Imagino todas nós
Por Érica Magni em depoimento a Audrey Furlaneto*
Sempre me vi igual a um homem. Quando criança não sentia diferença alguma entre eu e meu primo com quem cresci junto. Me sentia, muitas vezes, mais sagaz, capaz e esperta que ele. Na escola, também. Sempre me saía bem em tudo e, apesar de ouvir que os meninos eram mais inteligentes que nós, garotas, para mim, éramos iguais. Quando comecei a trabalhar, aos 15 anos, como office girl, uma função que, diga-se, é quase exclusiva dos homens, também foi assim. Carregava peso, pagava contas no banco, executava todas as tarefas. Nunca me senti diferente de um homem. Até viver um aborto.
Eu estava sozinha, no banheiro do hospital Miguel Couto, cambaleante de tanta dor, carregando o suporte com o soro conectado à minha veia. Estava sozinha quando segurei nas mãos meu filho morto.
Não queria abortar. Descobri que estava grávida em fevereiro passado, quando ainda morava em Barcelona. Fiz o exame de sangue um dia antes de embarcar para o Rio, onde passaria três meses com meu namorado. O teste deu positivo. Eu então vivia apenas com uma mala pequena, viajando e prestando consultoria de comunicação em diferentes países. Não cabia um filho naquele momento da minha vida. Mas, a partir do teste positivo, da confirmação da gravidez, eu existi como mãe.
Cheguei ao Brasil com oito semanas, sem plano de saúde. Imediatamente procurei o SUS. Fui ao Centro Municipal Píndaro de Carvalho, na Gávea, pois ficava perto de onde estava hospedada, na casa de uma amiga no Jardim Botânico. No primeiro atendimento, fiz testes de HIV, hepatite e sífilis, entre outros. Tudo certo. Mas só 15 dias depois eu teria consulta com um médico e faria a primeira ultrassom.
Era 22 de fevereiro, quatro dias depois do meu aniversário de 31 anos, e fui para o Rocha Maia bem cedo. Na sala do exame, fui recebida por uma mulher, que me pediu para tirar a roupa, vestir um avental e deitar com as pernas abertas. Começou o exame. Assim que a imagem apareceu na tela, e ela disse: “Espera um pouco”. Continuou com o aparelho, apertando minha barriga e movimentando o instrumento lá dentro, até que, sem se alongar, sem deixar escapar sentimento ou empatia, ela informou: “Você está com nove semanas e já seria possível ouvir o coração do embrião. Mas ele não tem batimentos. Você tentou interromper a gestação?”. “Não”, respondi. “Você queria ter?”, continuou. “Sim, eu queria.”
A obstetra explicou que eu deveria ir ao hospital Miguel Couto para fazer “os procedimentos”. Não usou a palavra aborto. Pouco se fala aborto no sistema público de saúde, embora seja legal no SUS em três casos: de estupro, feto anencefálo e risco para a vida da mãe (o meu caso).
No momento seguinte eu estava chorando, desesperada e triste, num táxi rumo ao outro hospital. Lá, fui recepcionada por uma mulher que mal levantou os olhos e apanhou o papel que eu tinha nas mãos. Nele estava escrito que eu deveria ser internada para uma curetagem. No ato, ela avisou que não tinha vaga. Que eu tentasse no dia seguinte. Voltei para casa, carregando em mim um embrião morto. Era o primeiro momento que eu estava sozinha naquela nova realidade — não vou ter um filho, e amanhã preciso tirar o embrião do meu útero ou posso morrer. A expectativa de vida virou a morte. Carregava a morte dentro de mim.
No outro dia, voltei cedo ao Miguel Couto, com minha mãe, uma comitiva de amigos e meu namorado. De novo, não havia leito, e eu deveria tentar no fim da tarde. Outra vez, fui para casa carregando o embrião morto em mim. Às cinco em ponto, já estava de volta ao hospital — ainda sem vaga. Mesmo assim, fui levada a uma sala onde estavam duas mulheres, médicas ou enfermeiras, não sei bem, só falaram comigo para pedir que eu tirasse a roupa, vestisse um avental e abrisse as pernas. Enfiaram duas pílulas na minha buceta e me disseram para esperar. Nenhuma informação sobre o que estava acontecendo. Eu já imaginava que tinham me aplicado as medicações para o aborto, mas não pude perguntar nada. Tudo era muito automático e não havia tempo para perguntas. Quando tentei falar, quando ameacei indagar, notei que as pessoas tinham respostas prontas — em geral, apenas uma: “Tem que esperar”.
