Andréia de Jesus: Nossa voz negra e periférica vai ecoar
*Por Andréia de Jesus
Tenho 40 anos, sou filha de pais analfabetos e aos 12 anos fui trabalhar como doméstica – porque de meninas negras se espera que saibam limpar, não fazer leis. Como eu, quantas somos? E quem fala por nós?
Atualmente, temos 77 cadeiras na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Destas, 71 são ocupadas por homens e apenas 6 por mulheres. Nenhuma delas é negra.
Segundo o último Censo do IBGE de 2010, somos mais de 5 milhões de mulheres pretas e pardas no estado de Minas Gerais. Somos 26% da população e não temos ninguém com uma vivência parecida com a nossa para falar em nosso nome ali – onde as leis são feitas e as decisões que afetam nossas vidas são tomadas.
Passei quase 20 anos da minha vida trabalhando em casas de família, mas aos 35 me formei em Direito, graças à conquista do movimento negro de cotas raciais e do ProUni. Por reconhecer a relevância de políticas como essas na transformação da vida de meninas como eu é que agora coloco meu corpo negro de mulher à disposição das lutas institucionais.
Decidi me candidatar a deputada estadual este ano porque não quero mais que falem por nós. Essas mais de 5 milhões de mulheres negras de Minas precisam e devem ter suas vivências levadas para o centro do debate decisório do estado.
São essas vivências que construíram as pautas que eu defendo hoje.
Defendo o direito à moradia digna, entendendo que morar não é só ocupar um terreno, mas ter acesso a equipamentos públicos, infraestrutura, transporte, serviços.
Como militante das Brigadas Populares, defendo uma política habitacional que destine os vazios urbanos para moradia de interesse social e reconheça a função social da posse, da propriedade e da cidade. Hoje há mais imóveis vazios do que gente sem casa nas cidades brasileiras. Então a questão não é construir mais e cada vez mais longe. É preciso repensar o uso de imóveis abandonados ou inutilizados em áreas que já têm água, energia e serviços próximos.
Defendo também o transporte público como um direito universal e prioritário, porque é ele que garante o direito à cidade. Para usufruir de educação, saúde, emprego e lazer, o primeiro passo é ter como circular, é poder se locomover, para não só chegar aos lugares, mas também ter acesso a bens, serviços, informação e justiça.
Isso é óbvio para quem já deixou de ir a uma entrevista de emprego por não ter como pagar uma passagem até lá. Para quem já viu colegas desistindo do sonho de um diploma porque o busão para de circular às 22 horas ou por não terem mais como enfrentar 4 horas diárias no trânsito entre a periferia onde moram e a universidade.
Mas os privilégios geralmente são invisíveis para quem os têm.
E se forem sempre os mesmos privilegiados a ocupar os lugares de poder, essas obviedades vão continuar fora do debate.
Vai continuar fora do debate o fato de que, para a população negra e periférica, a maior presença do Estado é a da polícia. E não é uma presença que chega pra nos dar segurança, para nos proteger: é uma polícia repressiva e treinada para nos reconhecer como alvos. O Estado não pode ser omisso frente ao nosso genocídio. Segundo o Atlas da Violência de 2017, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. As mães, irmãs, filhas e companheiras dessas pessoas também precisam ser ouvidas quando debatemos segurança cidadã. Nós precisamos estar lá.
O meu primeiro estágio do curso de Direito foi junto a um grupo de apoio a amigos e familiares de pessoas privadas da liberdade – minha primeira experiência como advogada popular. Essa vivência trouxe para minha pauta política o debate sobre encarceramento em massa e o abolicionismo penal. Precisamos refletir sobre o que faz o Estado gastar mais de R$2.000,00 por mês para manter preso, durante 6 anos, alguém que roubou um celular que vale a metade desse valor ou nem isso. E, pior, devolver essa mesma pessoa para a sociedade, ao final desses anos, incapacitada de se ver e ser vista sob outro rótulo que não o de criminoso.
É um debate complexo, mas que precisa ser feito.
Eu sei que o caminho para levar todas essas pautas às instituições legislativas que temos atualmente – cuja composição não se diferencia muito daquela que já nos governava antes mesmo da abolição – não é um caminho fácil. Mas a força que me faz querer tentar vem também de uma vivência muito especial da minha trajetória: a experiência de fazer parte das Muitas – uma movimentação política popular, vinda das ruas, das lutas, das ocupações e dos carnavais, que provou que “votou em uma, votou em todas” nunca foi só um slogan.
A campanha coletiva que apresentou 12 candidatas que caminhavam juntas em 2016 elegeu duas vereadoras do PSOL em Belo Horizonte: Cida Falabella e Áurea Carolina – a mais votada da história da cidade. Juntas, essas duas mulheres vêm inventando um novo jeito de ocupar a Câmara Municipal de BH, com uma equipe única, em um gabinete compartilhado. Como assessora parlamentar, ajudei também a construir a nossa Gabinetona, um mandato coletivo, diverso, aberto e popular, que é hoje referência no país e no mundo.
Viver essa experiência de mandato feito por e pela cidade, transbordando os espaços institucionais com nossa mistura de festa e luta, luta e afeto, afeto e força, é que me faz acreditar que outra política é possível. Juntas, eu e outras 11 parceiras que nos apresentamos como candidatas a deputadas federais e estaduais em 2018, estamos prontas para fazer acontecer de novo.
E nós, mulheres negras, seremos ouvidas. Como nossa irmã Marielle Franco, seremos multidão, seremos protagonistas dessa construção.
Vamos juntas?
Andréia de Jesus mora em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e atua como advogada popular. Foi assessora parlamentar da #Gabinetona, Presidenta da Comissão de Igualdade Racial OAB seccional Neves, Conselheira Municipal do SUAS, da Igualdade Racial, do idoso e da mulher. É da PartidA, das Muitas e candidata a deputada estadual pela coligação PSOL/PCB em Minas Gerais.