O Tempo das mulheres negras
por Larissa Santiago*
Há algum tempo atrás algum branco postulou a teoria da relatividade, numa compreensão progressiva de que dois referenciais diferentes oferecem visões perfeitamente plausíveis, ainda que diferentes, de um mesmo efeito.
Proponho aqui com este texto que pensemos então na relatividade do tempo e em como o seu curso tem implicações diferentes para as diferentes mulheres. Dito isto, preciso enfatizar que esta conversa é direcionada a nós, que tendemos a lidar com o tempo de uma maneira muito específica, quase que cruel.
Peço ajuda do próprio Tempo, que, para nós que acreditamos, é o Deus a permitir que tudo ocorra em sua devida hora. É no Tempo que tudo acontece. Ele não para e muda a qualquer instante. Por isso e por outros tantos motivos, ouso considerar que estamos no nosso Tempo, no tempo das mulheres negras! A Grande Marcha ocorrida em 2015 ainda reverbera em nossas ações e em nossos cotidianos — este ano, por exemplo, é Tempo de celebrar, conversar e articular o II Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas.
É esse também o Tempo de sacudir o Norte e o Nordeste com o #JulhodasPretas, organizado regionalmente para trazer à baila todas as pautas da negritude sob o olhar das meninas, jovens e mulheres negras. É o Tempo de invadirmos a Feira Literária de Paraty com o lançamento do catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”. É deste lugar no Tempo de onde estamos falando.
Batuquemos!
Mas sobre o outro tempo do qual queremos falar — e aqui evoco e convoco todas as pretas com quem conversei — é sobre esse elemento que, sendo tomado pela lógica eurocêntrica e branca, tem nos massacrado e tolhido. Para deixar mais claro o que tentamos dizer, trazemos Maria Betânia Ávila, feminista branca nordestina, que tem feito um trabalho incrível com as mulheres da zona rural e do interior de Pernambuco. Betânia escreveu um artigo riquíssimo chamado Vida cotidiana e o uso do tempo pelas mulheres. Este ano, tivemos a honra de ouvi-la no Diálogo Mulheres em Movimento, promovido pelo Fundo Elas. Em uma de suas falas poderosas, Betânia Ávila lançou:
“O tempo da vida das mulheres é o tempo do trabalho.”
É preciso ter cuidado, estar atenta e forte pra entender o que Betânia queria dizer, a quais mulheres ela se referia. Precisamos salientar também que a experiência de Betânia é fundamental para este postulado: seu labutar com as mulheres rurais faz toda a diferença.
Estamos falando das mulheres que dedicam o tempo da sua vida ao trabalho, à tripla, quarta, quinta jornada. Mulheres negras velhas e jovens! Nós, que sabemos muito bem quanto custa lavar uma pia enorme de pratos sentindo culpa e ansiedade, por aqueles preciosos minutos que nos custaram o mestrado, a poesia, a criatividade.
Isso dito a ouvidos pouco atentos parece balela, mas ouçam bem, minhas caras mulheres não-negras: o tempo da vida de vocês não é o mesmo tempo da vida das mulheres negras — nem de longe. A começar inclusive pela história, em que o trabalho dentro e fora das casas grandes sempre foi nosso — trabalho imposto, escravo, livre ou não.
O que este sistema econômico tem feito com a vida das mulheres, sobretudo das mulheres negras, é impor condições de sobrevida, na falsa afirmação de que é o trabalho que dignifica o homem (sic), apresentando para nós uma mentirosa teoria de que o tempo precisa ser produtivo e frutífero, mas que mesmo assim nosso labor — reprodutivo ou não — não tem tanto valor assim.
Estamos aqui falando do movimento estúpido do capitalismo que, quando oportuniza a entrada das mulheres no mercado de trabalho, precariza salários, condições e direitos. Isso porque, como bem vai nos dizer Betânia Ávila, “em nossa sociedade a utilização desse tempo é definida pelos interesses da acumulação capitalista e do poder patriarcal”.
