#QuemFezEssePixoFuiEu: Caça às bruxas de Maceió

#AgoraÉQueSãoElas

Por Ana Antunes (atriz), Bruna Teixeira (educadora social e empreendedora criativa), Juliana Barretto (antropóloga) e Ticiane Simões (atriz).

 

Bruxa foi um termo designado para classificar, julgar e queimar mulheres. Entre a Idade Medieval e a Idade Moderna, principalmente na Europa: parteiras, rezadeiras, curandeiras e todo tipo de mulheres que assumissem uma postura diferente ao molde feminino construído pelo sistema dominante dos homens eram caçadas e, literalmente, queimadas em praça pública como castigo exemplar. A pergunta que se faz aqui é: na contemporaneidade haveria caça pública de mulheres do tipo “bruxa”? Tudo indica que em Maceió, capital das Alagoas, em pleno nordeste brasileiro, sim.

No último dia 8 de julho a tradicional Praça do Skate foi lugar escolhido (por autoria anônima ou sobrenatural) para ocupação das mulheres pela intervenção urbana das caligrafias de rua. A pista de skate, popularmente conhecida como “Banks”, que estava sendo reformada, ganhou pichações com pautas feministas de direitos sexuais e reprodutivos. Expressões como “a revolução será feminista!” e “meu útero é laico! Legalize!”, foram escritas,  junto a imagens grafitadas em stencil com representações de relacionamentos lésbicos.

No dia seguinte, fotografias da pista de skate com seus novos escritos foram divulgadas na rede social de um jornalista e skatista. A partir de então, o debate se travou entre comentários de cunho machista e lesbofóbico em oposição ao apoio feminista e de admiradores da arte de rua. Lembremos que o skate, o pixo e o grafite são expressões de uma mesma origem: a rua periférica, marginal e transgressora. Essas expressões caminham juntas, o pixo está para o skate, assim com as ondas estão para o surfe. O pixo faz parte do patrimônio da cultura do skate. Inclusive, a pista dos Banks estava há 16 anos sem reformas e completamente abandonada pela Prefeitura de Maceió, mas devidamente pichada. Sempre. A identidade dos “povos das rodinhas” estava por lá há décadas.

Mas, dessa vez, os boys entenderam dessa forma somente até a página 20 e, ao que tudo indica, denunciaram o pixo para as autoridades. E aqui merecemos uma pausa para reafirmar exatamente isso, car@s membrxs da sociedade planetária do skateboard, porque pode parecer constrangedor ou um lapso de escrita, mas não, não é. Skatistas de Maceió denunciam pixo em pista de skate sim! São tempos temerosos, que jamais imaginávamos vivas para ver. Pois bem. A reportagem “Em reforma, praça do Skate é alvo de vandalismo”, publicada no dia 10/07 e repetida nos principais portais de internet, já anunciava em seu título o argumento criminalizador que se seguia. Nela, uma entrevista com o Secretário Municipal de Desenvolvimento Sustentável de Maceió declara a instauração de procedimento criminal no intuito de multar e apreender as realizadoras. Essa mesma afirmativa foi anunciada em outros veículos de comunicação como na rádio e repetidamente no principal telejornal do Estado. A reportagem insistentemente solicitava à população que denunciasse as ditas “vândalas”, perseguindo a pichação de uma forma jamais vista em Alagoas, fato que tornou visível o machismo institucional e a lesbofobia, instalados junto ao órgão e dentro da comunidade de skatistas nutellas da Praça do Skate, que diga-se por passagem, está localizada na orla da cidade em plena Ponta Verde, bairro nobre de Maceió.

