Mulher Peão: o que pensam os homens sobre as mulheres na construção civil | #AgoraÉQueSãoElas

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por Marina Sidrim Teixeira*

Nos meses de janeiro e fevereiro, nós, do instituto NOOS, conversamos com 800 trabalhadores da construção civil – homens –, numa pesquisa realizada em parceria com o SECONCI e financiada pelo Instituto Avon. A pesquisa tinha como foco investigar como esses homens percebem as relações e a violência de gênero, e como encaram a presença de mulheres como suas companheiras de trabalho, no espaço da construção civil. Vale dizer que a presença feminina, hoje restrita a 3% (de um universo de 37.494 trabalhadores), aumentou muito no Rio de Janeiro quando da realização das obras para os recentes megaeventos esportivos que aconteceram na cidade. 

A pesquisa faz parte de um projeto mais amplo, o “Equidade em Construção”, cujo objetivo é contribuir para o engajamento do setor da construção civil do Rio de Janeiro no combate à violência de gênero e doméstica contra a mulher. Para pautar as demais ações que compõem o projeto, buscamos entender mais detidamente o fenômeno da violência de gênero no contexto da construção civil, mapeando o perfil socioeconômico dos trabalhadores, suas atitudes e seu comportamento frente às mulheres, bem como sua opinião sobre a entrada das mulheres no setor.

Entre os muitos resultados reunidos no relatório da pesquisa, alguns pontos chamam a atenção em especial:  

  1. A grande defasagem entre o discurso e a prática dos entrevistados: embora muitos revelem uma certa consciência do que seria desejável em termos de uma maior equidade de gênero, a maioria mantém ainda posições comportamentais arraigadas ao modelo hegemônico de subordinação da mulher ao homem e à divisão sexual do trabalho.
  1. Os trabalhadores tendem a ter uma maior percepção da violência doméstica contra a mulher quando praticada por outros homens que não eles: perguntados diretamente se achavam já ter agredido uma parceira de alguma maneira, somente 26% responderam afirmativamente – uma cifra bem inferior aos 61% que afirmaram ter conhecimento de agressões praticadas por outros homens. Entre as agressões admitidas pelos próprios entrevistados, predominam as de ordem psicológica, seguidas pela física.
  1. De um modo geral, os trabalhadores demonstraram ter consciência das dificuldades de diversas naturezas na integração da mulher nos canteiros de obras – e se revelaram dispostos a enfrentar estas dificuldades.
  1. Tanto o conhecimento dos temas de gênero quanto as posições em relação ao assunto se mostraram bastante homogêneos na categoria – ou seja, os resultados obtidos para o conjunto dos trabalhadores da construção civil não tiveram grandes variações em função dos cargos ocupados e trabalhos exercidos pelos entrevistados.

Vamos aqui nos deter mais no primeiro desses pontos: a dissonância cognitiva – isto é, o descompasso entre a atitude e o comportamento dos trabalhadores –, observando mais de perto resultados da pesquisa que explicitam e detalham esse descompasso:

