“Um mandato coletivo como estratégia de resistência” por Áurea Carolina e Cida Falabella | Especial Violência contra Mulheres na Política
por Áurea Carolina e Cida Falabella*
A Praça da Estação é símbolo e território de experiências político-culturais que transformaram Belo Horizonte. Foi em seu cimento e entorno que participamos da criação da Praia da Estação, uma performance-festa que reivindicava a ocupação democrática do espaço público. Foi desde a Praça da Estação que chegamos ou partimos com as marchas do Movimento Fora Lacerda, uma ampla rede de resistência contra a gestão higienista do antigo prefeito. Foi lá que iniciamos e intensificamos a caminhada lado a lado com as comunidades, o que aproximou todas nós da luta pelo direito à moradia e nos engajou na resistência das ocupações de Izidora, o maior conflito fundiário urbano da América Latina. Da Praça da Estação, BH escutou o grito profundo contra o golpe e, mais recentemente, a exigência por “Diretas Já!”.
No dia 2 de outubro de 2016, portanto, era ali que estávamos, aguardando, em frente à sede de nosso partido, o PSOL, o resultado da primeira eleição disputada pela movimentação Muitas pela Cidade que Queremos.
As Muitas surgiram em 2014 – na esteira de movimentos e lutas que convergem na busca por uma cidade mais justa –, inspirada em movimentos municipalistas, em experiências latino-americanas e, entenderíamos depois, em modos de organização de algumas comunidades tradicionais brasileiras. Com a proposta de ocupar as eleições com cidadania e ousadia, integrantes de movimentos, coletivos, partidos e ativistas independentes reuniram-se em torno de uma construção coletiva, horizontal e colaborativa, em sintonia com as lutas da cidade. As praças, os parques, os viadutos e as ocupas foram, novamente, os territórios onde compartilhamos projetos e utopias.
Aos poucos, nossos princípios foram sendo delineados: uma política de amor, feminista e antirracista, a confluência máxima entre forças do campo progressista, a diversidade, a representatividade, a transparência, a busca pelo bem comum e pela radicalização da democracia, a desconstrução de privilégios de toda ordem.
Como resultado de um ano e meio de movimentação e da aliança com o Partido Socialismo e Liberdade, via Frente de Esquerda BH Socialista (que reúne o PSOL, o PCB – Partido Comunista Brasileiro, as Brigadas Populares e o MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas), as Muitas apresentaram à cidade 12 candidatas que representavam, com seus corpos políticos, as lutas que nos atravessam. As mulheres, as pessoas negras, os povos indígenas, as pessoas LGBTIQs, a luta pelo direito à cidade, pelos animais e verdes, antiprisional e pela legalização das drogas, as juventudes e o povo da cultura encontravam-se em Áurea Carolina, Avelin Buniacá Kambiwá, Bella Gonçalves, Cida Falabella, Cristal Lopez, Dário de Moura, Dú Pente, Ed Marte, Fred Buriti, Marimar, Nana Oliveira e Polly do Amaral.
É importante marcar que a relação com o partido não foi de conveniência, como tentam apregoar para nos colocarem no indistinto balaio do antipartidarismo, mas uma aliança política coerente, estratégica, sincera, em prol da cidade e fruto de uma construção real.
Em uma eleição marcada pelo perigoso discurso de rejeição à política, fizemos – com pouquíssimos recursos financeiros, muita força de trabalho voluntária e engajamento de pessoas que acreditavam na proposta –, uma campanha coletiva com o lema “votou em uma, votou em todas” e reencantamos a política em BH. Às vésperas das eleições, éramos centenas de pessoas nas ruas e nas redes conquistando voto a voto e acreditando que outra política é possível, um sentimento que slogans de marketeiros políticos jamais conseguirão alcançar.
Nossa campanha coletiva conquistava as duas vagas que hoje ocupamos na Câmara Municipal e fazia a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte [Áurea Carolina, com 17.420 votos]. Ao todo, as Muitas/PSOL conquistaram 35.615 votos, dentro dos 47.937 alcançados por toda a Frente de Esquerda BH Socialista. Enfim, éramos mesmo muitas!
Para colocar em prática essa nova forma de ocupação institucional, iniciamos um processo de planejamento do futuro mandato que envolveu a população para proposição de ideias. Ao mesmo tempo, debatíamos a composição do mandato que, desde sempre, entendemos que seria um só, compartilhado, com uma equipe comum, trabalhando em conjunto, em um espaço físico sem divisórias. Nascia, assim, a Gabinetona. Na equipe, pessoas que caminharam conosco nas lutas ao longo da vida – entre elas, sete das candidatas de nossa campanha coletiva e ativistas da Frente de Esquerda BH Socialista. Em abril, abrimos um processo de chamada pública para o preenchimento de oito vagas remanescentes, com o objetivo de democratizar o acesso à composição (ao todo, recebemos 4.113 inscrições). O mosaico de corpos e de lutas que atualmente forma a Gabinetona é construído por 41 pessoas, sendo 24 negras, 25 mulheres, uma indígena, 15 LGBTIQs e quatro moradoras de ocupações urbanas.
