“Cuspiram na minha cara dentro do estádio” – assédio e machismo no Jornalismo Esportivo | #AgoraÉQueSãoElas
por Aline Andrade
As recentes denúncias de casos de assédio sexual, amplamente divulgados nas redes sociais, chamaram a atenção para uma cultura na qual os homens foram autorizados a hostilizar, humilhar e até mesmo estuprar mulheres com impunidade. Embora a narrativa em torno dessa cultura tenha sido ligada principalmente às indústrias de entretenimento, o recente caso da jornalista Bruna Dealtry, repórter do Esporte Interativo, deu luz à mídia esportiva, uma área que por muitas vezes fecha os olhos para a má conduta sexual.
Na última semana, Bruna publicou um desabafo no Instagram após ser assediada ao vivo, quando um torcedor lhe deu um beijo na boca sem consentimento. Visivelmente constrangida, ela continuou a transmissão. O caso dela foi só mais um dos muitos abusos que acontecem diariamente no jornalismo esportivo. Com intuito de denunciar o machismo e buscar combater o assédio, cerca de 50 jornalistas, entre produtoras, apresentadoras e repórteres de diversas emissoras e veículos, se reuniram para lançar o manifesto “Deixa Ela Trabalhar”.
“Já recebi ameaça de estupro por mensagem, já fui xingada, ofendida. Cuspiram na minha cara dentro do estádio”
Bibiana Bolson, colunista do portal ESPNW
“Não quer ouvir, vem de fone para o estádio.”
Resposta de torcedor ao receber críticas da jornalista Monique Danello, do Esporte Interativo
Em pesquisa publicada pela ONU em 2017, praticamente uma a cada duas jornalistas já sofreu abuso sexual ou psicológico, agressões digitais e outras formas de violência por serem mulheres. Na mídia esportiva, o cenário parece ainda pior. Os ataques misóginos são normalmente de cunho sexual, direcionados a aparência, submissão e a falta de conhecimento sobre esportes. “É sempre uma luta a mais, como se a gente tivesse que provar que temos conhecimento por sermos mulheres. O conhecimento independe de gênero, depende de interesse, dedicação e ponto. Sempre é muito colocado em prova isso, temos que fazer um esforço a mais para sermos respeitadas, consideradas boas jornalistas”, destaca Ana Hissa, do SporTV.
Em uma indústria dominada por homens, os abusos e preconceitos vão muito além do mostrado pelas câmeras, vêm de todos os lados nos bastidores: nas redações, clubes e relações com profissionais do esporte. Em parte, o público apenas reage a falta de confiança que as jornalistas têm no seu próprio ambiente trabalho, sendo muitas vezes desacreditadas e estigmatizadas pelos próprios colegas de profissão. “As situações no estádio já são de conhecimento geral. Mas por mais que a gente não tenha que deixar de falar, de ser incansável nesse sentido, tem muitas situações que acontecem fora do estádio e no ambiente esportivo que a gente acaba não dando luz. E, no meu caso e de muitas, passa pelo assédio de pessoas que estão no comando de algumas redações” diz Bibiana Bolson, colunista do ESPNW. De acordo com algumas jornalistas entrevistadas, situações como a de ficar fora de uma cobertura jornalística por reagir de forma negativa a um assédio são recorrentes.
“Muitas coisas acontecem de forma sútil no dia a dia, tem coisas que a gente sabe que aconteceram simplesmente por ser mulher, porque as vezes há interesse nessa relação. As grandes redações têm a presença feminina, mas elas continuam sendo comandadas por homens. As grandes figuras das redações esportivas são homens. Em muitas situações, as mulheres não têm nem para onde correr dentro de uma redação”
Bibiana Bolson, ESPNW.
“Uma vez eu consegui uma entrevista com um grande jogador, importante, em um momento chave que ninguém esperava. Logo depois, ouvi de um colega: ‘Mas também é bonita, é mulher.’ Você tem que estar sempre provando sua capacidade para convencer as pessoas de que você está lá porque você tem potencial. Eu conheço meninas que desistiram da carreira no jornalismo esportivo porque foram assediadas por empresários, jogadores, se sentiam constrangidas e não gostavam da forma como eram tratadas na redação. Desde comentários sobre roupas à situações mais extremas”
Isabela Pagliari, do Esporte Interativo.
