A palavra é minha arma

#AgoraÉQueSãoElas

Por Clara Averbuck*

Foram noticiados alguns casos de violência contra a mulher na semana passada. Friso “noticiados” porque casos assim ocorrem todos os dias, a toda hora, e os números são assustadores. Não foi uma semana atípica. Esses casos são constantes. E o que mais vimos foi a sede de vingança, de dar o troco. “Castra! Estupra! Mata!”

Não precisamos de castração para estupradores. Isso é coisa de sádico que ainda tem a coragem de argumentar que o desejo diminui após o procedimento, como se estupro tivesse a ver com desejo, e não com poder e dominação. Isso é coisa de sádico que prefere mais violência em vez de educar e ressocializar um agressor, o que é possível em muitos dos casos, como prova, por exemplo, o trabalho da Promotora de Justiça Gabriela Manssur. O discurso da castração é coisa de sádico que considera mais coerente seguir e aumentar o ciclo de violência em vez de rever o que causa tamanha violência de gênero. Cabe dizer que alguns são doentes mesmo, outros são monstros mesmo, mas agir como eles apenas demonstra a barbárie desse tipo de pensamento. Eu não quero que ninguém passe o que nós, mulheres, passamos. Quero que o cerne do problema seja tocado.

E o cerne é a construção da masculinidade, calcada em violência, dominação e execração do feminino. A punição que tantos conclamam não seria necessária se os homens não fossem criados da maneira que são. Dizer que o agressor sexual vai virar “mulherzinha” na cadeia, como tantos comemoram, apenas comprova meu ponto. É um problema cultural. É “prende suas cabras que meu bode está solto.” É a exaltação do garanhão que coleciona mulheres como carros. É tanta coisa errada. Mas não se ofenda, homem; não falo aqui do indívíduo, você não precisa levar a mão ao peito e dizer que nem todo homem, que você nunca, que, ora, jamais, que até foi criado pela mãe. Nós sabemos que nem todo homem, mas também sabemos que todo homem, sim, comete machismos cotidianos que passam despercebidos por serem a norma. O machismo é o normal. O que muitos dos homens e mulheres entendem como machismo é apenas o extremo, mas as atitudes diárias também contribuem para a normalização de comportamentos violentos.

Violência não é “coisa de menino”. Violência é coisa de quem aprendeu que é assim que se impõe. Não é. Isso precisa ser discutido, mudado, repensado, reestruturado. Não adianta nada falar em endurecer punições, mudar leis e abrir mares, se a estrutura e o sistema, pensado por homens brancos e para homens brancos, não mudarem. Nós vamos, sim, seguir fazendo pressão, mas vocês precisam repensar essa mudança antes que tudo piore e, descrentes da lei e do sistema, as mulheres passem a revidar também com violência. Com mais violência. Não é este o mundo em que queremos viver. É? Se é a barbárie total que buscam, estão no caminho certo. Não é este o mundo em que eu desejo viver, morrer e deixar para quem ficar.

O que eu mais ouvi foi: por que, em vez de ir para a delegacia, você foi para as redes?

Porque eu conheço ambas: a Delegacia da Mulher e as redes sociais. Na delegacia, eu teria que esperar, fragilizada, teria que explicar a violência e o constrangimento, reviver e recontar a situação mil vezes, talvez e muito provavelmente a escrivã estaria de má vontade, eu teria que entrar com algum recurso para que me liberassem os dados do agressor por causa do Marco Civil (o que está corretíssimo, pois, assim como protege os dados dele, o Marco protege os meus e os seus), encontrar o sujeito mais algumas vezes — e seria a palavra dele contra a minha. Quais as chances? Eu não estava com forças para aquilo. Já estive na Delegacia da Mulher várias vezes para acompanhar mulheres agredidas. Já relatei, em reportagem para o site de uma revista, o que se passa lá. Isso faz dois anos. Não melhorou, não mudou. Não há estrutura, não há pessoal, é tudo precário e sucateado. Vá a uma e depois converse comigo sobre esse mundo rosa de conto de fadas que imaginam ser uma Delegacia da Mulher. Não desencorajo as denúncias, mas fazer a crítica ao sistema é inevitável. Este serviço é vital, mas, do jeito que está, não funciona, acaba por ser uma segunda violência e precisa melhorar.

As redes sociais, eu também conheço bem. Comecei a publicar na internet em 1998, antes de sequer existirem, e os blogs tiveram papel central para a publicação do meu primeiro livro. Imaginei que, fazendo um post, ainda com o rosto inchado e deitada na cama, me ajudaria não só a me livrar da vergonha que não deveria estar me acometendo (“Por que eu fui beber?!”, como se isso fosse o crime), mas também ajudaria outras mulheres na mesma situação de violência e vergonha — que não são poucas. A vergonha imensa de ter o corpo violado e de saber que vão duvidar de você impede as mulheres de falar.

O Brasil é o quinto país mais violento do mundo para ser uma mulheres – e o pior é acabar por ouvir que mereceram [a violência]. Nossa pátria amada é a primeira do mundo em número de assassinatos de travestis e transexuais, além de ter taxas assustadoras de violência contra mulheres, sobretudo negras. Então: por que eu fui às redes sociais? Porque sabia que estaria falando por milhares de mulheres que são atacadas, violentadas, assediadas, violadas. Não apenas na mesma situação que eu, uma adulta atacada, que, dentro das estatísticas, é a menor parte. São 527 mil estupros registrados por ano no Brasil, segundo pesquisa do Ipea (a partor de dados de 2011). Destes, 70% são contra menores de 17 anos, 52% contra menores de 13 e cerca de 70% cometidos por conhecidos, dentro do próprio lar. 89% das vítimas são mulheres.

Quando vi que meu depoimento estava virando notícia voltada para o sensacionalismo, retomei a narrativa, conversei com algumas amigas e resolvemos criar a hashtag MeuMotoristaAbusador. Em algumas horas, recebemos depoimentos horripilantes. Não é questão apenas restrita a Uber ou táxis. Recebemos depoimento até de garotas que pegaram caronas com amigos ou conhecidos e acabaram abusadas. Pois aquele conhecido que força a barra, que põe a mão na sua perna, que tenta te beijar contra a vontade, lamento dizer, também é um assediador ou um abusador. O cara que força sexo porque você foi até a casa dele, o cara que não respeita seu “não”, mesmo que você já esteja nua na cama com ele, esse cara também é um agressor. Sexo sem consentimento não é sexo, é estupro.

Isso é uma pontinha do que nos acontece. Uma pontinha.

Esperamos conseguir ir além dessa pontinha que apareceu e discutir o problema a fundo. E não adianta fazer isso apenas entre mulheres. Se quem está perpetrando a violência contra a mulher é o homem, rapazes, vocês precisam conversar entre si e nos escutar.

A palavra é a minha arma, e é ela que escolhi usar.

*Clara Averbuck é feminista, escritora, autora de livros como Cidade Grande no Escuro (2012) e Máquina de Pinball (2002), entre outros.