A emenda Cunha na PEC 181: a volta dos que não foram
Por Jolúzia Batista*
O Movimento Feminista Brasileiro tem denunciado que está em curso no Brasil uma ofensiva conservadora fundamentalista antidireitos das mulheres e o legislativo federal é o seu lócus central. Um contra-ataque – backlash – que se traduz também na defesa e expansão dos interesses econômicos das doutrinas religiosas hegemônicas na política. Essa estratégia une os setores tradicionais da elite econômica: as oligarquias, o agronegócio, banqueiros, os detentores das grandes fortunas brasileiras com os conservadores cristãos, com predomínio da doutrina neopentecostal, que trabalham nas diferentes frentes para aprimorar sua influência sobre o poder público.
A ofensiva conservadora expande seu ideário para diversos setores da sociedade, operando para a preservação dos seus interesses e valores basilares estabelecidos na família heteronormativa e na manutenção dos privilégios de classe. Ela se expressa na incidência direta no legislativo e no judiciário, atacando o ordenamento da conduta social e moral temas relativa às relações de gênero, à saúde e à educação. No aspecto financeiro, ampliam seu poderio econômico principalmente nas comunicações, na segurança pública, via indústria de armamentos e na conquista de isenção de impostos para expandir suas propriedades.
E do ponto de vista da captura massiva destes valores tradicionais e conservadores, o projeto de ampliação do poder religioso está cada vez mais enraizado. A teologia da prosperidade tem sido a liga essencial para a sociedade brasileira capturar o sentido de em “defesa da vida”, e é a partir dela que percebemos a aceitação dessa concepção moral conservadora que combate cotidianamente, no comportamento e na prática política, direitos individuais já conquistados.
O rito de tramitação da Proposta de Emenda Constitucional 181/2015 (antiga PEC 58/2011) mostra exatamente como essas forças antidireitos atuam no Congresso Nacional. Paralisada na Câmara Federal desde março de 2013, sua proposta original era para estender a licença maternidade em caso de nascimento de bebê prematuro, o que seria um avanço nos direitos das mulheres. Contudo, em resposta ao voto do ministro Barroso no Supremo Tribunal Federal, em novembro de 2016, que pedia a revogação de prisão de cinco pessoas detidas em operação na polícia do Rio de Janeiro em uma clínica clandestina em Caxias, parlamentares fundamentalistas pleitearam a instalação de uma Comissão Especial junto ao presidente da casa, Rodrigo Maia.
Ao ocupar a Comissão e descaracterizar a ementa original do projeto, esses parlamentares tentam inserir, a qualquer custo, o que chamamos de Emenda Cunha – sim, de Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados.
Emenda Cunha! Preso por corrupção e lavagem de dinheiro, autor de projetos como o PL 5069, que criminalizava o acesso à pílula do dia seguinte e a PEC 164/2012, que propõe direitos jurídicos à vida seja considerada desde a concepção, Eduardo Cunha é a imagem escancarada dessa ofensiva conservadora. Fiel da rede Sara Nossa Terra, seu discurso em defesa vida e dos valores da família é alinhado à sua potência corruptiva, que emprega em discursos hipócritas princípios de sociedade fundamentalistas.
A oportunidade vista na Comissão Especial da PEC 58/2011 pelos fundamentalistas atraiu para a sua composição os grandes representantes das bancadas cristãs, profundamente identificados com movimentos religiosos conservadores. Força e poder diante de uma grande comunidade eleitoral confiante em seus preceitos de fé, e talvez pouco atentas ou incrédulas ao interesses financeiros de seus dirigentes. Vejamos, o presidente da comissão, deputado Evandro Gussi (PV/SP), constitucionalista católico, tem expressão sofisticada e afirma que as mulheres não podem ter direitos sexuais e reprodutivos, ele considera o embrião transcendente à vida das mulheres, e por esse motivo é contra o direito reprodutivo e planejamento familiar.
A direção da Comissão conta ainda, por exemplo, com o deputado Flavinho, (PSB/SP) missionário no movimento Canção Nova e integrante de um dos principais braços da renovação carismática. Em 2016, causou revolta entre fiéis católicas ao fazer um pronunciamento contrário à criação da Comissão de defesa dos direitos da mulher, na Câmara Federal, declarando que mulheres de verdade não queriam ser empoderadas e o que as deputadas reivindicavam na instalação da comissão, não representavam as brasileiras, que ao contrário delas, querem ser amadas e o direito de serem mães. Esta declaração pode ser conferida neste link.
Em uma democracia constituída em um Estado declarado laico, não deveria ter peso o pertencimento ou não a denominações religiosas, e essas pouco importariam como parâmetros para analisar as orientações programáticas que constituem os mandatos parlamentares. No entanto, em nosso atual contexto, ao contrário, elas traduzem o campo temático legislativo e os interesses financeiros correlatos que estão para além das telecomunicações, e se aprofundam na educação, em planos privados de previdência e saúde, e clínicas de “reorientação” sexual.
Neste cenário de aliança da lógica fundamentalista com o projeto neoliberal, as brasileiras têm diante de si um horizonte nefasto de projetos de lei e emendas constitucionais em pauta no Congresso Nacional, que ameaçam a autonomia das mulheres e a possibilidade da autodeterminação reprodutiva. Um verdadeiro backlash que tenta impor coercitivamente ao conjunto da população feminina, as cristãs e não cristãs, seus preceitos morais e dogmas religiosos, travestidos em leis mais duras e severas contra a liberdade e a autonomia das mulheres.
Neste mês de outubro prossegue a peleja na Comissão Especial que debate a PEC 181/2015 que caso seja aprovada, segue para o Plenário da Câmara onde deverá ser votada em dois turnos. Caso não haja alteração no texto vindo do Senado, a PEC é promulgada como emenda ao texto Constitucional. Mas como a estratégia foi colocar o jabuti na PEC vinda do Senado, mesmo aprovada, ainda temos um fôlego de tentar reverter esta proposta espúria e desonesta junto aos Senadores.
Mas é importante lembrar que anular a sentença de morte embutida na PEC 181/2015 é apenas uma das batalhas. Temos ainda quatro propostas legislativas de alta periculosidade e retrocesso em tramitação aguardando o momento da cartada fundamentalista antidireitos: PEC 164/2012 da Câmara dos Deputados e a PEC 29/2015 do Senado, que tem o mesmo teor, a proposta de alteração do artigo 5º da Constituição Federal para estabelecer a “inviolabilidade do direito a vida desde a concepção”; PL 478/2007, conhecido como ‘Estatuto do Nascituro”; PL 5069/2013 amplia a tipificação do crime de aborto e retrocede a lei sobre atendimento as vítimas de violência sexual.
Neste Brasil de 2017 a resistência das mulheres nas ruas e no legislativo é para conter a tentativa de retirada de direitos já conquistados.
*Jolúzia Batista é assessora técnica do CFEMEA.