Com as duas pílulas dentro de mim, fui mandada para o corredor do hospital. Numa cadeira, devia esperar por uma vaga na enfermaria da maternidade. Fiquei ali por menos de duas horas, tempo suficiente para ver dramas muito maiores que o meu, embora saiba que dor não tem medida. Sentada ali, assisti à chegada de uma viciada em crack. Vinha numa cadeira de rodas a bater na barriga e a gritar: “Fui estuprada! Não quero ter esse filho! Estou com seis meses, e eles não me deixam tirar”. A cena me marcou. Vi a real condição da mulher, a minha e a dela, juntas, recebendo o mesmo tipo de tratamento. Ela gritava por um direito, o de tirar um filho. Eu estava ali pois era deveria tirar o meu, que estava morto. Estávamos eu e ela no mesmo lugar, em condições diferentes mas, ao mesmo tempo, tão iguais. Era inevitável me colocar no lugar dela, naquela cadeira, sendo levada para alguma sala sem muita explicação, assim como acontecia comigo. Ela também era tratada como um pedaço de carne.
Éramos iguais e éramos várias. No quarto a que me levaram depois, estavam outras cinco mulheres. Ao meu lado, um bebê com icterícia dormia à beira do leito da mãe. Mais adiante, uma grávida de oito meses se recuperava de uma cirurgia na vesícula. Uma boliviana chorava copiosamente a perda do filho. Uma garota esperava para fazer o mesmo “procedimento” que eu, a curetagem depois de um aborto retido. Havia também uma enfermeira, ora sentada na entrada do quarto, ora revezando-se entre as pacientes internadas. Ela apenas me aplicou o soro na veia e repetiu o mantra: “Tem que esperar”.
Tomei por conta própria um remédio para dormir. Não queria estar acordada naquela noite, sozinha no hospital. De madrugada, acordei com uma dor latejante na região pélvica. A enfermeira não estava no quarto, e eu sentia enjôo e vontade de ir ao banheiro, efeitos do abortivo. Levantei como pude e caminhei dez metros, carregando o suporte do soro até o banheiro, um lugar horrível, fétido. Troquei a calcinha e o absorvente, vomitei e tive diarreia ao mesmo tempo. Não tinha alguém para segurar minha mão. Sabe quando você é criança e está vomitando e sua mãe bota a mão na sua testa? Aquele gesto da minha mãe me acalmava muito. No hospital, eu queria aquela mão, queria alguém naquele banheiro pra me dizer: “Força”. Mas eu só tinha a mim mesma e tive que dizer: “Força”. Sozinha, no pior momento da minha vida.
Fui para a cama, mas logo precisei voltar. De novo, vomitei e perdi muito sangue. Estava em pé, apoiada na pia, recobrando a força. Já em seguida, um tanto pragmática, iniciei o movimento para me limpar, puxando a calcinha por debaixo do avental do hospital. Foi quando vi o embrião no absorvente entre as minhas pernas. De imediato eu o peguei. Segurei na mão, olhei por algum tempo. Já tinha partes formadas. Toquei devagar com os dedos. Precisava tirar uma força absurda de dentro de mim, estava sozinha e sabia que não adiantava chorar. Precisava simplesmente cumprir aquele protocolo: desfazer-me do que um dia pensei que seria meu filho ou minha filha. Dei descarga.
A curetagem só ocorreu na noite seguinte. Fui outra vez levada a uma sala, sem muita explicação. Lá, um homem (talvez o anestesista?) me disse: “Fica tranquila”. Notei que a porta da sala estava aberta e que, do corredor, eu podia ser vista por quem passava. Pouco antes de apagar, vi que uma mulher me espiava. Acordei com o suposto anestesista me dando um tapinha no ombro: “Terminou, pode levantar”. Quando me olhei, estava de fralda geriátrica e tinha iodo escorrendo pelas pernas.
Desde então, entendi e senti que sou parte de uma engrenagem. Uma engrenagem na qual a mulher não pode escolher se quer ou não ter um filho. Não pode porque a engrenagem já está preparada para que ela aceite uma condição imposta. Ao ser privada de acolhimento e de informações, fui posta no lugar de sub-humana. Não pude ter apoio, simplesmente porque as regras não deixam. Não pude fazer perguntas, porque não havia tempo para perguntas. O aborto (legal, repito) é quase uma punição.
Antes dele, me sentia especial. Alguém com privilégios. Eu me sentia um homem. Talvez até um superhomem. Não vivia a diferença, porque me via no mesmo lugar que o do homem. O aborto me fez sentir realmente que não, não somos iguais. Nós, mulheres, precisamos de mais. Mais apoio, mais coerência, mais estudos, mais pesquisas sobre nosso universo, sobre aborto, sobre sangrar todo mês. Porque o mundo (ainda) não é nosso, não foi pensado para nós, mulheres.
Desde o aborto, me coloco no lugar da mulher que não quer ter o filho, da que não pode contar com o aparelho público. E, mesmo que possa, será refém de um sistema que trata o assunto como tabu. Me coloco no lugar da mulher que não tem o mínimo de instrução, ou daquela que não pode acessar informações. Imagina ela? Imagina eu? Eu, hoje, imagino todas elas. Todas nós.
* Érica Magni é consultora em comunicação e Audrey Furlaneto é jornalista.