O Fundo Eleitoral pode fortalecer a Lei de Cotas. Mas é necessário fiscalizar o fenômeno das laranjas.
*Por Malu A. C. Gatto e Kristin N. Wylie
Recentemente, o fenômeno das candidaturas laranjas ganhou grande repercussão devido a suspeita do uso de candidatas laranjas pelo PSL para o desvio de verbas do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).
A discussão sobre a nomeação de mulheres para candidaturas laranjas não é novidade desde a introdução da Lei de Cotas em 1995, mas essa dinâmica muda de acordo com alterações nas leis de eleições.
Devido a possibilidade de sua utilização em esquemas de corrupção, a reserva de 30% do FEFC para a campanha de candidaturas femininas foi vista por muitos como algo negativo—inclusive sendo utilizada para justificar a abolição por completo de cotas para mulheres.
Apesar da má aplicação dessa regra em 2018, a reserva de fundos para campanha para as campanhas femininas—algo que vinha sendo proposto pela Bancada Feminina (e rejeitado) no Congresso Nacional há mais de uma década—é de extrema importância, já que cria um mecanismo mais claro para a avaliação de candidaturas efetivas, tornando a lei de cotas mais eficaz, e possivelmente contribuindo para o aumento de representatividade eleitoral o que, por consequência, possibilita a almejada renovação política.
Afinal, como entendemos as candidaturas laranjas?
Em termos gerais, candidatas laranjas eram entendidas como aquelas que compunham as listas de candidaturas de um partido ou coalizão, mas que não faziam campanha eleitoral—tendo como principal propósito atender às demandas da lei de cotas de gênero que reserva 30% das candidaturas para mulheres. Ou seja, ao invés de investir no cultivo e apoio de candidaturas viáveis, muitos partidos se esquivavam da sua obrigação legal de promover a participação política das mulheres usando laranjas para cumprir formalmente a política de ação afirmativa e assegurar que essas candidatas não aumentassem a competição eleitoral. Uma das formas de manter essas candidaturas inelegíveis era não oferecer apoio partidário, como, por exemplo, recursos financeiros ou tempo na programação do horário eleitoral.
Como mudou o entendimento de candidaturas laranjas em 2018?
Com a reserva de 30% do FEFC para as candidaturas femininas e o escândalo do desvio de fundos através de laranjas, o termo ganhou um novo entendimento público. Desde então, “candidaturas laranjas” passaram a ser entendidas como relacionadas ao uso indevido do financiamento de campanha. É importante, portanto, distinguir esses dois entendimentos.
Na nossa pesquisa (e em outras), a definição utilizada é a primeira: sendo relacionada à nomeação de mulheres com o objetivo de cumprir com a lei de cotas somente no papel. A utilização imprópria da parcela do FEFC reservada às mulheres, portanto, é entendida como uma nova forma dos partidos corromperem a Lei de Cotas.
Como identificar as candidaturas laranjas?
Do ponto de vista acadêmico, não há como identificar sistematicamente a real intenção sobre a nomeação de uma candidata. Em outras palavras, não há como saber se o objetivo da nomeação de cada candidata foi legítimo ou simplesmente para cumprir com a Lei de Cotas.
Em artigo a ser publicado no periódico acadêmico Opinião Pública, Kristin Wylie, Pedro G. dos Santos e Daniel Marcelino consideram laranjas aqueles candidatos que atingiram menos de 1% do total mínimo de votos em seu estado (identificado como “quociente mínimo”). Ou seja, candidaturas que são “extremamente inviáveis.”
Dadas as desigualdades de acesso à recursos e competitividade eleitoral entre os partidos, nós mostramos que para melhor interpretar essa medida, é importante comparar o percentual de candidaturas possíveis “laranjas” masculinas e femininas dentro de cada partido. Isso permite ter uma melhor noção sobre os diferentes níveis de apoio que os partidos dão as candidaturas de homens e mulheres. Neste sentido, em 2018, o PSOL se destaca como o partido onde mulheres e homens estão em situação de maior igualdade, seguido pelo MDB e o PROS; e o PSL aparece como o partido onde homens têm maior vantagem em relação às mulheres.
