por exemplo, pode passar por desleixada porque não “arrumou” o cabelo, ou seja, alisou e se colocou mais próxima ao padrão branco e aceitável numa sociedade racista. Uma aeromoça deve sempre estar com cabelos e maquiagem impecáveis e as unhas feitas. Uma acadêmica de humanas não pode ser muito vaidosa, mas também não pode ser muito largada, porque né, é mulher..
Já uma mulher no meio da ciência é vista com desconfiança ao se importar demais com a aparência, já que deveria focar em coisas realmente importantes. Uma vítima de violência que estava com a roupa “errada” ou em alguma situação que não em casa dormindo ou na igreja vai ter sua denúncia questionada pois não é a vítima perfeita e pode ser culpabilizada pela violência que sofreu. Quer dizer: nunca está bom.
Vivemos sendo literalmente fiscalizadas para ver se cabemos na caixinha x ou y. Eu nunca coube. Publiquei o primeiro livro aos 22, fora do padrão de comportamento – e do gênero – da maioria esmagadora dos escritores do começo dos anos 2000. Eu era uma das pouquíssimas mulheres e a mais jovem do meio, e ainda escrevendo “como um homem”, coisa que eu achava elogiosa até então, ai de mim. Eu lia homens, convivia com homens, parecia um elogio. O que eu tinha como feminino era frágil e fútil.
Que bom que veio o feminismo para me salvar dessa bobagem. Eu escrevo como uma escritora e escrevo como quiser. Também nunca “me pareci” com uma escritora. Era muito tatuada, me vestia de maneira pouco formal, decote, saia e, especialmente, me portava bem fora do que se esperava de uma mulher. Hoje eu tenho 9 livros publicados, 2 peças, alguns roteiros e infinitos textos. Eu também sou pole dancer. Isso deu tilt na cabeça de muita gente. Como pode escrever e mostrar o corpo dessa maneira? Como? Como? Não pode!
Bom, minha função no mundo não é ser só um corpo e nem só um discurso. Sou mulher e temos nossa sexualidade controlada e nosso intelecto posto em dúvida quando “usamos o corpo”, conforme pede a imagem de controle. Como se a cabeça estivesse desatarrachada do corpo. Como se não usásemos as mãos, os olhos, o frio na barriga, como se o cérebro não mandasse estímulos para o corpo funcionar.
Hoje, mais uma vez, tive meu intelecto questionado por causa das fotos do meu corpo postadas no meu perfil do instagram. Fui chamada de prostituta (uma profissão, não um xingamento), de vagabunda, de “attention whore” (achei que esse termo tivesse ficado em 2004), enfim, centenas de ofensas direcionadas a minha sexualidade e meu corpo. Isso porque ousei dizer, em um post do ator Juliano Cazarré, que fez parte do elenco da adaptação cinematográfica de meu primeiro livro, que não queremos homens provedores, queremos homens analisados e que não tenham o pensamento parado em 1940, diante de uma postagem em que ele exaltava a masculinidade e dizia que não era uma construção social usando o vídeo de um… gorila.
Que enxurrada de chorume! O próprio disse que não esperava menos de mim, o que foi um elogio involuntário. Obrigada! Eu também não esperaria menos de uma mulher feminista em busca de equidade de gênero e combatedora ferrenha da masculinidade tóxica, que aleija os homens de seus sentimentos desde pequenos (não, não é bacana dizer pra uma criança “virar homem” ou engolir o choro), criando gerações e gerações de homens que não sabem sequer nomear seus sentimentos, de tão distantes deles que ficaram. É coisa de mulherzinha, e coisa de mulherzinha é a pior ofensa a um macho adoecido.
Adoecido, sim: eis os dados de suicídio de 2011 a 2016: das 62.204 mortes por suicídio, 79% foram de homens. 48.204 tentativas, sendo 31% homens e 14.354 reincidentes na tentativa, sendo 26% homens. Essa masculinidade tóxica e o fardo do tal “provedor” tem muito a ver com esses números. O homem que se sente inútil e não cumprindo esse papel acaba por se deprimir e não procura ajuda, pois acham que devem ser fortes e machões… Até que não aguentam mais.
Cumprir o mínimo da obrigação com os filhos não é “ser provedor”. Pagar pensão, muito menos. Não é disso que estamos falando, e sim de um fardo que não precisa mais ser levado adiante. E o mais incoerente é que quando mulheres entram nessa lógica, a de buscar um provedor, são taxadas de interesseiras. Ué?
Eu, Clara, estou em busca de poder existir enquanto intelectual que sou há anos e que habita esse corpo, como escritora, ficcionista, tradutora, roteirista, dramaturga, pole dancer e dona de mim. E quero distância de qualquer um que identificar em um gorila o ideal de sociedade. Se livrem dessa masculinidade. Vai ser melhor para todo mundo.
P.S.: sugiro que assistam “O Silêncio dos Homens” e “The Mask You Live In”
*Clara Averbuck é escritora, tem nove livros publicados, é professora de escrita criativa e pole dancer em formação.