A fé no aborto

#AgoraÉQueSãoElas

*Por Mayra Cotta

O segundo dia de audiência sobre a ADPF 442, nesta segunda-feira, 6 de agosto, no Supremo Tribunal Federal, reuniu em especial lideranças religiosas representantes de associações que queriam opinar sobre a descriminalização do aborto no país. Direito, Medicina e Religião nunca estiveram tão imbricados e engajados numa mesma causa desde a Inquisição. Foi nesta época que o Cristianismo, então representado exclusivamente pela Igreja Católica, centralizou e expandiu o seu poder por meio da perseguição daquelas que ousavam cultivar, transmitir e promover o conhecimento não-hierarquizado sobre saúde e reprodução.

As contribuições da Medicina a este projeto naquela oportunidade foram fundamentais: ao mesmo tempo em que sequestrou os saberes tradicionais e concentrou o conhecimento numa elite masculina religiosa, desenvolveu também os métodos mais eficazes para a prática da tortura nos processos contra as acusadas e os acusados de bruxaria e heresia. O Direito, por sua vez, conseguiu dar a essa barbárie uma coordenação racional e eficaz, organizando o processo acusatório canônico e transformando dogmas religiosos em leis de um Estado teocrático. Mais de quatro séculos depois, ainda temos de lutar não apenas contra o mesmo monopólio da Fé Cristã, como também no mesmo campo de batalha: os nossos corpos. A luta pelo aborto legal, seguro e gratuito organiza novamente, do lado de lá, uma aliança sinistra entre cristãos, médicos e juristas para atacar e perseguir as mulheres.

Sabemos todavia que, se o patriarcado estrutura e se infiltra em todas as nossas instituições e relações sociais, não poderia ser diferente para a Religião. Neste campo, assim como acontece em todos os demais espaços de poder, também há mulheres lutando para libertar a sua Fé da dominação masculina patriarcal. E se 85% das mulheres que fazem aborto no Brasil declaram ter uma religião, ao passo que os principais líderes cristãos do país gastam tanta energia para condenar a prática, a luta pela descriminalização precisa também ser disputada no território religioso. 

Por essa razão, o Festival pela Vida das Mulheres – uma enorme mobilização com mulheres de todo país, que entre 3 e 6 de Agosto pintou Brasília de verde e lilás para apoiar a ADPF 442 – organizou uma vigília inter-religiosa às 5h da manhã em frente ao STF. Chegamos lá ainda de madrugada para garantir uma maioria feminista na sala de audiência. Enquanto aguardávamos na fila do lado de fora do Tribunal, ainda tivemos a oportunidade de cantar em alto e bom som um dos nossos gritos no momento de chegada da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB. Os bispos e seus assessores entraram no Tribunal ao som de “se o Papa fosse mulher, o aborto seria legal, seria legal e seguro, se o Papa fosse mulher.” 

Durante todo o dia, tivemos de ouvir das representações religiosas argumentos que iam do bizarro ao ridículo, passando pelo mentiroso e de má-fé. Tentei contar quantas vezes seria repetido que é um “dado cientifico irrefutável” o início da vida no momento da concepção, mas desisti quando chegou em 15 nas duas primeiras horas. É até compreensível que um profissional da Religião tenha tanto apego à irrefutabilidade, mas a essência de um dado científico é justamente sua possibilidade de ser provado em contrário. Se uma afirmação é irrefutável, qualquer que seja ela, já não estamos mais no campo da ciência e adentramos o terreno dos dogmas. E o início da vida desde a concepção é exatamente isso: um dogma religioso, que não pode ser utilizado como subsídio para o desenvolvimento de políticas públicas dentro de um Estado Laico.

