Camila Valadão: Nenhum minuto de silêncio

Foto: Nicolas Soares
#AgoraÉQueSãoElas

*Por Camila Valadão

Não se sabe ao certo a origem do rito um minuto de silêncio como gesto de luto ou homenagem aos mortos. Fato é que ao longo de séculos temos acumulado nesse país racista, patriarcal, dependente e desigual incalculáveis minutos de silêncio. São inestimáveis as perdas, as dores e as lágrimas. Quantos minutos mais serão necessários pelos corpos negros estirados no chão, pela vida das mulheres ceifadas, pelos LGBTs ultrajados, pelos direitos golpeados? Aos nossos e às nossas, nenhum minuto de silêncio, mas muita força para ecoar os nossos gritos de resistência.

Resistimos no Espírito Santo, Estado pouco conhecido e citado, mas com a maior taxa de feminicídio da região sudeste e a terceira maior do Brasil. Só em 2017 foram 2 mortes para cada 100 mil mulheres, número quatro vezes maior que a taxa nacional. Ainda é o segundo do país com a maior taxa de homicídio de jovens negros. Os dados retratam as nossas vidas e revelam como as relações de gênero e raça estruturam uma lógica capitalista violenta e desumanizante.

Cento e trinta anos depois da abolição ainda não foram suficientes para permitir que nós, mulheres negras, possamos viver em condições mínimas de igualdade. As senzalas dos tempos de escravidão são hoje as periferias e quartos de empregada. Somos para muitos, sinônimo de negativo, inconveniente e contraproducente. A fixação destes estereótipos afeta as nossas possibilidades em diferentes dimensões da vida, entre elas a ocupação dos espaços políticos e de poder. Não é por causalidade a nossa histórica sub-representação nesses espaços.

Na Câmara Federal as mulheres são apenas 51 deputadas de 513 eleitos. Se considerarmos a representação de mulheres negras, a discrepância é ainda mais estarrecedora, apenas 0,6% das mulheres são pretas. No Espírito Santo a realidade não é diferente, de 30 deputados estaduais apenas 5 são mulheres. Nunca por aqui uma mulher negra ocupou a cadeira do legislativo estadual.

A nossa imagem é pouco “atraente” para as legendas eleitorais. A identificação positiva de boa parte dos eleitores com os candidatos são geralmente associadas ao homem branco. Estes representam a competência, inteligência e racionalidade, requisitos desejados para as funções de direção e poder. Por isso, gritamos que essa democracia dos de cima e seus “homens de bem”, defensores da superexploração e do ódio, não nos representam.

Embora não existam barreiras institucionais explícitas à atuação política das mulheres negras, as relações de dominação e as discriminações estruturam o sistema político brasileiro. Além disso, as nossas condições objetivas e subjetivas impõem rígidos obstáculos para o exercício da política. As nossas precárias condições de vida e de trabalho, as dificuldades de acesso aos direitos, a violência cotidiana e a invisibilização condicionam os nossos projetos, sonhos e vidas. A nossa pele ainda é expressão de guerra, prisão e pobreza. Isso nos exige a resistência sistemática e a organização política.

Acredito que a construção de uma sociedade sem exploração e opressão passa, necessariamente, pela intersecção entre classe, raça e gênero. Qualquer projeto de transformação radical tem sua parte de sonho. É preciso sonhar para explorar o campo do possível.

Sonho com uma forma de organização econômica e social pautada nas necessidades da maioria e não no lucro e nos privilégios. Sonho com a possibilidade de desenvolvermos individual e coletivamente as nossas capacidades criativas e solidárias. Sonho com a mais ampla democracia, sem desigualdade de raça, gênero, identidade, orientação sexual, cultural, regional, geracional ou qualquer outra forma.

A luta pela nossa completa libertação é histórica. Por isso, evocamos Marielle, Lélia Gonzalez, Dandara, Zacimba Gaba e tantas outras guerreiras negras. De certo, quando uma mulher negra se movimenta ela mexe com toda a estrutura vigente. Nada causa mais horror à ordem do que mulheres negras que lutam e sonham. Marielle nos inspira e mobiliza, agora e sempre!

Camila Valadão é mulher, negra, feminista. Assistente Social formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), doutoranda em Política Social (Ufes), Professora e candidata à Deputada Estadual pelo PSOL.