Fifa, por que te calas sobre o assédio?
por Amanda Célio*
Esta matéria foi fechada no sábado (23) pela manhã, tendo de ser atualizada no domingo (24) à noite, antes do envio, pelo conhecimento de mais um caso de assédio sofrido por uma jornalista brasileira em pleno exercício de seu trabalho na Copa do Mundo de Futebol Masculino da Rússia.
O caso em questão aconteceu no domingo (24), quando a repórter Júlia Guimarães, que entrava ao vivo pela Rede Globo, antes do jogo entre Japão e Senegal, em Ecaterimburgo, foi vítima de um assédio de um torcedor russo que tentava beijá-la no rosto. Júlia conseguiu desviar e advertiu o homem: “Atrevido. Não faça isso. Nunca mais faça isso, ok?”, disse. O torcedor parece se desculpar e ela encerra: “Eu não permito você fazer isso comigo. Isso não é simpático. Isso não é certo. Nunca mais faça isso com uma mulher. Respeito”. Mesmo após o ocorrido, Júlia conseguiu fazer sua entrada ao vivo. Ao site do Globo Esporte, a repórter disse que é a segunda vez que tenta ser agarrada no país que sedia a Copa, fora as situações envolvendo “brincadeiras”, “cantadas” e circunstâncias constrangedoras.
Os assédios diários sofridos por mulheres no ambiente profissional não são novidade e muito menos exclusividade de quem trabalha no meio jornalístico. Essas situações abusivas, muitas vezes, engolida a seco nos bastidores das notícias, levou, por exemplo, a jornalista estadunidense Jessica Bennet a construir um guia irônico e incisivo de como sobreviver ao sexismo no ambiente de trabalho, lançado em 2016, mesclando experiências pessoais e de outras mulheres. Feminist Fight Club – traduzido em mais de 10 idiomas – já ocupou a lista dos mais vendidos do The Wall Street Journal e foi eleito um dos melhores do ano por veículos como a Forbes e o Chicago Tribune.
Com o triste episódio de Júlia, somam em cinco os casos de assédio cometidos contra jornalistas, noticiados pela imprensa mundial na Copa 2018 e iniciada há quase duas semanas, sem nenhuma declaração oficial da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e dos demais órgãos que realizam o evento. O primeiro caso de assédio aconteceu ainda na abertura do evento, quando a repórter colombiana Julieth González Therán, enviada especial da Deutsche Welle a Moscou, foi agarrada à força e beijada por um homem, na praça Manege, enquanto fazia uma transmissão sobre a contagem regressiva para início da cerimônia.
O segundo ocorreu no jogo entre Argentina e Islândia, no dia 16, na parte externa do estádio de Nizhny Novgorod. Um torcedor islandês, fantasiado, ameaçava interromper a transmissão ao vivo da equipe da ESPN e da repórter Agos Larocca. Ele tentou agarrar Agos e precisou ser impedido por um produtor da emissora. No mesmo dia, outros dois torcedores argentinos assediaram e tentaram roubar um beijo de uma compatriota jornalista. A repórter do Superesportes se defendeu com o microfone e o braço para não ser beijada pelos agressores.
Um grupo de brasileiros, que já foi identificado, também protagonizou um episódio de assédio na Rússia, com uma repórter local que não entendia o português – todo o mundo viu eles cantando ofensas misóginas, machistas e racistas.
O assédio contra mulheres jornalistas não é uma especificidade da Copa da Rússia, uma vez que está umbilicalmente ligado aos primórdios do futebol. Na última Copa, quando o Mundial aconteceu no Brasil, a repórter da Rede Globo Sabina Samonato foi agarrada durante as transmissões, duas vezes, por torcedores que a beijaram no rosto, sem o consentimento dela. Casos humilhantes, envolvendo jornalistas esportivas, que foram diminuídas, xingadas ou escrachadas por homens pelo seu gênero durante o trabalho levaram um grupo de jornalistas brasileiras a criarem, em 2018, o movimento “Deixa Ela Trabalhar”.
Mesmo com a repercussão desses casos estampadas nas mídias do mundo inteiro e pipocando nas redes sociais, a Fifa, organizadora do maior evento esportivo do mundo, com os seus 100 anos de fundação, não pretende mudar o curso dessa luta histórica contra o machismo no futebol e, novamente, desfila na Copa da Rússia com o seu mais batido figurino: o silêncio.
Todo ano de Copa do Mundo, a entidade é pressionada a se posicionar sobre campanhas mais incisivas de racismo e homofobias nos estádios. Em março, a entidade e o Comitê Organizador foram colocados na parede para agir com mais firmeza no combate ao racismo em estádios russos. Isso porque em amistoso realizado naquele mês em São Petersburgo, entre Rússia e França, Pogba e outros jogadores afro-franceses, como Kanté e Dembélé, ouviam imitações de macaco cada vez que pegavam na bola. Por essa situação, o presidente Gianni Infantino disse, na época, que a entidade será “muito, muito firme” no combate ao racismo durante o Mundial.