Outra experiência inédita no País é a covereança com Bella Gonçalves, ativista do direito à cidade e da luta pela moradia, a terceira mais votada de nossa campanha coletiva. Trata-se de um contraponto à forma hegemônica e masculina de entender a política como competição e, novamente, uma aposta na colaboração e na confluência entre as lutas. A covereança é, portanto, a junção potente de cultura e territórios, ocupação e teatro, ação direta e carnaval de rua, encontros que marcam a resistência popular em Belo Horizonte.
Nesses doze meses, aprimoramos e colocamos em prática ideias surgidas nas imersões com a cidade que visam estabelecer canais diretos de participação e acompanhamento por meio de mobilização social, educação popular, formação política e comunicação. Fizemos um Chá de Gabinetona Nova e convocamos a cidade para ocupar o plenário principal da Câmara Municipal. Realizamos as Zonas Megafônicas, debates políticos e ações culturais para megafonizar as lutas. Inventamos os LabPops, oficinas temáticas para qualificar nossa atuação parlamentar tanto na incidência sobre projetos de lei em tramitação quanto na proposição de novos projetos. Criamos os Grupos Fortalecedores, que chamamos carinhosamente de GFortes, espaços temáticos de incidência direta sobre o mandato.
Estreamos um projeto de Teatro Legislativo com AzDiferentonas!, que mobilizou as pessoas a pensarem em soluções reais para temas complexos, como as abordagens policiais violentas. Prestamos contas em praça pública durante o Balanço do Mandato e ouvimos críticas e sugestões sobre a nossa atuação. Homenageamos mais de 50 negras e negros por sua contribuição no enfrentamento ao racismo durante o Dia da Consciência Negra, em um encontro energizante na Câmara Municipal.
Agora, estamos realizando estudos jurídicos e formulando critérios para colocar em prática um sonho que começamos a construir em imersões realizadas com a cidade no ano passado: a criação de mecanismos de reconhecimento de iniciativas socioculturais em Belo Horizonte com recursos angariados com a reserva de parte de nossos salários.
No Dia da Consciência Negra apresentamos nossos três primeiros projetos de lei, construídos de forma coletiva, aberta e em diálogo com a cidade, com participação e colaboração direta de comunidades tradicionais, quilombos, terreiros e integrantes dos movimentos negros e indígenas. Não tivemos pressa em fazê-los. Defendemos que as leis não podem ser elaboradas em gabinetes fechados, virar produtos de percepções particulares e personalistas ou servir para rankings de produtividade, uma prática comum na nossa sociedade machista e que reverbera na política de forma cruel.
Temos investido também nas ações de transparência, um dos compromissos firmados em campanha. Mensalmente, publicamos em nossas redes sociais como votamos nos principais projetos debatidos em plenário, bem como as justificativas para nossas posições. Compartilhamos mensalmente também nossas circulações pelos territórios em um mapa online.
Toda a inventividade que a movimentação e a Gabinetona trazem à política de Belo Horizonte tem sido um acontecimento ético e estético, como foi nossa chegada à Câmara.
Somos estranhas nesse meio machista, racista, LGBTfóbico e excludente. Já fomos agredidas por alguns dos nossos colegas e somos frequentemente desconsideradas, porque a política tradicional não é feita para conviver com a diversidade e reluta ao ter sua hegemonia desafiada. Mas resistimos firmes.
Apesar de tudo, colaboramos diretamente para grandes vitórias, como a recriação da Secretaria Municipal de Cultura, os avanços nas negociações das ocupações de Izidora com o Executivo, a articulação para impedir o monopólio da AMBEV no carnaval de BH, a extensão do horário do metrô para testes de viabilidade e o arquivamento de projetos nocivos da gestão do ex-prefeito Marcio Lacerda (PSB).
Os desafios nesses tempos de trevas são imensos, mas estamos decididamente empenhadas em fazer um mandato aberto, coletivo e popular e, a partir dele, contribuir com o processo de enfrentamento ao golpe. Ousamos transformar o sentido da política com a experimentação de práticas a serviço das lutas por justiça e democracia. O amor vencerá!
Somos Muitas.
*Áurea Carolina e Cida Falabella são vereadoras em Belo Horizonte, eleitas pelo PSOL e o Movimento Muitas pela Cidade que Queremos.