Portanto, destacamos que o percentual de candidaturas possíveis “laranjas” identificadas pela medida de quociente mínimo é menos informativo do que a desigualdade entre candidaturas extremamente inviáveis de homens e mulheres.
O que as candidaturas laranjas indicam?
Nas nossas pesquisas individuais e conjuntas, nós argumentamos que as candidaturas laranjas demonstram à resistência dos partidos a uma lei que pode prejudicar as elites políticas tradicionais e promover mais mulheres no poder público.
Desde a sua implementação em 1996, a Lei de Cotas foi desrespeitada pela maioria dos partidos. Em 2010, quatro ciclos eleitorais após a sua primeira aplicação nas eleições nacionais, 44% dos partidos estaduais participando nas eleições da Câmara dos Deputados não continham sequer uma candidata mulher. Em 2014, quando uma alteração visando fortalecer a Lei de Cotas foi aplicada pela primeira vez, a taxa de cumprimento formal com a cota de 30% aumentou, mas a taxa de laranjas também aumentou—demonstrando que os partidos não estavam dispostos a dar oportunidades eleitorais reais às candidaturas femininas.
Políticos buscam racionalmente preservar seu próprio poder e mulheres que aspiram chegar nesses espaços representam uma ameaça à base do poder—algo que pesquisas mostram, de fato, acontece. Essa resistência persiste apesar dos ganhos socioeconômicos das mulheres, da ampla mobilização feminina (especialmente das mulheres negras), do intenso impulso internacional pela igualdade de gênero, e da demanda popular por renovação política.
Leis que promovem a paridade de gênero tornaram-se a norma na América Latina, com as mulheres ocupando mais de 40% dos assentos nos legislativos nacionais da Bolívia, México e Costa Rica, e pelo menos 30% na Argentina, Equador, El Salvador e Peru. Dados de opinião pública demonstram que 8 em cada 10 brasileiros apoiam a paridade de gênero em cargo eletivo—mas o Brasil ainda ocupa a 133ª posição no ranking mundial, ficando na lanterna na América Latina.
O que isso significa para a Lei de Cotas?
O país quer mais mulheres na política, não menos. A renovação política perpassa pela necessidade de equilibrar o acesso ao apoio partidário e a atual Lei de Cotas tem um papel fundamental para que esse objetivo seja possível.
Após o recente escândalo das candidaturas laranjas, surgiram propostas parlamentares para derrubar a Lei de Cotas. Uma delas atualmente tramita pelo Senado. A revogação da Lei de Cotas constituiria um grande retrocesso. Ao fazer com que os partidos recrutem mulheres, a Lei de Cotas promove a busca de lideranças além das bases partidárias tradicionais. A nova regra que reserva 30% FEFC agrega à essa norma, tentando nivelar o jogo para as mulheres, que tendem a enfrentar uma grande desvantagem em termos de acesso a recursos financeiros e redes de apoio político.
As últimas eleições mostraram que apesar de haver a necessidade de fortalecer a regra, a reserva de 30% do FEFC possibilita uma identificação mais clara de candidaturas laranjas, baseadas não somente na quantidade de votos obtidos, mas também nos recursos partidários oferecidos (como a proporção entre tempo em horário eleitoral e fundos do FEFC).
As respostas dos partidos a Lei de Cotas mostram que aqueles que estão no poder encontrarão maneiras criativas (e algumas vezes ilegais) de se manter neste espaço. Portanto, o cumprimento com a Lei de Cotas e distribuição de recursos para as candidaturas femininas devem ser ativamente monitorados. Para isso, o TSE deve trabalhar em conjunto com os setores de mulheres dentro dos partidos, a Bancada Feminina, e organizações independentes da sociedade civil.
*Malu A. C. Gatto é cientista política, doutora pela Universidade de Oxford, e professora na University College London (Reino Unido).
Kristin N. Wylie é cientista política, doutora pela Universidade do Texas em Austin e professora na James Madison University (Estados Unidos).