Bibiana e Isabela passaram por uma humilhação em 2016, enquanto faziam a cobertura da Eurocopa, na França. As jornalistas foram cercadas por um grupo de homens enquanto faziam uma gravação. “Mais de 20 homens vieram correndo na nossa direção, para tentar nos abraçar, tentar nos pegar. Não conseguimos terminar o trabalho, tivemos que sair correndo. Quando fomos relatar para um policial francês o que tinha acontecido, ele foi muito intolerante, nos acusou de estar mentindo” conta Bibiana.
As agressões nas redes sociais são as mais comuns e recorrentes: “Quando a gente expõe uma opinião sobre um determinado assunto, que não agrada os torcedores do time X ou Y, eles respondem “vai lavar uma louça” ou coisas até piores e mais ofensivas como “bom é quando a mulher servia só pra dar a xota pra gente”, diz Monique Danello, do canal Esporte Interativo. Para Ana Hissa, do SporTV, as ofensas são cada vez mais cruéis. Após conseguir uma importante entrevista exclusiva e ser ofendida por um internauta no twitter, ela ficou impressionada com a quantidade de curtidas que o comentário teve e com a reação dos colegas: “Depois de ver um comentário desses, muita gente vira para você e fala: relaxa isso é coisa de internet”, ou “você é zoada dentro de uma redação, dentro de um estádio. São tantas coisas que falam para gente relaxar, relevar, esquecer. Acho que esse movimento vem como um basta para isso tudo. Não é relaxa, esquece, não se importa.”.
A relação com clubes e profissionais do esporte também é complicada. A cada mensagem, uma preocupação em ser mal interpretada ou dar abertura para comentários inadequados e ao assédio. Não há muito tempo, um conhecido jogador mostrou uma foto sua nu no celular para uma jornalista.
“Se você sair pra jantar comigo, eu posso te dar mais detalhes sobre isso.”
Resposta de um empresário de jogadores para a jornalista Bibiana Bolson
“Durante a apresentação de um jogador, houve uma confusão na hora que ele subiu para o campo e um segurança do clube começou a empurrar a gente. A Cristina* estava grávida e ele estava nos empurrando para cima de uma grade. Eu reclamei falando que ela estava grávida. Ele respondeu: se ela está grávida, está fazendo o que aqui? A gente começou a discutir e ele ameaçou vir para cima de mim”
Monique Danello, do Esporte Interativo. (*nome fictício)
Monique Danello fala da importância do momento, “a atitude da Bruna, de compartilhar o vídeo e falar nas redes sociais foi muito importante. As vezes falta coragem, ficamos constrangidas de compartilhar vídeos como esses. São casos corriqueiros”. Bibiana completa, “muito importante mais do que mencionar casos, é esse desejo que a gente tem de refletir e não se sentir sem força, sem poder de mudança, que a gente consiga expor isso também. Nossa intenção é de fato debater outras ações, conversar com Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) para saber se algo pode ser implementado no código desportivo, de que maneira os clubes podem nos acolher, de que forma as queixas podem ser feitas. De que maneira a gente pode levar isso para frente, para que outras se sintam envolvidas e tenham vontade. Nossa intenção é converter isso em ações concretas, criar mecanismos, desenvolver o debate e também falar dessas situações de assedio que acontecem dentro da redação.”
A hashtag #DeixaElaTrabalhar ficou entre os trending topics do Twitter e foi compartilhada por diversos clubes, organizações de torcidas e profissionais da área. A campanha trouxe luz a situação e já vem tendo resultado, ao levar a discussão – urgente e essencial – para um público mais amplo. Agora, tão importante quanto, é saber quais medidas concretas serão tomadas por todas as partes envolvidas no processo. E o recado está dado: deixa ela trabalhar. Nenhum assédio será tolerado.