“A denúncia contra um ex obsessivo que tentou destruir minha carreira e meu trabalho” por Panmela Castro

#AgoraÉQueSãoElas
Recuperação do mural feita por Panmela Castro em 19 de outubro de 2017.

Por Panmela Castro*

Há dez anos eu iniciei o projeto que hoje se chama Graffiti Pelo Fim da Violência Contra a Mulher e é realizado pela Rede NAMI. No projeto visitamos escolas e comunidades e aplicamos uma metodologia onde conversamos sobre a Lei Maria da Penha e em seguida pintamos um mural temático com os participantes. Logo no início das primeiras oficinas, escutando a facilitadora falar sobre a violência doméstica, eu identifiquei que eu vivenciava uma relação abusiva.

Namorava há algum tempo um rapaz que também era grafiteiro e que por nunca ter me violentado fisicamente, eu pensava ser um cara legal. Com o aprendizado das oficinas, entendi que a agressão física não era o único tipo de violência doméstica, mas que existem outras ações mais sutis que podem ser tão devastadoras quanto um tapa na cara. Eu percebi que tudo o que meu ex chamava de cuidado e proteção, na verdade era controle: um sentimento de posse como se eu fosse mais um dos objetos pertencentes a ele e que tinha o direito de controlar o destino.

Me lembro que eu nunca podia participar de projetos ou pintar com outras pessoas sem que ele estivesse por perto ou desse seu consentimento. Era muito ciumento e por várias vezes me constrangia me acusando de estar “olhando para outros caras”. Nesta época, minha carreira como artista se encontrava completamente estagnada por falta de soberania.

Com muita resistência da parte dele eu rompi o relacionamento. Ainda me lembro de minha madrinha ir atrás de sua mãe pedindo que ela conversasse com ele para me deixasse em paz.  Liberta, logo minha carreira ascendeu, mas volta e meia eu recebia mensagens anônimas negativas e murais meus apareciam riscados com xingamentos. Eu ficava pensando o porquê disso já que eu não possuía embates com pessoas que poderiam chegar a tal ponto de obsessão, a não ser, ele… Ainda alguns me alertavam de vez em outra, para o fato de ele desqualificar o meu trabalho de arte diante do círculo profissional da área. Como minha carreira crescia verticalmente, fui deixando isso tudo para lá, e ignorando, até que, um dia no mês de julho de 2017, eu criei um mural que foi totalmente danificado com letras de graffiti que formavam o nome do meu ex: sua assinatura. A mesma simbologia que ele usava para espalhar sua tag pela cidade; a mesma que eu conservava em arquivo, dezenas de fotos na qual ele aparecia fazendo. Sequencialmente, comecei a receber mensagens postadas em meu Instagram com uma certa constância. Nessas mensagens o público dos meus fãs, patrocinadores, clientes e seguidores em geral eram expostos à xingamentos, ironias, desqualificações do meu trabalho e até mesmo graves acusações de crimes como assassinatos.

Grafiti feito por Panmela em 8 de julho 2017.

Reuni todo este material e busquei ajuda no CIAM e na NUDEM, ambos sem sucesso. Lá me desencorajaram a ir adiante, alegando que tais ações não se enquadravam em violência doméstica. Mas lendo e relendo a Lei Maria da Penha durante esses dez anos de trabalho, ninguém poderia tirar de mim a consciência dos meus direitos.

Eu poderia dissertar aqui sobre a violência psicológica e moral na qual estava passando, mas prefiro ir ao ponto que mais me prejudica: a violência patrimonial que é descrita no Artigo 7o : “entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. Desde que comecei a ser indenizada por marcas que usaram sem autorização a imagem dos meus murais públicos em suas propagandas, entendi que um graffiti mesmo na rua é meu patrimônio intelectual, garantido pela Lei de Direitos Autorais.

Rasura feita pelo ex-namorado de Panmela em 10 de julho de 2017.

Ainda a Lei Maria da Penha garante vínculo trabalhista à vítimas de violência doméstica, pois entre muitos casos, os companheiros e ex companheiro procuram os trabalhos das mulheres a fim que estas sejam mandadas embora e assim passarem por dificuldades financeiras. No meu caso eu não tenho vínculo empregatício, mas danificar meus murais é uma forma de me anular no trabalho já que empresas me contratam para revitalizar espaços e garantir sua permanência sem pichações e outras intervenções e enfim, quem vai querer contratar uma grafiteira que tem suas paredes detonadas?

Para que o meu caso não fosse mais um deixado de lado pelos órgãos públicos, Marielle Franco se ofereceu para me ajudar e com o apoio da advogada do seu gabinete, consegui fazer um BO na delegacia da mulher do centro, receber uma medida protetiva de afastamento, ser atendida pelo Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) que é o órgão da Defensoria Pública e ter meu processo aberto.

Hoje no Brasil estamos passando por um processo de perda de direitos e desmonte dos equipamentos que a Lei Maria da Penha nos garantia, e isso se apresentou ao receber a notícia de que o Juiz considerou que os fatos narrados por mim não sugerem risco à minha integridade psicofísica e que seria necessário perícias e provas a serem produzidas em ação civil. Uma das coisas que aprendi com as oficinas do meu projeto é que a violência doméstica acontece sem testemunhas e que um homem não pode decidir sobre como eu me sinto. Junto à minha defensora pública, pedi a reconsideração do processo. Refiz o meu mural e nele coloquei uma mensagem sobre as mulheres denunciarem e irem atrás de seus direitos juntamente com o número do ligue 180 que é canal direto de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população de mulheres em todo o país (a ligação é gratuita) e a partir disso recebi a seguinte mensagem do meu ex: “A Pessoa não precisa se identificar para rasurar essa bosta de grafite. É só jogar uma lata de tinta e eu quero ver vc usar essa merda de medida protetiva de bosta!”

Marielle foi assassinada e eu fiquei orfã de alguém que acreditou na gravidade do que estava acontecendo comigo.

No mês passado aconteceu um festival de graffiti no Rio, e o nome dele estava na lista dos artistas participantes. Comuniquei a produção que eles estavam se associando a um homem agressor de mulher. Logo o festival me comunicou o desejo de afastá-lo das atividades, mas retornando em seguida explicando que por uma questão contratual com um dos patrocinadores, não poderiam fazê-lo. Este patrocinador é uma marca de tinta que apoia o trabalho do meu ex agressor. Eu fico pensando, como uma cara que faz o que faz com as mulheres pode ser usado como exemplo para toda uma geração de novos artistas que irão crescer achando que violência contra mulher é normal? Como uma marca pode apoiar isso?

Cheguei a conclusão do quanto é importante que meu processo não seja mais um arquivado, pois sem esta condenação, apesar dos dois prêmios internacionais de direitos humanos que já recebi pelo meu trabalho com a Lei Maria da Penha e das diversas listas na mídia que ressaltam a minha relevância nesta luta, ainda assim eu poderia ser acusada de mentirosa, louca, e todos os demais adjetivos usados para desqualificar as mulheres quando elas fazem nada mais do que denunciarem o machismo, a violência e irem atrás de seus direitos básicos, como este de não ser agredida por uma pessoa com quem um dia elas dividiram a vida.

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*Panmela Castro é artista, feminista, grafiteira.