Cinema é sobrevivência
Por Glenda Nicácio*
O que é ser uma realizadora negra no cinema independente e contemporâneo hoje?
Prefiro começar assim, com perguntas, porque afinal é sobre isso que eu mesma venho tentando refletir. É justamente o que venho sendo nos últimos anos: uma realizadora negra no Recôncavo da Bahia. Digo “venho sendo” porque compreendo que o cinema que aprendi a fazer é pautado sobretudo por ser, torna-se. E é pouco possível isolar este ofício de questões que envolvam sim o lugar da fala, amalgamando arte, invenção, política e resistência – afinal, dá pra fazer cinema sem considerar a história de um país?
Acontece que agora a história do país parece estar apontando também para outros caminhos. Existe um deslocamento que vem se fortalecendo no interior dos estados do Brasil, sobretudo nas regiões fora do eixo, para as quais foram desenvolvidas políticas públicas de integração e fomento à produção audiovisual. Estou falando dessas e de outras tantas zonas periféricas que, não de repente e não por acaso, estão articuladas criando novos modos de produção e narrativas plurais tecidas por quem sempre esteve à margem.
O que me importa dizer nesse contexto é que quem está à margem sempre existiu, formando um corpo denso de narrativas esquecidas, saqueadas, aniquiladas (por quem?) – na história de um cinema. Essa história que fala de, mas que poucas vezes falou para mim e para os meus.
Quando a margem começa a ter o poder de cravar na tela a sua imagem, há um redirecionamento de olhar, e eu me sinto como se estivesse vendo algumas imagens pela primeira vez. Já estou aqui falando de um lugar de espectadora agora porque ser realizadora negra pra mim também é isso. É pensar num cinema que parte do outro, que se potencializa nas brechas que foram deixadas.
Me parece que, sendo mulher negra, fazer cinema começa antes – e eu não consigo esquecer minha vó, que, mesmo quando eu nem sabia que eu era negra, ela já me ensinava a ser negra. E ainda ensina: fazer cinema tem a ver com isso também, aprender a generosidade da troca, de dizer “vem por aqui”. Não é isso que os filmes fazem com a gente o tempo todo? E fazer cinema é tanta coisa… é um mundo todo, todo dia carne, osso e sonho. Porque cinema é feito de gente e não dá pra inverter a ordem das coisas. Então preciso falar de vivências sim, porque eu ainda não consigo entender como a Val, em trinta anos de carreira, foi premiada como melhor atriz pela primeira vez apenas agora. Para os incautos, Valdinéia Soriano, do Bando de Teatro Olodum, protagoniza “Café com Canela” e venceu na categoria melhor atriz o Festival de Brasília na semana passada.
Esses dias, eu ouvi a Val falando “vocês não sabem o que é ser uma atriz negra” e senti uma dor. Não sei o que é ter iniciado uma trajetória de atriz baiana há trinta anos, hoje já parece ser tão difícil. Por isso, não dá para esquecer as vivências, porque elas já foram demasiadamente caladas.
Eu, hoje, não me esqueço que cinema é sobrevivência. E nesse sentido, é urgente seguir, e buscar a imagem que permita o desvelamento de vidas que extrapolam o que o próprio cinema previu.
*Glenda Nicácio é realizadora. Dirigiu com Ary Rosa o longa-metragem “Café com Canela”, vencedor de inúmeros prêmios na última edição do importantíssimo Festival de Brasília: o Prêmio do Júri Popular, o Prêmio de Melhor Atriz para Valdinéia Soriano e o prêmio de Melhor Roteiro para Ary Rosa.