Família Submersa e Los Silencios

#AgoraÉQueSãoElas

*Por Luciana Veras

Há, entre Família submersa (Argentina/Brasil/Alemanha/Noruega, 2018) e Los silencios  (Brasil/Colômbia/França, 2018), duas produções sul-americanas em exibição no Brasil – a primeira já em cartaz, a segunda em rodada de pré-estreias e lançamento confirmado para esta próxima quinta-feira, 11 -, uma infinidade de elos para além do idioma. Sim, existe a força do espanhol como elemento catalisador de uma espécie de fraternidade geográfica, como se o continente exercesse uma gravidade particular a fim de atrair suas respectivas protagonistas para lidar com suas tragédias. Mas não é só da linguagem e seus meandros afetivos que se cinzelam os vínculos entre ambos os filmes.

Antes mesmo de pensarmos nos pontos de convergência, temos dois filmes dirigidos por mulheres. Atrizes que se tornaram realizadoras, María Alché e Beatriz Seigner entregam ao público seus longas-metragens com maturidade na condução estética e firmeza no posicionamento político: sim, fazer cinema com uma equipe majoritariamente feminina é uma ato da política, ainda mais quando exibidos em um país como o nosso, onde machismo e misoginia estão arraigados em sua matriz.

Pois na lista dos créditos, lá estão a argentina María e a brasileira Beatriz cercadas por profissionais como as fotógrafas Hélène Louvart e Sofia Oggioni, que respectivamente concebem o visual de Família submersa e Los silencios de modo a estarmos, nas duas obras, em um contínuo mergulho nas sensações de Marcela (Mercedes Morán) e Amparo (Marleyda Soto). As personagens principais nos surgem como telas em branco, cujos contornos e matizes vão sendo definidos pelos enredos e, também, pela construção imagética. Palavra e imagem, assim, conduzem Marcela e Amparo, e por conseguinte a todas nós, em delicadas travessias de ternura e memória.

María e Mercedes trabalharam juntas em A menina santa (2004), da cineasta portenha Lucrecia Martel, e agora revigoram a parceria em Família submersa. Marcela mora em Buenos Aires, é mãe de duas meninas e um menino, dona de um apartamento repleto de evidências da rotina familiar (a louça na pia, a bicicleta no corredor, as tarefas com o caçula) e com uma vida em espiral depois da morte da irmã. No processo de esvaziar o apartamento da falecida, ela encontra em Nacho (Esteban Bigliardi), jovem amigo de seus filhos, um aliado improvável que lhe ajudará a singrar os mares de tristeza.

A diretora quis confrontar as sensações que invadem uma mulher a vivenciar o que ela descreve como “epicentro do luto”: algumas das coisas que a atravessam são triviais – ,o que fazer com as plantas que Rina criava e seus vários casacos de pele? – e outras são metafísicas, como as visitas que os parentes já mortos insistem em lhe fazer. “Queria transmitir isso deixando uma sensação aberta para que cada espectador fizesse sua própria leitura”, afirma María.

Maria Alche, diretora de Familia Submersa

Eis um convite, na verdade, igualmente proposto por Beatriz em Los silencios. O que sabemos de Amparo quando ela irrompe na tela, passageira em uma canoa que trafega pelo rio numa noite escura? Ela chega a uma pequena cidade lastreada e alagada na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, com dois filhos, Nuria (María Paula Tabares Peña) e Fabio (Adolfo Savilvino) e um pleito: que a morte de seu marido nos conflitos armados das selvas colombianas seja reconhecida, ainda que o corpo nunca tenha sido resgatado dos confins para onde convergem vivos e mortos.

Mas acontece que o marido, de nome Adão como o primeiro criado pelos desígnios divinos (vivido por Enrique Díaz), ressurge em sua casa de palafitas. Carrega uma metralhadora, senta com Amparo e seus filhos para tomar sopa, vai a uma reunião…. Na ilha onde vive com suas crianças e seus fantasmas, Amparo aprende que vida e morte não precisam estar em cizânia. Talvez nelas possa haver uma coexistência, como se passado, presente e futuro fossem capazes de se imiscuir nas águas turvas do rio Amazonas.

Gravação de Los Silencios

Uma temporalidade dilatada, a ausência de uma fronteira nítida entre os que se foram e os que aqui ficaram e narrativas ancoradas em duas mulheres sem nada a temer: cinzelando os caminhos entre Los silencios e Família submersa, Beatriz Seigner e María Alché nos oferecem perspectivas interessantes para olhar questões como maternidade e relações familiares. Com seus filmes, feito por mulheres de fibra sobre mulheres que tomam as rédeas de suas existências e se descortinam ante as probabilidades e impossibilidades que delas resultam, criam duas personagens inesquecíveis. Contudo, por mais ficcionais que sejam, Amparo e Marcela simbolizam as mulheres da contemporaneidade: seja no trabalho braçal que a primeira assume ou na liberdade para se revisitar que a segunda adota, não existe lugar que elas não possam reivindicar.

Se isso decorre do talento das duas realizadoras, da potência que impregna as duas produções com olhar e labor femininos, da magia que assombra as obras de arte a captar o espírito do tempo ou da soma desses fatores, respostas hão de surgir da experiência de assistir a Los silencios e Família submersa. É bom lembrar, sempre, que no Brasil de 2019, assim como um presidente não parece ser um presidente, esses dois filmes não são apenas lançamentos a ser percebidos nos roteiros que ainda resistem nas páginas dos jornais impressos. São atos políticos, que podem repercutir como ferramentas a ser manejadas no campo onde se disputam as narrativas de hoje – a internet.

É preciso vê-los e deles falar. A luta por paridade de gênero e representatividade feminina no cinema, afinal, é contínua, constante e coletiva. Feminismo é revolução.

 

*Luciana Veras é repórter especial da revista Continente (www.revistacontinente.com.br) e coautora do livro Eu Acho é Pouco – O Carnaval em vermelho e amarelo (Zolu, 2019).