Luciana Trindade: Tinha uma pedra no meio do caminho.

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#AgoraÉQueSãoElas

*Por Luciana Trindade

Tinha uma pedra no meio do caminho.

Poderia ter sido obstáculo, mas se traduziu num dos mais geniais versos da nossa literatura. E assim, como o olhar do grande poeta, passei a vida percebendo as muitas pedras no meu caminho como oportunidades de superação e crescimento.

Aos doze anos, fui diagnosticada com distrofia muscular, uma doença progressiva, extremamente limitante. Com direito à frieza de um profético prognóstico que me atestava não mais do que outros 30 anos de vida.

Poderia ter sucumbido bem ali. Mas apoiada pela família e amigos e movida pela própria consciência, amadurecendo precoce num senso de urgência, levantei-me para a vida.

Sim, numa cadeira de rodas.

E certo dia, o espelho me mostrou nada menos do que graça e beleza.
Fiz as pazes com o amanhã. Minha autoestima crescia. E eu avançava.

Foram muitas batalhas: da resiliência em não desistir dos estudos, um simples e básico direito, negado pela escola que surrealmente me abandonou, ao instinto de me inserir plenamente na dança da sociedade.

Quando você faz parte de uma minoria, inevitavelmente, passa a olhar o mundo com os olhos daqueles que não apenas anseiam por serem acolhidos, como também com as íris daqueles que capturam um absurdo desejo de acolherem quem está invisível, no meio da multidão.

Porque a mente fica mais altruísta. E o coração, mais solidário.

Assim, tomei a saudável decisão de ser nada menos do que protagonista do meu tempo e caminho. Jamais vítima. E, acima de tudo, empoderada mulher. Em uma civilização duplamente machista e preconceituosa.

Até teatro eu fiz e, como atriz que, na cumplicidade do espetáculo, abraça o seu personagem para depois abraçar a plateia, eu quis abraçar o mundo.

E abracei.

Durante uma década, participei do grupo Movimento Superação, militando por melhores condições de acessibilidade. Participei do Conselho Municipal da Pessoa com Deficência e Conselho Municipal de Trânsito e Transporte da cidade de São Paulo. Integrei a Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Pessoa Idosa do Ministério Público de São Paulo. Fui integrante da Comissão Organizadora da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Atualmente, sou Secretária Estadual da Pessoa com Deficiência do PSB SP.

E daqui, incansável, continuo.

Sabia que das 94 cadeiras da ALESP, apenas 10 são ocupadas por mulheres? Ainda mais excludente: apenas 1 cadeira é ocupada por pessoa com deficiência. Desproporcional realidade numa nação onde, há tempos, políticos perderam a credibilidade e o respeito do povo. Aos 39 anos, com a mesma faísca nos olhos da menina que decidiu não ser vencida por uma transponível adversidade, vejo na decisão de me canditar à Assembléia Legislativa, provavelmente a minha escolha de vida mais serena e lúcida, ao longo desse caminho que venho trilhando com muito suor, lágrimas e, acima de tudo, força e garra.

Caminho esse que passa pela esburacada estrada de um país literalmente em chamas.

Se entre pouquíssimos acertos e tantos erros na sua história, o Brasil chegou até 2018, eu também cheguei. Como mulher, cidadã e sobrevivente. E hoje, minha história pessoal se confunde com a história de tantos e tantos brasileiros.

Desse ponto em diante, meu mais sincero compromisso é ser guerreira da minha maior luta. Uma luta por muitas outras lutas. Pela (quase óbvia) defesa das minorias que eu represento, enfrentando na sensibilidade da nossa perspectiva, tantas pequenas mas essenciais batalhas do dia a dia, como a plena e digna acessibilidade no transporte, na educação, no mercado de trabalho, na saúde. Fortalecendo o espírito nas grandes batalhas por uma sociedade que finalmente possa ser sinônimo de legítima participação social; por encerrar todo um ciclo de corrupção; por um Estado mais eficiente, justo e generoso.

Por um novo e relevante propósito de comunidade, dignidade e cidadania.

E assim, vou seguindo. E já não podem me parar. E já não podem apagar meu melhor sorriso. Diante da flor, recém-nascida, bem ali: logo depois da pedra, no meio do caminho.

Luciana Trindade é ativista pelos direitos das pessoas com deficiência e doenças raras e candidata à deputada estadual pelo PSB em São Paulo.