Baronesa
Por Juliana Antunes
Belo Horizonte tem vários bairros com nome de mulher e a maioria deles nos leva para a periferia. Em 2008, quando me mudei do interior de Minas para a capital, recebi a seguinte instrução: os ônibus azuis, eu poderia pegar quase todos, mas deveria ter cuidado com os vermelhos, pois eles iam “pro outro lado da cidade”. Os anos foram se passando e o interesse de tornar a experiência dos ônibus vermelhos em filme se consolidou durante o meu trabalho de conclusão de curso (Cinema e Audiovisual – UNA).
Comecei a visitar os bairros procurando por mulheres que estivessem interessadas em participar de um filme usando um método de abordagem clássico: saí, junto com mais duas amigas (Marcela Santos e Giselle Ferreira) pregando cartazes nas ruas com os dizeres: procuram-se mulheres interessadas em fazer um filme. Resultado pífio, quase nenhum retorno, exceto por um cartaz colado ao lado de um salão de beleza. A partir daí, se formou um dispositivo: mulheres que trabalham e ou/frequentam salões de beleza e moram em bairros com nomes femininos. O “salão da Pâmela” se tornou o meu ponto de partida para o roteiro que se baseava no cotidiano do salão e da comunidade.
Em uma tarde no salão da Pâmela, Andreia (protagonista do filme) entrou, experimentou uma blusa, me fitou no espelho e saiu. Por intuição, comecei a procurar por ela – que não havia concordado em fazer um filme a priori. E ela, depois me disse: chegou a se esconder debaixo de um carro pra não ser encontrada por mim.
Foi em Agosto de 2015 que houve uma virada. Estávamos filmando Pâmela, quando Andreia resolveu nos dar uma cena na qual ela fazia as unhas de uma cliente. Mostrei o material filmado para ela e afirmei: você é uma grande atriz. Andreia topou fazer o filme com a seguinte condição: a de que eu vivesse na favela, pois ela não poderia me dar todo o seu tempo e nem saber com antecedência quando poderia gravar.
Aluguei um barracão de 30m para morar sozinha e lá fiquei por quatro meses, com visitas semanais da equipe. A chegada à Vila Mariquinha não foi tranquila e a maioria das pessoas, sobretudo Andreia, pensavam que eu era uma agente policial infiltrada. No exato dia da minha mudança, uma guerra de gangues rivais se anunciou e mudou completamente os rumos do projeto: um filme sobre salões de beleza daria lugar à uma rotina áspera e entrincheirada. A nossa presença na favela e na casa da Andreia atraiu Negão e Leid, vizinho e cunhada, respectivamente, que entraram de uma maneira muito orgânica no projeto que foi filmado de uma maneira diferente da lógica tradicional aplicada ao mercado de cinema. Algumas cenas eram ensaiadas e gravadas várias vezes. Outras se davam pelo risco do real.
O fato de estarmos em uma equipe reduzida e majoritariamente feminina fez do nosso encontro um filme com mulheres na construção conjunta: na frente e atrás das câmeras – o que estabeleceu outros parâmetros de organização da equipe, de possibilidade de fazer cinema, pois não só a história se reconfigurou, mas a narrativa também acabou dando a ver essa invenção de lugar comum – que não eram nem da equipe, nem das atrizes: foi um lugar comum que inventamos e que implicou na invenção de uma relação.
O material bruto gerado dos meses de imersão era extenso. Foi aí que o realizador Affonso Uchoa (A vizinhança do Tigre e Arábia) se debruçou em mais 60 horas de um material irregular e complexo. Assistimos, juntos, todas as imagens a fim de encontrar um rumo para o filme, que, apesar de indicações de um roteiro prévio, não estava completamente definido. Meses de trabalho nos levaram a uma escolha de 15 horas de material bruto e indicavam caminhos de filmes possíveis. E foi neste momento que a montadora Rita Pestana entrou no projeto e somou forças ao filme que se deve muito ao trabalho de montagem.
E bem, sempre fica a pergunta: é documentário ou ficção? Pra mim, toda ficção tem muito de documentário e todo documentário, tem ficção. Costumo dizer que Baronesa é um filme de “não atrizes” feito por uma “não diretora” e uma “não
equipe”. Foi a primeira vez de todo mundo no cinema. Andreia e Leid são grandes atrizes, só não tiveram oportunidades na vida de se destacarem como tal, assim como a maioria mulheres da equipe não haviam tido oportunidade de trabalho no mercado de trabalho, pois estavam no começo de carreira de uma uma profissão que ainda opera em lógica ainda muito masculina.
Baronesa foi selecionado para mais de 50 festivais nacionais e internacionais. Premiado nos festivais de Tiradentes (Brasil), FID Marseille (França), Havana (Cuba), Mar del Plata (Argentina), Indie Lisboa (Portugal), Valdívia (Chile) e Ourense (Espanha), o filme está em cartaz pela SESSÃO VITRINE em várias salas de cinema pelo país. O maior desafio do cinema nacional é a distribuição e conseguir colocar o filme em cartaz é algo que nos deixa extremamente felizes. Para que Baronesa tenha um vida em cartaz, é preciso que as pessoas ocupem as salas e falem do filme para as amigas e amigos e postem nas redes sociais, pois um filme tão independente precisa do “boca a boca” para chegar às pessoas.
Juliana Antunes é cineasta