Eu estou ao lado de Maria do Rosário
Dida Figueiredo*
Quando uma autoridade pública, em tom de ameaça, diz a outra autoridade pública “eu não estuprava você porque você não merece”, há aí não só a culpabilização da possível vítima (afinal, se ela “merecesse” ele estupraria), mas a apologia a um crime (ele assume que cometeria o crime se ela “merecesse”). Em sequência, ele acrescenta numa entrevista: “não a estupraria porque ela é muito feia”. Mais uma vez, culpabiliza a vítima e assume que faria se o caso fosse outro. Agride-se a ela e a todas nós. Todas que podemos sofrer com ação daqueles homens que se sintam estimulados ou legitimados à violência. Somos, as mulheres brasileiras, todas vitimas em potencial.
Em Pernambuco, de onde sou, são registrados cinco estupros por dia. No Brasil, são cinco estupros por hora. 89% das vítimas são mulheres e umas sofrem mais que outras – 51,4% das vítimas são negras; 38,6% são brancas; 0,7% são indígenas e de 8,7% não se têm informações.
A apologia ao estupro numa sociedade com mais de 45 mil vítimas anuais é em si um crime (art. 287 do Código Penal) que se torna ainda mais grave por haver sido proferido por um parlamentar, uma autoridade a qual muitos seguem e se espelham.
Já ouvi vários argumentos de que ele apenas revidou injusta agressão anterior. Vamos rever os fatos? As afirmações foram feitas no plenário da Câmara dos Deputados no dia 09 de dezembro de 2014 e repetidas no jornal Zero Hora em sequência. A suposta agressão a ele, que o motivara, teria ocorrido em 2003! É muito fácil perceber o lapso temporal, mesmo em vídeo editado, basta ver a aparência e o cabelo de ambos que mudou ao longo dos anos. Portanto, ele não falou no calor do momento, para repelir outra agressão e, mesmo se o fizesse, a ameaça e a apologia ao crime continuariam existindo.
Ele falou exatamente para abafar um discurso importante da agredida sobre a Comissão Nacional da Verdade. Não por acaso, o fato ocorreu às vésperas de ser lançando o relatório da Comissão Nacional da Verdade, no qual apresentava-se à população os relatos dos crimes cometidos pelo Estado contra mulheres e homens que ousaram lutar contra o arbítrio. Naquele período, declaradamente admirado pelo parlamentar, segundo advogada e assessora da Comissão Nacional da Verdade, Nadine Borges, “as mulheres eram estupradas e torturadas dentro das estruturas do Estado brasileiro. Elas eram coagidas a falar pela força física superior de seus algozes que até hoje não foram responsabilizados por esses crimes. Aceitar apologia ao estupro na democracia é um crime contra todas as mulheres e contra a humanidade”.
Ele falou para punir uma mulher, usar de violência para colocá-la em um local de subalternidade e silenciá-la. E ao dizer isso, ele a agrediu. A deputada Maria do Rosário foi agredida sim, por ser mulher. Quantas de nós já não passou pelo mesmo?
Juridicamente, há três ações judiciais contestando tal conduta. Duas na área criminal no Supremo Tribunal Federal6 e uma na área cível (danos morais), na qual ele já foi condenado em primeira e segunda instâncias. O acusado defende-se a partir do argumento da imunidade parlamentar, o qual lhe garantiria o direito de fala sem a possibilidade de responsabilização. O instituto da imunidade parlamentar, próprio de regimes democráticos, é um importante garantidor das atividades legislativas. Não poderiam os parlamentares processarem uns aos outros a cada troca inflamada de argumentos. Isto inviabilizaria seus trabalhos. No entanto, esse instituto não pode, à luz da Constituição de 1988, ser interpretado de forma absoluta. A apologia ao crime não deve jamais ser resguardada sobre seu manto.
Tais processos judiciais têm o mérito e o relevo histórico de estarem revendo esse mito da imunidade absoluta. No processo cível, o acusado foi condenado em primeira instância e a decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Nele reconheceu-se que não se podia alegar tal imunidade, pois o parlamentar reafirmou as ofensas em jornal de grande circulação. Ele recorreu e o processo será julgado hoje à tarde pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
No Supremo Tribunal Federal (STF), o processo já passou por duas fases. Na primeira, era preciso decidir se o parlamentar se tornaria réu. Na ocasião, o relator, Ministro Luiz Fux, descartou a proteção da imunidade por entender que as declarações não tinham relação com o conteúdo do mandato parlamentar, não tendo teor político, no que foi seguido pelo Ministros Luis Roberto Barroso, Edson Fachin e Ministra Rosa Weber. Naquela ocasião, o Relator reconheceu ainda: “ao menos em tese, a manifestação teve o potencial de incitar outros homens a expor as mulheres à fragilidade, à violência física e psicológica, à ridicularização, inclusive à prática de crimes contra a honra da vítima e das mulheres em geral”. O acusado recorreu, mas teve seu recurso negado. Na próxima fase, será decidido se o acusado será responsabilizado criminalmente pelo STF. O julgamento deve ocorrer em breve.
Se por um lado as Ministras e Ministros têm de se ater as partes e ao processo, isso não impede que sejam consideradas as repercussões sociais deste tipo de discurso, nem tampouco pode ser ignorado que o acusado é ele próprio uma autoridade pública, o que amplifica o alcance das afirmações.
A construção de um patamar civilizatório no qual cada uma de nós possa ser livre e não ter medo é uma construção coletiva de muitas atrizes e atores e também das instituições. As mulheres feministas estão nas ruas, nas praças e nos seus espaços de atuação travando lutas diárias e demonstrando que não retrocederão nem se calarão diante de ameaças ou violências. O Judiciário, na sua missão de salvaguardar as leis a Constituição, não pode ignorar seu papel de condutor de discursos aceitáveis e inaceitáveis socialmente, nem tampouco sua responsabilidade para com todas nós.
Rosário, hoje e nesses processos judiciais todos, você me representa e a muitas de nós. Por isso, estou ao teu lado, na defesa da tua voz e pelo direito de toda e qualquer mulher poder se postar diante de um homem ou de uma plateia e dizer o que pensa.
* Dida Figueiredo é advogada, pesquisadora e membra da Partida Rio.