Somos a História com Tarsila
*Por Tarsilinha do Amaral
Foram 402.850 visitantes, milhares de horas nas filas, excursões escolares, caravanas, selfies, posts, coleção de moda. Do lado de fora do Masp, nas bancas dos vendedores ambulantes, pinturas, canecas e um sem-fim de criações inspiradas em “O Abaporu” ganharam o calçadão da Avenida Paulista, em um movimento impulsionado por “Tarsila Popular”, a mais ampla exposição já dedicada à obra da artista.
Que privilégio poder viver esse momento histórico na arte brasileira: acompanharmos, juntos, a descoberta no Brasil e no mundo da vida e da obra de Tarsila do Amaral, que reafirma seu vanguardismo a cada novo olhar.
Como duvidar que Tarsila é uma mulher à frente de seu tempo? Nascida em 1886 no interior de São Paulo, filha de fazendeiros, criada para ser esposa e mãe, ambicionou tornar-se “a pintora do Brasil”. Para isso, ousou estudar arte, ousou escolher as cores ditas “caipiras”, quando seus próprios mestres não as aprovavam, ousou criar um modernismo autenticamente brasileiro de formas orgânicas e desproporcionais.
Em plena Paris dos anos 20, em uma tela em branco, muito longe do que poderia ser um deslumbre colonizado – e que ainda é mal compreendido por parte da crítica especializada -, escolheu representar uma mulher negra num resgate de suas mais afetivas memórias. Ao falar de afeto, também escancarou lá fora a imagem de um Brasil marcado profundamente pelo horror da escravidão.
A importância desse debate foi motivo do grande destaque de “A Negra” nas duas mais recentes exposições: esta agora, no MASP, e a anterior, realizada ano passado no MoMA – Museu de Arte Moderna de Nova York.
Inesquecível a declaração de um senhor negro americano ao dizer que se sentia representado pela obra. Como não se emocionar com isso?
Tarsila foi a mulher que decidiu romper um casamento no qual havia gerado uma filha, quando no Brasil ainda sequer havia lei do divórcio. Uma mulher que rejeitou sucessivamente o que julgou ser desrespeito de seus parceiros afetivos, quando descobria relacionamentos extraconjugais. Se em um Brasil de 2019 isso pode ser audacioso, como dimensionar a coragem desta mulher há mais de cem anos?
Em um momento tão delicado de nosso país, da cultura e dos costumes brasileiros, ouso supor que Tarsila e esta exposição conseguiram unificar o país num sentimento de deslumbre pelo que mãos, mentes e corações são capazes de produzir de mais belo, de mais amoroso. Deslumbre e orgulho.
A história íntima desta artista, que tenho o privilégio de conhecer por ser sua sobrinha-neta, é uma lição infinita de amor, de compreensão e de ousadia feita em voz baixa.
A partir do DNA Amaral, ouso dizer que o legado de Tarsila tem pertinência e força para inspirar movimentos de atualização do comportamento humano. Hoje o mundo quer conhecer mais Tarsila. Que ela siga nos inspirando a sermos sempre a nossa melhor versão, com toda graça, leveza e eloquência de suas cores e formas. Mulher extraordinária, protagonista da história do seu tempo, comprometida com seus desejos, sua arte e, portanto, viva para sempre.
Tarsilinha do Amaral é advogada e representante do espólio da artista