Corpo da mulher vulnerável, território de violência.

#AgoraÉQueSãoElas

por Ana Teresa Derraik*

Um caso escatológico, sentenciou Oscar Vilhena Vieira com propriedade em coluna do dia 09/06/2018 do jornal Folha de São Paulo. Além de escatológico, emblemático, acrescento eu. A quantidade de direitos infringidos na decisão violenta e inconstitucional do juiz que determinou a condução coercitiva da Janaina Aparecida à esterilização compulsória ilustra o tratamento que o estado brasileiro dispensa às suas mulheres.

Vivemos em um país onde o corpo da mulher não pertence a ela, é antes de tudo uma propriedade do Estado que impõem regras e limitações a decisões que são de natureza privada e íntima, ou deveriam ser.

Criminalizar o aborto, condicionar autorização do cônjuge para realização da ligadura de trompas (o homem não precisa da autorização da esposa caso deseje a vasectomia), negar amplo acesso à contracepção, principalmente aquela de caráter reversível de longa ação (será que o dispositivo intrauterino (DIU) de cobre, único método reversível de longa ação disponível pelo SUS é de fato disponível no SUS?), são exemplos do poder sobre o corpo da mulher. A quem interessa manter esse corpo sob contenção, sob jurisdição?

       Ciclar, sangrar, gestar, parir, amamentar são atos de potência, especificidades de um corpo que tem útero, sim, especificidades de um corpo histérico, no melhor e mais positivo sentido da palavra! A expressão dessas potências impõe risco de quebra de um status quo que dura e perdura há muito tempo em terras brasileiras.

O domínio do corpo, a miscigenação histórica às custas de estupros e violações de direitos humanos mais básicos são feridas abertas que não param de purgar. E conforme o grau de vulnerabilidade social, mais grave fica a situação.

Mulheres com grande número de filhos, dependentes químicas, portadoras de necessidades especiais e adolescentes não contam com programas de planejamento familiar adequado às suas demandas específicas. Resultado: além da alta taxa de gestação indesejada nesse grupo de mulheres em condição de vulnerabilidade, abertura de espaço para episódios lamentáveis de desrespeito à autonomia. Há lei (9.263/96) que impede o controle de natalidade com finalidade demográfica. Janaina provavelmente desconhece essa lei. A ela não foi dispensada uma representação que pudesse fazer uma interface entre seus direitos constitucionais e a corte a qual era submetida.

       O corpo de uma mulher em condição de vulnerabilidade social é hoje, no Brasil, território onde ocorre a maior incidência de violações de direitos humanos. Nesse corpo incide estupro, tapas, socos, chutes, gestações, partos sofridos e traumáticos, morte materna, falta de acesso à aborto seguro, falta de informação esclarecida e consentida sobre contracepção, falta de cuidado, falta de respeito.

A laqueadura tubária é um capítulo à parte nessa cartilha de violência acobertada pela lei. Trata-se de um procedimento cirúrgico que se propõe a causar uma esterilização definitiva. Têm indicações médicas pontuais e restritas, mas a falta de informação e de acesso a métodos contraceptivos eficazes e de políticas públicas destinadas aos direitos sexuais e reprodutivos, faz com que esse método represente um poder concentrado na mão de quem pode proporcioná-lo. Há mulheres que sonham com o procedimento e se submetem a partos cirúrgicos contratados onde mais do que o nascimento, a ligadura se torna o evento principal. Há promessas de execução de ligadura em troca de favores em algumas regiões de extrema pobreza, onde engravidar e parir são verbos tão comuns que 5 filhos é número pequeno. Mulheres se tornam mães e avós ao mesmo tempo, quando filhas, tão logo menstruem, repetem a história de suas mães e avós.
Acesso à contracepção supõem antes de mais nada acesso à informação em linguagem de fácil entendimento por quem quer que seja. É mandatório que todo serviço ou projeto em planejamento familiar inicie sua ação com  o esclarecimento sobre todos os métodos contraceptivos disponíveis, suas respectivas indicações, contraindicações, limitações, complicações, taxas de eficácia, informações que devem ser fornecidas sob a luz de evidências científicas. De posse desses esclarecimentos, a decisão é da mulher.

Quando o método é cirúrgico, definitivo ou mesmo necessita de um procedimento para sua inserção é de bom tom a assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido, onde há a manifestação pessoal da concordância com adoção daquele método, após esclarecimento de todos os detalhes a respeito, seus efeitos colaterais, suas possíveis complicações, após saneamento de quaisquer dúvidas. Como carecemos de espaços para tal.

A decisão é (ou deveria ser) da mulher. O corpo é dela, é ela quem sofrerá os efeitos e arcará com as consequências da sua escolha. Determinar de forma imperativa e absoluta que uma mulher fique estéril para sempre é violência repudiável. É impressionante que em pleno século 21, a discussão ainda esteja nesse patamar.
O maior perpetrador de violência contra mulher no Brasil é o estado brasileiro. Escatológico!


Ana Teresa Derraik é médica ginecologista e obstetra, mestra em saúde da família, diretora técnica da Derraik Mulher e presidente do NOSSO Instituto, ONG que promove direitos sexuais e reprodutivos.