Onde é que o pátrio poder ainda se esconde?
*por Renata Rodrigues
Há mais de três meses, todos os dias, eu me deparo com a distância física e afetiva imposta a mim e ao meu filho
A camiseta do uniforme está separada em cima da cama. Os livros e revistinhas estão parados no mesmo lugar. Juntam poeira ao lado dos patins, do skate, dos demais pertences e também dos muitos sonhos e expectativas, essas coisas que nutrem tanto ou mais às mães que aos filhos. Olho à minha volta. Não sei se devo encaixotar os brinquedos, doar as roupas que já estavam ficando apertadas, ou se devo esperar. Não sei se saio ou não do grupo de pais da escola. Há três meses, meu filho viajou para passar férias na casa do pai e não retornou. Meu filho não voltou nem quando consegui uma liminar de busca e apreensão na justiça do Rio de Janeiro. Não tivemos chance de despedida, de um último abraço, de fazer um pacto nosso. Não nos vemos, mal nos falamos, e me sinto como se nunca mais fosse me recuperar da maior violência que sofri na vida: ser separada de uma das pessoas que mais amo no mundo, ser privada de decidir ou de participar de qualquer coisa que se refira à vida dessa criança que, durante doze anos, esteve mais sob meus cuidados que os de qualquer outra pessoa.
Meu filho foi desejado e amado desde o instante em que soube que ele existiria. Seu nome fui eu quem escolhi. Passei sua gravidez sozinha, trabalhando no Rio de Janeiro, o pai morando em Santa Catarina, em um período que marcou uma das inúmeras crises do nosso casamento. Ele acabou nascendo carioca. Mas já cresceu dividido entre o sotaque e os hábitos de pais urbanos e intelectualizados que estavam vivendo em uma cidade pequena, provinciana e machista localizada a muitos quilômetros da residência da quase totalidade de sua família extensa: bisavô, avós, tios, primo estão todos no Estado do Rio de Janeiro.
Eu me casei muito jovem. A sensação de desamparo e de falta de apoio me fizeram entrar precocemente num relacionamento em busca da estrutura que na verdade não encontraria em família. E me levou a alongar um envolvimento que deveria ter terminado no momento em que deixei Teresópolis, minha cidade natal, para correr atrás do sonho de estudar e me tornar jornalista.
Esse relacionamento, desde o casamento, e após, sempre foi marcado por muito abuso psicológico e dependência afetiva. Depois de seis anos de muitas idas e vindas, tomei aquela que considero até hoje a pior decisão da minha existência: resolvi largar minha carreira no Rio de Janeiro e ir morar numa cidade pequena onde minhas chances como profissional eram virtualmente nulas. Não fui uma mulher talhada para viver em uma cidade pequena e para protagonizar o triste papel da “mulher de médico”. Mas assim foi.
Eu já tinha então dois filhos. O segundo deles, como contei, nasceu nesse processo de mudança. A aventura durou pouco. Não demorou para entender que eu havia mudado de estado e de estilo de vida, mas que aquela relação desigual me fazia miseravelmente infeliz. Quando eu estava no momento mais vulnerável da minha existência, num misto de dependência econômica e afetiva que era uma verdadeira bomba relógio, recebi a notícia da separação.
O relacionamento com meus filhos sempre foi afetado pela carga de infelicidade e insegurança que aquela relação me impôs. Mas nada se compara ao que aconteceu do momento da separação em diante. Antes mesmo de sair de casa, meu ex-marido, um psiquiatra que atua como perito forense em Chapecó e que conhece os meandros da justiça, já estava enviando oficiais de justiça a nossa porta para que eu assinasse intimações de ações onde o objeto de disputa era a guarda dos nossos filhos menores de idade.
A primeira vez que assinei uma intimação, eu tremia da cabeça aos pés. É algo muito brutal, para uma mulher que está em situação de vulnerabilidade econômica, e mesmo psicológica, vislumbrar uma leve possibilidade de ter restrito o convívio com seus filhos. Mas a brutalidade não se restringe a isso: assim como acontece com muitas outras, foi nesse momento que entendi que algumas acusações e pressões têm a ver com o fato de que somos mulheres, e mais, elas têm a ver com os papeis sociais que performamos e com as escolhas que esses bons papeis nos levam a tomar.
Esse homem não admitia, e nunca admitiu, que eu pudesse retomar minha vida ao lado dos meus filhos e longe dele. Como tantas mães e mulheres da minha geração, eu também abri mão ou preteri minha carreira um função de planos familiares ou mesmo do cuidado de filhos. E assim como acontece em muitos outros lares, é a carreira dele e seu trabalho que são considerados prioritários. Eu estava desempregada, destruída afetivamente e com minha auto-estima no chão. Após anos trabalhando, estudando, viajando para congressos dentros e fora do país, eu era obrigada a ler em processos judiciais a alegação de que eu não era capaz de cuidar dos meus filhos, e a gastar, já de saída, uma pequena fortuna em advogados para conseguir ter o direito de fazer aquilo que eu desde sempre fizera: cuidar daquelas crianças. Eu queria ter a possibilidade de retomar minha carreira, e de construir alguma autonomia. E isso, como sabemos, são coisas que podem ter preço alto para muitas.