Vale a pena trazer aqui alguns indicadores que ressaltam a violência da desigualdade de gênero em Alagoas. O silenciamento de mulheres na “terra dos marechais”, como muitas vezes é referida, não é novidade. Em 2017 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anunciou que apesar de ser um dos estados onde mais se mata mulheres no país, é o que tem a menor quantidade de inquéritos de violência doméstica contra mulher. O que aconteceria com as vozes de denúncia da violência? Chegariam as delegacias? Seriam arquivadas? As imagens na pista de skate são afirmativas que buscam enfrentar o feminicídio, incomodam por abrir possibilidades para reflexão, ação esta que é evitada por quem ocupa confortavelmente espaços de poder.

Porém, dessa vez as vozes não foram silenciadas, muito pelo contrário, ganharam eco. Mulheres de diferentes origens, classes, grupos, sentiram-se afetadas com a ação na praça e sua retaliação resolvendo se posicionar ativamente ante as investigações. A autoria da pichação foi assumida por várias de nós, incluindo figuras públicas de referência para os direitos da mulher no Estado, com publicações em redes sociais através do hashtag #quemfezessepixofuieu. Citamos abaixo trechos de publicações:

“Bom, para quem tiver procurando as “culpadas”, sou eu, sou ela, somos todas nós. Mulheres. Todos os dias. Acordamos e vamos dormir culpadas, sempre. Então, tanto faz pra mim, ser a autora ou não dessa pichação. Podem me culpar, se quiserem. As manas que fizeram, fazem parte de mim, e eu, parte delas. Pq elas disseram tudo o que acredito. Já foi o tempo em que não éramos cúmplices. Oficialmente culpadas. Patriarcalmente culpadas. Não é uma novidade.” (Publicação de Bruna Teixeira, membro da ONG Ateliê Ambrosina)

“#quemfezessepixofuieu e se preparem porque outros tantos estão sendo aplicados agora mesmo, enquanto você lê essa mensagem, por um mana, em qualquer parte da cidade até não sobrar mais espaço para agressões que sofremos todos os dias só por existirmos como fêmeas, alvo de caça. Assumimos o lado de lá. Viramos a mesa. Agora é correr ou aprender a conviver com o que vivemos durante séculos, o medo da possibilidade de ser caçado.” (Autoria desconhecida)

“Quem fez esse pixo fui eu. E aí? O que vai ter?

É tão vergonhoso ver como o estado age ferozmente contra ações de transgressão (desde que sejam elas praticadas por mulheres, para mulheres, sobre mulheres), de “violação do bem público” e blá blá blá. O que incomoda no pixo é seu conteúdo, é sua autoria, sua declaração de guerra contra o patriarcado. #quemfezessepixofuieu e se preparem, porque outros tantos estão sendo aplicados agora mesmo, enquanto você lê essa mensagem, por uma mana, em qualquer parte da cidade até não sobrar mais espaço para as agressões que sofremos todos os dias só por existirmos como fêmea, alvo de caça. Assumimos o lado de lá. Viramos a mesa. Agora é correr ou aprender a conviver com o que vivemos durante séculos, o medo da possibilidade de ser caçado.” (Autoria desconhecida, com disseminação generalizada)

Embora a polissemia da caçada tenha classificado a ação hora como vandalismo, ora como crime, ora como arte ou liberdade de expressão, foi o protagonismo da mulher o marco divisor deste caso, em Maceió. Não vamos retroceder. Se a cidade não inclui a mulher, nós ocupamos. E com certeza a pista do skate não será mais a mesma. Não só mulheres foram afetadas pelas pichações, mas a própria história daquele espaço foi afetada. Quanto ao procedimento de investigação criminal, tudo indica que a autoria continuará atribuída ao sobrenatural. Até porque não seria interessante para o Estado abrir mais um espaço de debate e novamente ouvir nossas vozes ecoarem.  

*As autoras são fundadoras e associadas da Ambrosina – Ateliê para Igualdade de Gênero e Empoderamento de Mulheres, ONG feminista sediada em Maceió-AL que no auge das investigações policiais que estavam baseadas em perfis do facebook, reivindicou a autoria coletiva de todas as mulheres. Hoje, as bruxas autoras dos pixos são incontáveis em Maceió.

 

15.7.2018.