Porque mulheres religiosas lutam pelo Estado Laico?

#AgoraÉQueSãoElas

*Por Simony dos Anjos

Em 1895, Elizabeth Cady Stanton e mais 26 mulheres criaram uma versão da Bíblia baseada na experiência feminina da religião protestante. Esse grupo de mulheres cometeu um ato revolucionário, possibilitando uma interpretação não ortodoxa da bíblia e que combatia o discurso religioso na subserviência da mulher. O fato é que essa versão da bíblia virou best seller num momento muito específico da política dos Estado Unidos, a emergência do movimento sufragista. E, além de uma veemente questionadora da Bíblia, Stanton era uma sufragista e lutadora pelos direitos civis das mulheres. E não podia ser diferente, uma mulher que se rebela contra o uso patriarcal e opressor da bíblia, não poderia se abster da luta pelos direitos civis das mulheres.

Esse duplo movimento feito por essas mulheres cristãs, era extremamente necessário, pois à época os argumentos que apoiavam a proibição do voto feminino, eram baseados na submissão feminina ao poder do marido. Se essas mulheres queriam liberdades civis, elas tinham que combater os argumentos morais que as submetiam à servidão de seus lares. Esse movimento aconteceu no que chamamos a primeira onda do feminismo, centrada na luta por liberdades civis e o direito à vida pública de mulheres. Ou seja, mulheres religiosas, contrárias ao uso indevido da bíblia, estiveram presentes nesse grande levante feminista.

Hoje, após 124 anos da publicação desta obra coletiva, ainda enfrentamos essas mesmas questões: o uso dos argumentos morais de uma religião cristã ortodoxa, para o ataque aos direitos das mulheres. No Brasil de Bolsonaro, a Frente Parlamentar Evangélica está mais forte do que nunca, contando com 84 deputados e 7 senadores, o que fez a bancada saltar de 78 para 91 parlamentares. A própria campanha do Bolsonaro se baseou no uso do versículo do evangelho segundo a João 8,32, que diz: “conhecerei a verdade, e a verdade vos libertará”.

Desse modo, o que as teólogas feministas vêm questionando, desde o século XIX, é: que verdade é essa? Uma verdade que se diz pela tradicional família brasileira, mas protege homens abusadores, sob o cunho de “sacerdotes do lar”, em detrimento de mulheres e crianças que são violentadas física e psicologicamente, em seus lares? Uma verdade que extrapola os púlpitos dos charlatões que se dizem pastores, que invade o debate público cheio de proibições sobre os nossos corpos e vidas? Uma verdade que dissemina o ódio, em nome de Deus?

O uso indiscriminado dos moralismos cristãos, faz com que o debate não se dê no âmbito das leis, e aconteça nos campos da fé. Tornando um debate que deve ser científico, em uma repetição diuturna de crenças. No Congresso Nacional, há 95 iniciativas de lei para alterar a Lei Maria da Penha, em tramitação. Na maioria delas, o objetivo é descaracterizar a proteção e garantia da autonomia das mulheres.  Há 60 proposições legislativas contrárias aos direitos sexuais e reprodutivos, dentre elas a PEC 29/2015 e a PEC 181/2015. Proposições, estas, que versam  da “proteção do feto desde concepção” – impedindo até os abortos legais -, até a  proibição de distribuição de pílulas do dia seguinte e DIU, no SUS. O “Estatuto da Família”, atenta contra a laicidade do Estado, nega direitos às famílias homoafetivas, atuando diretamente para a negação de direitos.

Todos esses absurdos são protagonizados por homens, que se dizem arautos da vontade de Deus. Homens que portam um discurso enviesado, misturando política e religião da maneira mais sórdida possível. E que encontram, nesse Deus, argumento para demonizar as religiões de matriz africana, de criminalizar povos indígenas e de desrespeitar a diversidade brasileira, sob a defesa de ser apenas “a vontade divina. A bíblia tem pautado mais a legislação do que o própria conduta desses políticos, no que disse Jesus: amai o próximo como a ti mesmo – mandamento propositadamente esquecido.

Desse modo, nós, as “féministas”, acreditamos que nossos direitos sexuais e reprodutivos só serão garantidos, em uma sociedade secular e laica. Na qual os usos e abusos da bíblia, não influenciarão debates que são da seara da saúde pública, das liberdades laicas e dos direitos civis.  Lutamos pelo Estado Laico, por que nossas liberdades serão garantidas por ele – não será a igreja a nos defender dos abusos e violências que sofremos, embasadas no patriarcalismo da religião cristã. Lutamos pelo Estado Laico, porque antes de sermos religiosas, somos mulheres, o que nos impele a lutar para que cada mulher que professe as mais diferentes religiões, tenha seu corpo e cultura respeitados.

Por fim, nós, mulheres cristãs e feministas, somos pelo Estado Laico, pois sabemos que o encontro da religião com a política reforçará uma postura que temos enfrentado há centenas de anos: a subjugação do corpo feminino à imagem do masculino. Nosso entendimento da religião vai contra a função social procriativa de nossos corpos; contra a objetificação de nossos corpos e contra a repressão da sexualidade feminina, baseada na pecaminosidade do corpo feminino.

Nossa religião, assim, é vivida no corpo, e pelo corpo. Uma experiência de fé vivida dessa forma, não pode se aliar a uma religiosidade que criminaliza corpos e vidas humanas. Que desumaniza mulheres, indígenas, negros, pessoas LGBTs. Somos fiéis a Jesus, e ao seu ensinamento: “Dai a César, o que é de César. E a Deus o que é de Deus” (Mateus 22,21). Avante!

 

* Simony dos Anjos é graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade.