A lição que vou ensinar à minha filha
Por Lara Lopes*
Quando a minha parceira chegou ao Brasil, em 2015, fazia dois anos que eu estava aqui. Eu me lembro que quando a vi lhe dei um abraço apertado e nem queria saber quem estava ao meu redor. Eu só queria grudar nela mesmo. Eu via as pessoas aqui se abraçando na rua, casais heterossexuais, homossexuais, e eu também podia.
É difícil viver em um país em que você não pode fazer as coisas em pé de igualdade com aqueles que se julgam “normais”. Em Moçambique, a violência policial e institucional contra pessoas homossexuais é frequente. Me lembro de um dia em que fiquei embriagada e pedi para minha parceira dirigir. Ela tem carteira de motorista, mas naquela noite estava sem o documento. Fomos abordadas por um policial a um quarteirão de sua casa. Ao invés de rebocar o carro, pedir para ela buscar o documento em casa, dar uma multa, não, ele nos levou para a delegacia, a prendeu e, junto com outros policiais, a assediou dizendo que fariam com ela coisas muito melhores do que eu fazia. Isolamento social, difamação, assédio em casa e nas ruas, ameaças de morte – lembranças que eu procuro esquecer. Qualquer que seja a violência que uma pessoa homossexual sofra no meu país, ela será sempre considerada culpada, nunca vítima.
Em Moçambique, eu não conseguia trabalhar. Quando enviava meu currículo para um processo seletivo e me ligavam para marcar a entrevista, eu ficava imediatamente com dor de cabeça: o que eu vou vestir para não passar a impressão de que eu sou quem eu sou? E era comum o candidato antes de mim ficar 15, 20 minutos na sala de entrevista e eu não ficar mais do que cinco. Eu sequer tinha a oportunidade de demonstrar meu conhecimento. Aos poucos fui perdendo a alegria de viver e cheguei a acreditar que eu era mesmo uma pessoa desprezível e que não merecia existir.
Comecei a pesquisar por outros países onde eu e minha parceira pudéssemos recomeçar a vida.
Observávamos as novelas brasileiras, que fazem sucesso no meu país, e sabíamos que casais homossexuais eram pelo menos retratados na televisão. O assunto não era invisível. Pesquisando, descobrimos que no Brasil, apesar de não haver na Constituição uma legislação específica que proteja a população LGBT como há para a população negra e a criminalização do racismo, por exemplo, existe proteção contra crimes de discriminação em geral. É permitida a adoção de filhos e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Decidimos que eu viria primeiro para organizar as coisas. Quando cheguei aqui, não foi aquela maravilha. Precisei de dois anos para me estabilizar minimamente. Eu não conhecia nada e tinha um semblante muito triste que acabava me fechando portas. Morei em um abrigo, o que não é uma coisa fácil. Me sustentei nos primeiros meses com o dinheiro que minha mãe me mandava, até que consegui meu primeiro trabalho em São Paulo. Tinha uma colega que, todos os dias, me perguntava a mesma coisa: por que você está aqui? O que te fez sair de lá? E eu respondia. Todos os dias, no horário do almoço, eu respondia pacientemente às mesmas perguntas. Meus colegas homens chegaram a fazer uma aposta para ver quem conseguiria ficar comigo. Nos programas pós-expediente, eu era a única a não ser convidada. Com um ano de trabalho, um colega também homossexual me mandou lavar e dobrar as cuecas dele. Achei errado, discutimos, ele foi até a gerência e eu fui mandada embora um mês depois que minha parceira havia desembarcado no Brasil e, claro, ainda estava desempregada.
O Brasil é um país que nos recebe muito bem, mas ainda há muito preconceito contra refugiados. O imaginário das pessoas é muito negativo. Mas a verdade é que nós, refugiadas e refugiados, deixamos o nosso país de origem por termos sido perseguidos – seja por motivos de raça, opinião política, religião, nacionalidade, entre outros. Saímos para continuar vivendo.
Persistimos, minha parceira e eu. O que sofremos em Moçambique era muito pior. No Brasil, visto o que gosto, procuro emprego sem medo de que percebam que sou homossexual, posso andar de mãos dadas na rua, consigo falar e me expressar sem medo.
Hoje, minha parceira é gerente de uma escola de idiomas e eu trabalho como assistente de Recursos Humanos em uma empresa que tem um programa de agenciamento de empregos para pessoas refugiadas. É muito gratificante poder ajudar aqueles que estão em uma posição em que já estive. O trabalho é um elemento fundamental para que uma pessoa refugiada possa se reinserir socialmente.
Eu gostaria de ver mais empresas conscientes disso, abrindo vagas para pessoas refugiadas e dando mais oportunidades. Muitos de nós têm faculdade, pós-graduação, chegam com experiência profissional, falam dois, três idiomas além do português. Não se trata de uma disputa de vagas com os brasileiros, mas de uma oportunidade de mostrarmos o nosso potencial, refazermos nossas vidas e contribuirmos com o local em que estamos. Não estamos pedindo caridade. As empresas e organizações também ganham muito com a diversidade de culturas, experiências e histórias de vida trazidas por pessoas de outros países.
O documentário Recomeços: sobre mulheres, refúgio e trabalho lançado hoje pelo projeto Empoderando Refugiadas, iniciativa coordenada pela Rede Brasil do Pacto Global da ONU, em parceria com o ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), a ONU Mulheres e diversas outras organizações, é exemplo disso. Além de sensibilizar empresas, o projeto capacita mulheres refugiadas em São Paulo para o mercado de trabalho.
Minha história e a de outras nove mulheres, beneficiadas inicialmente pelo projeto, são um convite à reflexão sobre como o trabalho impacta nossas relações familiares e sociais. Nos permite começar de novo.
Desde muito pequena, eu tive consciência da minha orientação sexual e, desde muito cedo, eu também sonho em ser mãe.
Para a minha filha, ou filho, a lição mais importante que vou ensinar é sobre respeito.
* Lara Lopes é moçambicana e vive como refugiada no Brasil. Tem 33 anos, trabalha como assistente de Recursos Humanos e cursa faculdade de Gestão de Tecnologia da Informação