Uma vez que não me interessa, contudo, brigar com espantalhos, vou apenas destacar as duas falas que mais chegaram perto de um argumento jurídico. A exposição de Angela Vidal Gandra Martins, representante da Associação dos Juízes Católicos, foi a cara da nossa elite jurídica colonizada. Disfarçadas de argumento legal, ideias racistas e classistas foram apresentadas em um português a todo momento pontuado por termos em inglês pronunciados com um sotaque perfeito. Chegou a dizer que gravidez indesejada só ocorria quando o sexo era a antítese de “making love”. O problema seria que as mulheres estavam tendo relações sexuais desprovidas de amor. Deu como único exemplo o caso de uma menina que engravida num baile funk. Numa tentativa capenga de metáfora, ela chegou a dizer que a descriminalização seria um “aborto jurídico” – o que não parece, todavia, um bom argumento, uma vez que pode ser entendido como a capacidade de o Direito de decidir sobre as normas que melhor contribuem para a sua manutenção saudável e harmoniosa.

Janaína Paschoal também tentou construir uma argumentação jurídica contrária à descriminalização. Dentre seus argumentos, chegou a dizer que não há nenhuma mulher presa por aborto no Brasil, aparentemente considerando a prisão como a única possível consequência negativa da criminalização do aborto e ignorando o impacto de sua clandestinidade na vida das mulheres. Também argumentou que o fundamento da licença-maternidade era a proteção da vida do feto, desconhecendo que este direito só é em realidade adquirido pela mulher quando não há mais feto, e sim um bebê viável extra-uterinamente, vinte e oito dias antes do final da gestação. Além disso, a licença-maternidade foi uma conquista do movimento de mulheres que representa o reconhecimento de que trabalho reprodutivo de gestar, parir e criar é fundamental à sociedade.

No meio desta violenta imposição de dogmas, contudo, vieram respiros de esperança de algumas lideranças religiosas presentes. A ex-freira e representante do movimento Católicas pelo Direito de Decidir, Maria José Rosado Nunes, nos lembrou que os bispos da CNBB não representam a pluralidade de vozes dentre os fieis. O rabino Michel Schlesinger, da Confederação Israelita do Brasil, destacou que a interpretação de textos sagrados está em permanente disputa, o que coloca em perspectiva a posição de um representante religioso.

A fala mais potente e lúcida dentre as representações religiosas foi certamente a da Pastora Luterana Lusmarina Campos.  Ela reafirmou que o papel da religião não é julgar ou legislar, mas sim acolher e especialmente ouvir, e foi ovacionada de pé quando disse “homens, vocês precisam ouvir as mulheres”. Denunciou também a apropriação patriarcal da religião, ressaltando que a Fé foi por vários séculos instrumentalizada para controlar as mulheres como meio de centralização e crescimento do poder religioso organizado institucionalmente.  Relembrou que, na época das ordálias, o aborto não apenas era uma prática aceita, como era imposta como pena às mulheres acusadas de infidelidade matrimonial. O objetivo do exemplo foi mostrar como os dogmas cristãos vão sendo transformados pelos profissionais da Fé para melhor se adequarem ao objetivo de controle das mulheres – tarefa  cumprida atualmente pela proibição do aborto.

Como uma brasileira típica, eu fui iniciada na religião Católica e cheguei até a fazer a primeira-comunhão e frequentar missas durante a adolescência. Hoje em dia, minha fé se concentra exclusivamente na Política como a força transformadora do mundo. Não sobrou fé nem mesmo para ser ateia. De fato, para uma feminista, é muito difícil uma aproximação a religiões que parecem estar constantemente trabalhando para nos oprimir. Na minha posição de ateia não praticante, contudo, só consigo ter uma profunda admiração e o mais inabalável respeito pelas mulheres religiosas que estão diariamente disputando as instituições que organizam a sua fé.

Aprendi com elas que a nossa luta contra o patriarcado deve ser dar em todos os espaços de poder, inclusive dentro das religiões. A organização das mulheres religiosas pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito, a um só tempo, desestabiliza o patriarcado no terreno onde suas raízes são talvez mais profundas, e liberta as mulheres religiosas para praticarem sua fé sem reproduzir os velhos mecanismos de dominação masculina sobre nossos corpos. Faz parte da nossa luta poder ter fé no aborto.

*Por Mayra Cotta, do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher.