Pendular: uma protagonista que deseja é, afinal, uma escolha política
Por Julia Murat*
Em 2011, estava lançando meu primeiro filme de ficção, “Histórias que só existem quando lembradas”. No circuito de festivais, me perguntavam incessantemente qual seria o filme que eu faria em seguida. Nesse circuito de cinema, a expectativa do segundo filme é uma constante, torna-se naturalmente uma pressão. Tentando dar conta dela, comecei a pensar no próximo desafio. Ao mesmo tempo, começava a namorar com Matias, que virou meu marido e pai das minhas filhas. Tão natural como a pressão do segundo filme era eu estar, naquele momento, pensando incessantemente nessa nova relação amorosa. Era minha primeira relação séria depois dos 30 anos. O Matias tinha terminado há pouco um casamento, eu já havia namorado por mais de 10 anos. Não éramos duas pessoas aprendendo tudo juntos do zero. Tínhamos ambos passados com os quais tínhamos que lidar até encontrar um espaço nosso.
Eu resolvi, então, escrever um filme sobre uma relação amororsa entre dois artistas, ela, bailarina, ele, escultor. E mais que tudo: resolvi chamar o Matias para escrever comigo. Nos descobrimos neste processo, fomos aprofundando nossa relação e o filme.
Logo entendemos que o filme “Pendular” era sobre disputa de espaço (o físico e o metafórico): assunto tão recorrente em qualquer relação e que no filme está simbolizado por uma fita laranja que marca o chão. Nos esforçamos, ao longo dos quatro anos de escritura do roteiro, para criar os personagens mais profundos que fomos capazes de criar. Naquele momento, não pensávamos em gênero (ou ao menos não tínhamos consciência de que estávamos tratando de questões de gênero). Trabalhamos ambos os personagens buscando criar pessoas lidando com seus desejos, medos, inseguranças: o desejo de ter filho de um; a ausência desse desejo de outra; a busca pela construção da confiança; o medo da entrega que essa confiança requer. Trabalhamos ambos os personagens sem pensar que eram um homem e uma mulher. Eu por vezes me identificava com ele, o Matias muitas vezes se identificava com ela. E assim escrevemos, acreditando que estávamos trabalhando questões da vida de dois artistas.
Agora colocamos o filme no mundo. E percebemos que, se o tema da desigualdade de gênero não era parte consciente do nosso processo de escrita, ele está muito presente para aqueles que assistem ao filme. Desde que estreamos o filme em Berlim, constantemente nos perguntam sobre o que queremos dizer com a protagonista mulher, se a decisão da personagem mulher de não querer ter filhos revela uma decisão política, se a disputa de espaço simbolizada pela linha tem o intuito de falar que homem oprime ao demandar ocupar mais espaço.
Aprendi com quem já assistiu o filme que a escolha de construir uma personagem mulher que está preocupada com o seu trabalho, com a sua carreira, com seu espaço – e também com a sua relação e seus afetos – é sim uma escolha política. Foi então que descobri que apenas 17% dos diretores de cinema no Brasil são mulheres, segundo dados da Ancine. “Pendular” é resultado de uma produção majoritariamente feminina: Matias é um dos poucos homens da equipe principal. Além dele, tínhamos homens na equipe de som (na filmagem e na pós produção). A produtora, a diretora de produção, a fotógrafa, a diretora de arte, a figurinista, a assistente de direção, a coreógrafa, as duas escultoras, as duas editoras. Todas eram mulheres. E essa escolha não foi uma opção conscientemente politica, foi o resultado de um processo natural: escolhemos aqueles e aquelas com quem nos identificávamos.
Ao longo desse processo, e agora ao mostrá-lo, descobri que, ao termos mulheres na equipe, naturalmente a personagem feminina ganhou importância e mais complexidade. Descobri que o gênero estava colocado em todas as relações – as construídas durante a feitura do filme e as que construímos ficcionalmente, dentro do filme – e que a nossa escolha de tratar uma personagem feminina com a maior complexidade que éramos capazes de desenvolver era enfim uma escolha política – e feminista.
PS: Enquanto escrevia esse texto, soube que “Pendular” havia ganho censura de 18 anos por conter cenas de sexo. Segundo o manual de classificação indicativa da Secretaria Nacional de Justiça, é adequado para 16 anos “conteúdos mais violentos ou com conteúdo sexual mais intenso, com cenas de tortura, suicídio, estupro ou nudez total”. Em suma, segundo a lei, um adolescente pode assistir, inclusive, cenas de estupro. No entanto, segundo os que hoje aplicam a lei, esse mesmo adolescente não pode assistir uma cena de amor consensual entre um homem e uma mulher em que os dois desejem estar ali. Por vontade própria. Pelo desejo compartilhado.
*Júlia Murat é diretora de cinema, dirigiu “Dia dos Pais” (2008), “Histórias que só existem quando lembradas” e lança hoje “Pendular”, eleito pelo júri da Fipresci (Federação International de Críticos) como o melhor filme da Panorama, a principal seção paralela do Festival de Berlin.