Na Copa de 2014, a organização foi duramente criticada pela falta de rigor no enfrentamento ao racismo e à homofobia. Gritos de “bicha”, especialmente em jogos do México (“putos” era a palavra usada), e imitações de macaco no jogo entre Alemanha e Gana provocaram desconforto a entidades que combatem manifestações desse tipo. Neste ano, mudanças a passos lentos já puderam ser notadas.
O mínimo esperado de uma entidade da magnitude da Fifa e do evento esportivo em questão – campanhas, pronunciamento, sanções – já representa um começo. O mesmo definitivamente não ocorre quando se trata de machismo e assédio contra jornalistas. Ora, o que acontece fora de seus estádios não lhe diz respeito? Existe um fenômeno mundial de jornalistas que são assediadas e atacadas sem consentimento diariamente, principalmente em coberturas de futebol e em nenhum desses casos existe um posicionamento da Fifa ou de federações nacionais.
Não deveriam os torcedores que causam o infortúnio serem punidos? Não cabe à seleção dos torcedores que assediam ser igualmente multada por esse tipo de conduta? Nem ao menos uma nota de repúdio? Além disso, a Fifa poderia pressionar, junto ao país sede do evento – considerado um dos mais machistas e homofóbicos do mundo, diga-se de passagem – a tomar medidas protetivas que punissem esses torcedores ou a realizar campanhas junto a coletivos e associações oficiais de jornalistas para levantar a questão do machismo em jogos de futebol. Era o mínimo esperado.
O silenciamento da organização não causa espanto, muito pelo contrário. A Fifa é conhecida historicamente por não se pronunciar em casos de machismo no futebol, mesmo que tudo esteja acontecendo debaixo dos seus olhos. Afinal, até quando o assédio e desrespeito com uma mulher, que esteja cobrindo o evento ou não, será tolerado pela instituição? O que é, ainda, necessário ocorrer para que haja algum tipo de atitude do referido órgão? De quem uma postura mais incisiva pode ser cobrada, senão da segunda organização internacional com mais participantes do mundo, que abraça 209 organizações esportivas privadas associadas representando o esporte em países ou territórios?
Com esse histórico questionável, é fácil concordar com o pesquisador Ellis Cashmore, da Universidade Staffordshire, autor do livro Making sense of sports (Entendendo os esportes), que, entrevistado pela revista Época em 2014 para comentar sobre o caso de machismo envolvendo a auxiliar em arbitragem Fernanda Colombo – por cometer dois erros seguidos, um na partida entre São Paulo e CRB e outro no clássico mineiro entre Atlético-MG e Cruzeiro, foi insultada pelo diretor de futebol do Cruzeiro na época, Alexandre Mattos: “Se é bonitinha, que vá posar para a Playboy, não trabalhar com futebol”, disse.
Para Elis Cashmore, essas atitudes ocorrem porque o machismo não coloca em risco o modelo de negócios da Fifa. Segundo Cashmore, se o comportamento racista ficar impregnado no futebol, o crescimento econômico da Fifa nesses mercados pode ser comprometido. Já com o machismo, a Fifa não vê o mesmo risco. Não à toa, episódios como os comentários do dirigente do Cruzeiro e a falta de posicionamento em casos extra-campo, mesmo em competições credenciadas pelo órgão, são comuns em várias partes do mundo. O próprio ex-presidente da Fifa Joseph Blatter já sugeriu certa vez em uma declaração que as jogadoras mulheres deveriam usar shorts curtos e mais justos para “ter uma estética mais feminina”. As mulheres nunca serão levadas a sério enquanto o futebol for controlado exclusivamente por homens.
Jornalistas esportivas que passam por situações de machismo e assédio normalmente encontram amparo apenas nos colegas de profissão, alguns coletivos de jornalistas ou sindicatos, mas nunca há uma posição ou atitude vinda por órgãos oficiais de futebol, nem mesmo quando os insultos acontecem dentro dos campos.
Nesta sexta-feira (22), a ONU Mulheres Brasil divulgou uma nota pública em solidariedade às mulheres do mundo e contra a violência de gênero na Copa 2018. A ONU defende que “grandes eventos devem colocar a questão de gênero e os direitos das mulheres no centro dos encaminhamentos preparativos por meio de medidas de prevenção e consciência pública sobre a violência contra as mulheres. Iniciativas de prevenção, a exemplo da campanha do Secretário-Geral da ONU “UNA-SE pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, precisam ser adotadas pelas próprias instituições organizadoras de grandes eventos, ampliando o alcance e a circulação de mensagens de conscientização sobre práticas e comportamentos sociais baseados no respeito e na igualdade de direitos e alerta sobre como a violência de gênero acontece, como evitar, como apoiar as vítimas e como responsabilizar os agressores”.
A caminhada até o fim da Copa é longa, não pelas duras horas cobrindo uma seleção ou outra, pelos pesos dos equipamentos nos ombros ou por estar longe de casa, mas por, além de tudo isso, sair para trabalhar sabendo que, a qualquer momento, poderá ser desrespeitada, insultada e assediada por homens e “poderosos” que ainda não aprenderam o significado da palavra respeito. A indignação é por eles e pela Fifa, afinal: até quando ela será co-responsável pelos assédios sofridos daquelas que só querem trabalhar?
Amanda Célio é jornalista e feminista.