A Filomena de ‘A Vida Invisível’

(Foto: Christoph Leucht)
#AgoraÉQueSãoElas

Por Bárbara Santos*

Trabalho com o Teatro do Oprimido há trinta anos, vinte dos quais diretamente com Augusto Boal, na coordenação do Centro de Teatro do Oprimido, em produções artísticas e projetos sócio-culturais na rede de pontos de cultura, no sistema penitenciário, na educação e na saúde mental.

Desenvolvo o Teatro das Oprimidas, que estrutura uma rede internacional de grupos feministas da América Latina, Europa e África, há dez anos. Escrevi três livros sobre processos estéticos e técnicas teatrais interativas e sou diretora artística do espaço teatral KURINGA, em Berlim, Alemanha, onde vivo há uma década. O teatro é minha principal atividade, como diretora, formadora e ativista.

Em março de 2018, fui convidada por Karim Aïnouz para dar corpo e alma à Filomena, no filme “A Vida Invisível”. Aceitei o convite sem titubear, pela alegria de voltar a atuar como atriz e pela oportunidade de criar uma personagem negra plena em complexidade e humanidade. Desde os primeiros contatos, percebi a abertura do diretor e de sua equipe para o diálogo crítico e propositivo. Em nenhum momento, houve receio em se falar sobre racismo, tanto nas análises do roteiro quanto na concepção das cenas. Além de mim, várias das integrantes da equipe, também mulheres negras, tomaram para si a responsabilidade de cuidar da construção de Filomena. Aliás, preciso destacar a força das mulheres nessa produção e a presença marcante de diversas mulheres negras que compuseram essa equipe.

Não há como negar que é alto o risco de se cair numa representação caricata ao se incluir uma personagem negra na história de uma família branca, de origem portuguesa e de classe média no Brasil dos anos de 1950. Nesse sentido, o encontro e a construção de amizade e companheirismo entre uma mulher negra e uma mulher branca em uma sociedade alicerçada sobre a escravatura e marcadamente racista, pode facilmente reproduzir a relação a mucama-ama de leite e a sinhazinha. Creio que foi a consciência desse perigo que nos permitiu produzir um encontro real de amizade e de acolhimento entre duas mulheres, sem a tentativa de esvaziar ou minimizar as diferenças raciais e sociais que existiam entre elas.

Na elaboração dessa personagem, me concentrei em cuidar para que tivesse existência autônoma e não fosse definida a partir de Guida, uma das irmãs que protagonizam a trama. Busquei desenvolver uma mulher plena em sua subjetividade e protagonista de sua própria história. Além de momentos frutíferos de discussão com Karim Aïnouz e Nina Kopko, escrevi diversos textos sobre a história de vida de Filomena, reconstruindo sua infância, adolescência e vida adulta até o encontro com Guida. A escrita foi exercício fundamental para a construção da personagem, que assim ganhou nuances, filosofia e objetivos de vida.

Desses textos brotaram um feminismo negro intuitivo, uma atitude antipatriarcal impulsiva e uma consciência política forjada nas agruras da vida. Pouco a pouco, Filomena ia sendo composta por Marias, Elzas, Margaridas, Suelis, Conceições, Carolinas e muitas das mulheres negras que encontrei pela vida, em comunidades, grupos culturais, penitenciárias, hospitais psiquiátricos e no movimento de mulheres negras. A cantora Elza Soares e sua história de vida foi uma inspiração essencial e a música A Mulher do Fim do Mundo compôs a trilha sonora de Filomena. Além dos textos sobre a personagem, escrevi também diversos poemas para o filme: a separação Eurídice e Guida, o cruzamento entre as vidas de Filomena e de Guida; o desejo de liberdade de Guida, o sonho de Filomena de ser cantora e a esperança no futuro do “filho” partilhado. Dessa forma, interagi com o filme como um todo, tentando entendê-lo como o contexto social de Filomena.

Os encontros e ensaios com a atriz Julia Stockler, que interpreta Guida, se concentraram na relação afetiva e social entre as duas personagens. Juntas, buscamos entender quais seriam os pontos de contato, os possíveis intercâmbios e os interesses de cada uma na relação que construíamos juntas. Guida ganhava um lar, amparo, apoio e força para ser uma mulher capaz de exercer sua vontade e autonomia. Filomena ganhava uma família, exercia uma maternidade partilhada e vislumbrava a possibilidade concreta de efetivar o plano de criar uma creche comunitária.

Nesse processo de construção, entendi a capacidade de adaptação e de planejamento estratégico de Filomena. Me surpreendi com sua astúcia em driblar o sistema e em enfrentar sua face machista e racista. Filomena, como boa capoeira, ginga, finge que vai, mas não vai, finge que fica quando já foi.

Vida invisível*

A vida dela sem ela
A vida de uma sem outra
A vida d’outra sem uma
A vida de uma por outra

Vidas de tantas outras
Vida inteira tão pouca

Vida… escapou no vento
Voou!
sem memória ou história
Sem linha do tempo

Vida… projeto intangível
Corre, voa, pára!
Pára, corre, voa!
Transcorre invisível.

(BS, abril de 2018)

*Bárbara Santos é socióloga, escritora, atriz e diretora teatral, é fundadora da Rede Ma(g)dalena Internacional de Teatro das Oprimidas.