#AngelaDay – Diário de uma feminista negra, cria da favela
Por Renata Souza*
00h47 — Após o jantar com a Angela Davis, no Bar da Dida, na Zona Norte do Rio de Janeiro, o sono custou a chegar. “Histórico” é o termo mais correto para classificar o nosso encontro com as principais lideranças feministas negras brasileiras, erguidas após a dor na alma dilacerada com o feminicídio político de Marielle Franco.
Servido o drinque “Pantera Negra”, criado especialmente para a convidada, começamos a narrar nossas histórias de militância aos ouvidos atentos de Angela, que dispunha de caneta e papel para as “escrevivências” de Aurea Carolina, Mônica Francisco, Dani Monteiro, Andrea de Jesus, Talíria Petrone, Jô Cavalcanti, Erica Malunguinho, Vilma Reis, e para as minhas impressões sobre as feituras da vida. Não bastava lhe dizer quem sou, mas em quem me tornei após a luta pela sobrevivência no chão da favela. Pude falar sobre o significado da nossa mandata de deputada estadual na Alerj, uma mandata pedagógica, de ocupação do poder para amplificar as lutas de mulheres, em especial a negras, que sentem dor por perderem seus filhos e companheiros para a barbárie do Estado. Expliquei também o porquê de ter cunhado de maneira inédita o conceito de “feminicídio político” para categorizar e caracterizar a execução sumária da Marielle.
Não foi possível falar sobre a superação ao pragmatismo político que reproduz o racismo, o machismo e classismo da sociedade. Um pragmatismo que gera violência e assédio político, dentro e fora das nossas fileiras de luta, experimentado com um gosto amargo durante o processo eleitoral e que se agudiza quanto maior a visibilidade de nossas ações políticas. Angela, com gentileza e sensibilidade, deixou clara a satisfação em nos escutar e disse que, ao ouvir Marinete e Toinho, pais da Mari, conseguia compreender de fato quem é Marielle Franco. Luyara Franco, Anielle Franco, Jurema Werneck e Lúcia Xavier também participaram do jantar. Foi um grande encontro, proporcional ao tamanho da minha insônia.
9h57 — Cheguei na Alerj para a votação do relatório final da CPI do Feminicídio, da qual participei como membro efetivo. E a cada indicação de propostas de políticas públicas para acabar com a violência contra a mulher, me vinha mais forte à cabeça a tríade do livro de Angela sob o signo de “Mulheres, raça e classe”. Fazer parte de qualquer um desses significantes, é uma condição de risco ao feminicídio no Brasil, onde a cada duas horas uma mulher é assassinada, e as negras e pobres são as principais vítimas, de acordo com dados de 2018 divulgados pelo Monitor da Violência. Uma conclusão inequívoca é a de que são mortes evitáveis.
11h47 — Por atropelo do tempo, ficou para a última hora a compra de uma roupa à altura da homenagem para Angela Davis. Saio correndo do gabinete com uma única certeza: quero um vestido africano. Parto para a Rua do Catete. Do carro, avisto uma pessoa flanando na calçada e logo reconheço o jeito faceiro de andar, era Vilma Reis. Vilma é uma feminista negra, antirracista e anticapitalista, é a nossa esperança de uma futura candidatura à prefeitura de Salvador, para a subversão à histórica dominação de uma elite política e econômica. Estou aguardando ansiosa a sua decisão. Mas não houve indecisão na escolha do vestido: um longo com tecido em esferas amarelo ouro, olhos em tom de Oxum. Como diz Ana Maria Gonçalves, serendipidade. Um feliz encontro, nunca ando só.
17h45 — Marco com Talíria Petrone pelo Whatsapp de entrarmos juntas no Odeon, passamos em meio à multidão, abraços, bênçãos em troca de energia. Um pouco antes, ainda no carro, repasso a fala que preparei para a entrega da Medalha Tiradentes a Angela Davis. Nesse momento, lembro do sonho da Mari em homenageá-la, não resisto às lágrimas. Angela parecia tão distante de nós, ainda que sua onipresença habitasse nas nossas citações e referências: “Mulheres negras movendo estruturas”, dizíamos sempre. Falar da Angela é falar de nós, é nos reencontrarmos com todas as gigantes ancestrais que nos formam. É lembrar das gargalhadas gostosas da Mari e dos esporros em momentos de tensão e emoção, quando mandava eu parar de chorar.
20h17 — Chega o momento da entrega da Medalha Tiradentes. Pego na mão da Talíria que sentada ao meu lado, me acalma. Acabada a exibição do filme “Um dia com Jerusa”, um longa-metragem de Viviane Ferreira, estrelado pela potência máxima Léa Garcia, sou chamada ao palco. De microfone em punho, ao convidar a Luyara para compartilhar aquele momento, a sensação era de que sonhava acordada. As palavras saíam, sem filtro, do coração, eu era toda sentimento. Nessa vida, que muito bem definiu o poetinha como a arte do encontro, dou devido valor à gratidão: Boitempo, 12º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, militância feminista, negra e/ou marxista que lotou a Cinelândia para assistir o telão na praça, já que o Odeon não comportou o gigantismo de Angela Davis.
Um dia de preto. Para lembrar, como diz Angela, que derrotar o racismo, é derrotar o capitalismo. Dia em que Angela Davis exigiu justiça para Marielle Franco. Dia de festa na favela com a goleada de 5 a 0 do Flamengo. Dia de sonho, de felicidade subversiva e liberdade revolucionária, para pesadelo dos opressores e do capital.
*Renata Souza é cria da favela da Maré, feminista negra, anticapitalista. Formada em Jornalismo pela PUC-Rio. Doutora e mestra em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Está deputada estadual (PSOL-RJ) e presidenta da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Alerj.