  • Ao expor a sua opinião sobre quem pode desempenhar algumas tarefas do cotidiano, tendo como alternativas “só mulher”, “só homem” e “homem e mulher”, os entrevistados escolheram predominantemente a terceira alternativa, para todas as atividades. Esse resultado poderia levar a crer que o caminho para uma relação com mais equidade já estivesse bastante avançado; contudo, a ordenação dos percentuais dentro das respostas “ambos” mostra que as escolhas, mesmo revelando surpreendente evolução, ainda são balizadas pelos papéis tradicionais atribuídos a homens e mulheres na nossa sociedade.
  • Essa cristalização dos papéis de gênero fica ainda mais evidenciada quando são analisadas quais tarefas são percebidas como somente realizáveis pelo homem ou pela mulher: caberiam somente a elas as tarefas domésticas e somente a eles, principalmente, os pequenos consertos em casa (54%), garantir o dinheiro necessário para o sustento da casa (31%) e ter a última palavra nas decisões importantes para a família (18%).
  • O nível de concordância dos trabalhadores com algumas máximas disseminadas pelo senso comum mostrou que as respostas privilegiaram a defesa da não interferência externa em brigas de marido e mulher (manutenção do assunto no nível do privado) e a legitimação da defesa da honra. Mais da metade concorda também que a lei Maria da Penha “interfere em situações que deveriam ser resolvidas unicamente pelos casais” – ainda que 79% avaliem que a lei “ajuda o homem a conter sua agressividade”.
  • A afirmação de que “existem momentos nos quais a mulher merece apanhar” obteve um expressivo grau de discordância:  94% dos trabalhadores discordaram da afirmativa – evidenciando que, no plano do discurso, este é um “valor” praticamente descartado. No entanto, quando questionados sobre “em quais situações você acha justificável um homem agredir fisicamente uma mulher”, esses mesmos trabalhadores assim se posicionaram: 41% disseram que quando ela trai; 22% quando ela se comporta ou se veste de forma provocativa; 15% quando ela não cuida bem dos filhos; 13% quando ela bebe ou tem outros vícios; 4% quando ela dispara a falar e não o escuta; 3% quando ela não cumpre suas tarefas domésticas; 2% quando ela não quer transar quando ele quer. Essa contradição, já expressa em outras pesquisas, mostra que na prática o recurso à agressão física ainda figura no repertório do homem – mesmo quando ele racionalmente já sabe que essa atitude não é “politicamente correta”. O fato de a traição feminina ser a maior causa de agressão justificável também evidencia a permanência do sentimento de posse sobre a mulher.
  • Em resposta livre, aqueles que assinalaram a alternativa “outros motivos pelos quais achavam justificável agredir fisicamente a parceira” mencionaram tanto razões relativizantes (do tipo “depende da situação”) como, principalmente, o revide a situações nas quais a mulher agrediu primeiro e o homem teve que agir “em legítima defesa” – respostas que, em última instância, responsabilizam a mulher por deflagrar a violência ou, no mínimo, dão conta de que as agressões devem ser entendidas na relação.
  • A grande maioria dos trabalhadores tem uma visão positiva da mulher em funções operacionais da construção civil e usa preferencialmente a palavra “guerreira” para expressar sua admiração por ela. Pensam que a mulher deve ter salário e tipo de contrato iguais aos dos homens e, em menores proporções, acham que deveriam ter uma jornada de trabalho também igual. Contudo, como outras pesquisas já haviam registrado, preferem que essa mulher não seja a sua mulher.
  • Os que têm uma visão negativa, ou são explicitamente contra o ingresso da mulher no setor, apoiam-se em razões bem “tradicionais” para justificar sua posição: condições físicas diferenciadas, falta de habilidade para as funções, necessidade de longos afastamentos por causa da gravidez e a defesa da mulher restrita ao desempenho de funções de mãe e dona de casa. Alegam também que seriam necessárias muitas modificações nos canteiros para receber as mulheres trabalhadoras.
  • Esse ponto – a necessidade de adaptações no espaço de trabalho – tem a concordância da maior parte dos trabalhadores, que até mesmo fizeram uma longa lista de modificações que julgam necessárias, visando principalmente a criação de espaços próprios para elas – o que denota não apenas cuidado e atenção para com as mulheres, mas também o desejo de garantir a permanência de um espaço para o convívio exclusivamente masculino ao qual estão habituados.  
  • Em resposta livre, os trabalhadores mencionam também uma extensa quantidade de mudanças comportamentais que precisariam operar em si mesmos para que a inserção feminina possa ter êxito, sendo as principais: mudanças no comportamento geral, com mais respeito (30%); redução do machismo (19%); mudança de linguagem e do tipo de conversa (11%); mais educação, treinamento e qualificação (6%) e redução de preconceitos em geral (3%).

Longe de pintar um cenário desanimador, as contradições identificadas pela pesquisa parecem indicar uma tendência positiva: os trabalhadores têm a consciência de que serão necessárias muitas mudanças no canteiro e em si mesmos para a entrada das mulheres no setor – e se mostram dispostos a aceitar esse desafio. Entre aqueles que declararam que as mulheres podem entrar na construção civil, somente 7% disseram não querer trabalhar ao lado de uma mulher. Paralelamente, 86% manifestaram desejo de participar de palestras sobre o assunto, para se sentirem mais seguros e poderem lidar melhor com as trabalhadoras mulheres no canteiro de obras.

Embora ainda possa ser vista como incipiente, uma mudança positiva está em curso na relação pessoal e profissional entre homens e mulheres – mesmo quando se tem como foco um setor tradicionalmente masculino do mercado de trabalho, cujas funções operacionais são exercidas predominantemente por homens com baixo nível educacional e pertencentes a setores sociais menos favorecidos social e economicamente. Nas palavras de um trabalhador:

“Fico feliz de ver uma mulher guerreira. O mercado está aberto pra elas e fico feliz e orgulhoso. Não só o homem pode crescer. Tem homem que limita a mulher e elas têm capacidade para ser uma pedreira… uma profissional. As mulheres estão muito presas dentro de casa” – reação de um soldador, carioca, preto, evangélico, de 33 anos, com primeiro grau incompleto, à foto de mulheres pedreiras mostrada a ele durante a pesquisa.  


Marina Sidrim Teixeira, paraense de 69 anos, é socióloga e mestre em filosofia da educação, pesquisadora e consultora de metodologia de pesquisa. Tecnologista sênior em informação geográfica e estatística aposentada do IBGE, é coordenadora de pesquisa do Instituto Noos e diretora do Instituto Fatos de Consultoria e Pesquisa. Os dados aqui apresentados integram seu relatório da pesquisa “MAPEAMENTO DAS PERCEPÇÕES SOBRE GÊNERO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO ENTRE TRABALHADORES DO NÍVEL OPERACIONAL DA CONSTRUÇÃO CIVIL”, realizada no Rio de Janeiro em janeiro e fevereiro de 2017.