Leandra Leal: O Portal da Utopia
Eu sou uma apaixonada por carnaval e não sei falar sobre isso sem amor. Eu costumo dizer que o melhor carnaval é sempre o seu. Não se deve comparar celebração. No meu caso é o da minha infância, do centro do Rio de Janeiro, de Paquetá, dos blocos tradicionais, das escolas de samba, do terreirão…
“Quanto pior o mundo, melhor o carnaval”, me disse a minha sócia Carol Benjamin antes do carnaval de 2016. O medo do futuro era palpável. A crise política, social, econômica e ética era devastadora. A cidade do Rio de Janeiro estava toda em obras e os blocos tradicionais foram realocados em trajetos sem estrutura e prestígio. Achávamos que já estávamos no fundo poço, no auge do caos. Nossa resposta? Sair na rua e celebrar a vida.
Só que no Brasil, o fundo do poço foi redefinido várias vezes ao longo desse período. E no ano seguinte, em pleno carnaval de 2017, a resistência se fez vista no maior “Fora Temer” transmitido em pleno Jornal Nacional. Carnaval é celebração, assim como o aniversário. É um momento de exaltação da existência, só que não é pessoal – e sim da nossa identidade como nação.
Reagimos aos retrocessos com purpurina – se engana quem acredita que a reação com folia é menor. Não se trata de alienação, pelo contrário: é resistência, é construção. É luta sair vestida do seu sonho, da sua fantasia, do seu querer. É batalha expor seu corpo e sua verdade. O transe carnavalesco nos embute de coragem e nos arma contra a caretice, a repressão, o conservadorismo. E é lindo entender que alguém que pensa muito diferente de você goza desse mesmo direito e isso não te agride. A rua por onde passa um bloco, abriga as maiores rivalidades que seriam impossíveis de se conviver numa timeline. Esse é o portal que precisamos cruzar e gozar todo ano para reencontrarmos nossas utopias.
No passado, existia a certeza que nossos filhos viveriam num mundo melhor que o nosso e se trabalhava para isso. Era um consenso, um desejo e um objetivo de todos. Hoje o mundo está tão confuso que temos a certeza do contrário – o que verá são perdas de direitos, desigualdades, destruição do nosso planeta. É comum nos pegarmos fazendo planos de como nos salvar e levar os próximos. Vamos nos contentar com isso? Estamos trocando a utopia pela distopia.
Mas a cada carnaval, temos novamente a oportunidade de romper o condomínio e a bolha do facebook e atravessar o portal da utopia. Retomar a ideia de um mundo igualitário, a favor da liberdade, do amor, do encontro, da arte, da celebração, contra o proibicionismo, a caretice, o machismo, a homofobia, a violência. Nesse momento em que estamos perdendo direitos essenciais em mudanças orquestradas por um governo sem legitimidade, que temos nossas folias controladas Crivellas e Dorias precisamos sair às ruas e gritar: o carnaval é nosso, o sonho é nosso!
Esse carnaval também pode ser o da afirmação das pautas que estão latentes na sociedade, parte da construção desse novo normal, como diz a Antonia Pellegrino, da mulher sair com o seu corpo de biquíni na rua e não ser importunada, de duas pessoas do mesmo sexo caminharem livres de mão dadas, da mistura de classes. Todos livres na mesma rua por onde o seu bloco passar.
No dia 10 de fevereiro de 2018, precisamos usar a abertura desse portal da utopia para lembrar quem nós somos e o que queremos.
* Leandra Leal é atriz