Um processo de alienação parental não é algo que aconteça da noite para o dia. Ele é fruto de muitas pequenas violências e de muitas covardias, afinal quem é alvo disso são crianças que não têm nem maturidade nem discernimento para entender o que está acontecendo a sua volta. Como nunca conseguiu uma decisão judicial favorável após longos, desgastantes e custosos processos judiciais, o pai se empenhou juntamente com sua família em travar uma guerra simbólica.
Meus filhos se afetaram profundamente por todo esse processo. Viveram algumas situações dramáticas. Num dos episódios mais graves, ocorrido logo após a separação, o pai pediu para vê-los e desapareceu às carreiras com as crianças pelas mãos de dentro do shopping localizado no centro da cidade de Teresópolis, onde eu desejava permanecer, na casa do meus pais. Minha família teve acesso às imagens dos circuitos internos de TV: as imagens mostravam o irmão mais novo dele, sua mulher, meus dois filhos e na sequência o próprio pai, correndo como fugitivos. E na mesa, eu espero sentada que eles voltem. Do que eles corriam? Para onde? Para que?
Eu demorei um dia inteiro para ter notícias dos meus filhos e para entender o que estava acontecendo. Passei momentos de completo pavor dentro de uma delegacia. A família dele se recusou até a me dar qualquer informação, dizendo que não se envolveria em nada. Mas depois, como consegui provar, descobri que todos sabiam do que aconteceria. Eu fui obrigada a voltar para Chapecó e esperar quase metade de um ano para obter a guarda provisória das crianças e então, finalmente, voltar a trabalhar e tocar minha vida adiante. Ninguém jamais sofreu qualquer consequência ou punição por conta disso.
Eu perdi a conta das vezes em que as crianças viajavam e o pai os colocava no telefone para me comunicar que não voltariam para casa, que se mudariam. A cada um desses telefonemas, eu revivia o pavor daquele sumiço, eu encarava o fato de que a pressão, o abuso e o desrespeito eram constantes. Era difícil e trabalhoso cuidar sozinha de duas crianças, e isso se tornou muito mais penoso sendo que do outro lado dessa linha havia alguém disposto a sempre oferecer algo “melhor”. Com o tempo, as crianças desenvolveram uma desconfiança e animosidade que relutei imensamente em nomear como alienação parental.
Eu só fui mesmo entender o que de fato estava acontecendo a minha volta depois de janeiro deste ano. Meu filho viajou para passar férias como pai, como estava previsto no acordo de guarda fixado há três anos. Se recusava terminantemente a voltar para casa e se mostrava extremamente agressivo nos telefonemas durantes esses dias. Estava irreconhecível: no seu dia a dia era um menino doce, inteligente e educado e nada em nossa relação remontava àquilo. Eu, ingenuamente confiava no fato de que o acordo seria cumprido e que, se fosse o caso, uma mudança desse porte ocorreria após o devido processo legal, ou seja, que eu teria a chance de também ser escutada.
As violências sofridas durante anos, as mentiras contadas, as acusações sem fundamento ganharam um repentino respaldo da justiça. Sem me ouvir, sem ouvir meu filho, o juízo de Chapecó reverteu a guarda para o pai. Essa decisão, que eu considero uma aberração, foi revogada na sequência. Sigo a acompanhando ações judiciais, intimações que correm em três cidades diferentes, a mobilizar alguns advogados, a gastar uma boa quantia em dinheiro, e tudo isso para no fim do dia não ter acesso ao meu filho ou o simples direito de tomar decisões básicas a seu respeito.
Se fosse entendido pela justiça ou órgãos de proteção a menores que eu sou perigosa a ponto de oferecer risco de vida para essa criança, ela seria retirada do meu convívio. Isso é uma medida extrema, feita em casos muito graves. Mas um pai disposto a ir fundo, a montar um estratagema jurídico, blindado por uma comunidade, uma escola e uma sociedade machistas, pode conseguir um atalho para, na prática, obter a mesma coisa em um prazo recorde.
Já se vão mais três meses de noites mal dormidas, muito choro, muita revolta e uma enorme dose de perplexidade. Meus amigos e todos aqueles que nos últimos anos tiveram a chance de conviver comigo e de presenciar o quanto eu estava empenhada em viver minha vida e em cuidar dos meus filhos sentem o mesmo nó na garganta que eu sinto que eu sinto nesse momento. Eles aguardam, junto a mim, a realização de uma audiência determinada pela justiça do Estado do Rio para que meu filho seja finalmente escutado.
Minha situação coloca um ponto de interrogação imenso sobre a cabeça de toda mãe que, amanhã ou depois, escolha se separar e também tomar as rédeas da própria existência. Como pode ser assim tão fácil? Ainda somos, mulheres, mães, cidadãs de segunda categoria, ainda cabe a um homem decidir nosso destino? Quem pode me dizer quando vou, finalmente, estar novamente e em paz na presença do meu filho? Parem, apenas parem de usar as brechas legais e os próprios filhos para perpetrar, com a maior das tranquilidades, violência psicológica contra mulheres e mães. Quero ter o direito de acreditar que esse tempo passou. Jamais, jamais vou desistir de ter a oportunidade de educar o meu filho, de ensiná-lo o significado das palavras respeito, igualdade e equidade. E de mostrar a ele que, na prática, o tempo do pátrio poder ficou efetivamente para trás.
* Renata Rodrigues é ativista, jornalista e fundadora do Bloco Mulheres Rodadas.