Não foi a primeira, mas com certeza foi a ultima
por Kelly San
“Quando a experiência vivida da teorização está fundamentalmente ligada aos processos de auto-recuperarão, de libertação coletiva, não existe brecha entre a teoria e a prática”
Beel Hooks
Me chamo Kelly San, sou cria da Maré, historiadora da arte em formação pela UFRJ, entre outras tantas coisas. Tenho um filho chamado Gael, ele é a única coisa boa que tenho de um casamento abusivo que resisti por longos quatro anos.
Lembro como se fosse ontem da primeira vez que meu corpo foi lido como passivo de agressão física. Era uma noite em minha casa, onde amorosamente abri as portas para que pudéssemos construir nossa vida juntxs, e eu cozinhava um arroz. Um arroz que eu pedira a ele pra fazer, e que não fora preparado. Naquele dia, ele tinha me pedido para pegar um pendrive em um determinado lugar, e eu não achei. Cheguei em casa sem o pen drive e na expectativa de comer um arroz fresquinho que, lamentavelmente, não estava nem na idéia de ser feito. Tudo bem, acontece!, eu disse, já propondo: “Vamos pra cozinha agilizar, então?”. Ao som de uma música que não me recordo, fui bailando no ritmo da comida que estava preparando, até ser questionada sobre não ter conseguido achar o tal do pendrive. Na tentativa de explicar o que havia acontecido fui duramente ofendida com insultos tais como: “estrupício, retardada, não serve pra nada, animal, doente e imbecil”. Não era primeira vez. Explodi, gritando: “Você não fez o arroz, e está tudo bem. Chega!”
O que parecia ser uma súplica de fim, foi só o começo. Ele me mandou “tomar no cu” e eu respondi “vai você”, e isso foi o suficiente para uma agressão física daquelas que não deixam marcas, mas que te destroem: um tapa no pescoço, bem forte, que me fez cair pra frente – até sinto arder enquanto escrevo. Em seguida, acuada e com dedo na minha cara, eu ouvi: “não se manda homem tomar no cu”. O que eu fiz? Me desculpei. E passei a noite sem acreditar no que havia acontecido.
No dia seguinte fui à delegacia da mulher, onde fui MUITO humilhada e até cheguei a ouvir, quando falei onde morava, que não seria possível mandar uma viatura na favela, pois não havia garantias de que o meu agressor não era um traficante. Depois dessas e muitas outras diferentes violências sofridas na delegacia da mulher, da Praça Tiradentes, Rio de Janeiro, fui desencorajada a fazer o registro de ocorrência. Em casa, me sentindo culpada e sendo culpabilizada pelo meu agressor, que por sua vez, dizia que eu estava provocando nele uma conduta violenta, pedi desculpas. Continuei naquela relação, afinal de contas, a “responsabilidade de fazer dar certo era minha” e só fui ladeira abaixo: impedida de freqüentar a faculdade, xingada, humilhada em público, desqualificada, explorada, empurrada, sofria terror psicológico e até estupros – um, inclusive, quando eu ainda estava me recuperando de um parto normal, que chegou a romper um ponto interno.
Sem coragem de contar pra minha família, segui naquele casamento destrutivo e cada vez mais anulador da mulher incrível que hoje eu consigo enxergar que sou. Saí dessa relação depois de muitas outras violências e quando pensei estar livre de viver outra agressão…
Me envolvi com um menino que vi crescer a uma certa distância, e virou um homem que hoje tem 23 anos, cinco a menos que eu. Ele era tão interessante, divertido e cuidadoso. Não demorou muito para eu ficar apaixonada.
Entrei para o grupo de corrida voltado para o público feminino a fim de potencializar o empoderamento de mulheres na favela, do qual ele era treinador. E tudo começou a não fazer mais sentido entre ele e eu. O que era doce ficou amargo. O cuidado se tornou maus tratos excessivos. O interesse se transformou em um desdenho sem razão, onde toda hora me via questionando o porque de tanta mudança de comportamento, e a resposta era que estava “tudo bem”. Tentei, sem saber muito bem como, compreender e respeitar os espaços dele, afinal de contas, éramos meros “ficantes” e eu não tinha grandes acessos à sua vida.
Também era noite, e também lembro como se fosse ontem. Era um momento bom onde eu entendi que havia uma boa energia, e pedi para que ele me ensinasse umas técnicas de jiu-jitsu. Imobilizada e aos risos, pois era uma brincadeira, sinalizei que lhe daria um “jeb” e falei para que ele esquivasse, não sei bem como, mas o soco entrou na guarda dele deixando-o enfurecido. Levantei rapidamente, aos muitos pedidos de desculpas para pegar água pra ele e de costas recebi um soco na nuca e chute nas pernas que quase me fizeram cair. Ele se levantou, me chamando pra “brigar em pé” e foi a hora que eu me abaixei dizendo que não. Ele armou um soco dizendo que ia arrebentar minha cara, que me deixaria roxa. Me fechei, agachada no chão, com medo, e ele, desistindo do tal soco, seguiu com as agressões, me pegou pelos braços e começou um sexo forte e doloroso, nunca feito antes, que me deixou com muitos hematomas nas costas, na bunda, nos braços, uma mordida que demoraram longas quatro semanas pra desaparecer e a memória de mais um estupro. Desta vez, não tive coragem de ir a delegacia. Não queria novamente ser hostilizada. E só agora, depois de 8 meses, consegui procurar a ONG para reclamar essa agressão.
Saio dessa segunda experiência de agressão, com a sensação de que nós, enquanto sociedade, não temos medidas eficazes pra lidar com as estruturas operante do machismo em nenhuma escala. Ele existe, fere, anula… E a vítima muita das vezes fica entre a culpa (por reivindicar uma punição efetiva) ou a passividade pedagógica (meu caso). Isso, falando de um lugar de exceção, pois, na maioria das vezes nossa única opção é a culpa e principalmente, o silêncio.
São dolorosos e duros os impactos que uma agressão tem em nossas vidas, trata-se de marcas que nunca vão nos deixar. Superamos, eu sei! Mas nunca esquecemos. É muito difícil perceber que você estava disposta a dar amor e recebeu violência, quando talvez, honestidade fosse o mais sensato, é duro perceber que o seu corpo foi lido como passivo de socos e chutes…
Diariamente muitas mulheres são agredidas e abusadas nos mais variáveis níveis e formas. Mensurar o impacto que essas violências causam em seus corpos e saúde mental é quase impossível e irreparável em muitos casos. Mas sigo acreditando no afeto e coletividade. Assim como iniciei, fecho com a nossa querida bell.
“teorias arraigadas na tentativa de compreender tanto a natureza da nossa situação atual quanto aos meios pelos quais podemos nos engajar numa resistência capaz de transformar nossa realidade”
Não estamos sozinhas, somos potências!
* Kelly San é mãe, estudante, mulher da favela e feminista