O que acontece com o tempo nas vidas das mulheres negras é que, mesmo sob a égide do capitalismo, em que o tempo que tem valor é aquele empregado em atividades de produção, quando nós estamos nestes lugares — postos de trabalho produtivos — ainda assim nosso tempo não é devidamente valorizado. Isso porque estamos a pensar numa profissão que a nossa sociedade valoriza, como o jornalismo, por exemplo. Imagina se falarmos então de atividades produtivas como a das trabalhadoras domésticas.
Se introduzirmos aqui esta discussão, seremos então obrigadas a falar do uso do nosso tempo para as atividades ditas reprodutivas, e aí, parceira, este texto nunca mais terá fim: a maior parte da vida das mulheres negras é dispendida a realizar essas tarefas e o que presenciamos no dia-a-dia, sejamos nós rurais ou urbanas, é o escasso momento em que podemos massagear nossos pés, ler alguma coisa que nos interesse ou apreciar o pôr-do-sol.
“Qual o tempo definido para o cuidado com as pessoas que não têm condições de se auto-cuidar?”, diz Betânia. Nós entendemos perfeitamente o que significa ter tempo para si, para o lazer, para o aconchego e para fazer o que bem entendermos. Mas o que a nossa sociedade, acostumada com a servidão, com a escravidão e com a subjugação de negras e negros, o que essa sociedade produziu foi o cômodo pensamento-ação de que sejamos nós as que limpem, organizem, cuidem para que outras mulheres tenham seu tempo. E Betânia continua:
“São as mulheres que liberam o tempo de outras mulheres”.
Precisamos mesmo pontuar aqui de quais mulheres estamos falando?
Bendita seja Cristiane Sobral, que nos ensinou a gritar bem alto e forte e a internalizar como mantra sua poesia que dá nome e cor a seu livro: “Não vou mais lavar os pratos”. Benditas sejam todas as mulheres negras mestrandas e doutoras, que conseguiram entre um ônibus e outro ler aquele artigo. Benditas todas as mães pretas donas de casa e que trabalham na rua porque possuem a criatividade e o dom para o drible do tempo, o eurocêntrico.
Louvadas sejam todas as mães de santo que cuidam de suas casas de Axé e acham tempo para aconselhar filhos, fazer compras, cuidar de um doente e ainda amar. Benditas as designers gráficas negras de tripla jornada com seus jobs e freelas sem fim, que ainda conseguem organizar reuniões ampliadas, encontros, oficinas e ir ao supermercado.
Benditas todas as mulheres negras professoras de escola pública, que acordam tão cedo para o café e que, depois de horas sem sentar e com a garganta doendo, ainda tiram energia do banho para corrigir provas e trabalhos, pensando no plano de aula da semana seguinte. Sejam louvadas!
Todas as lavadeiras, as das “roupas de ganho”, que tocam suor e fluídos de gente imunda e estranha, esfregando e decepando seus dedos na água sanitária, e que ainda assim arrajam tempo pra cantar e inventar toadas de amor e dor. Benditas mulheres.
Estamos falando de Feminismo Negro, senhoras!
Porque a luta pelo direito ao trabalho, quando travada no início do feminismo, não dizia respeito a nós, diga-se de passagem; já estávamos nas ruas, alforriadas ou não, mantendo essa antiga tradição e falsa afirmação de que “só o trabalho liberta”, quando literalmente compramos alforrias e liberdade para nós e para os nossos. Nosso clamor por condições igualitárias de salário, por qualidade e dignidade no exercício do labor é tão importante quanto a luta por liberdade.
As que lutam por creche e condições de criar seus filhos dignamente entendem como a profundidade das demandas das mulheres negras são um passo largo para o avanço de uma dita sociedade de direitos. Nosso tempo de vida precisa ser justo e bom, afinal, como Vilma Reis acabou de gritar em seu artigo para o Correio Nagô*:
“A gente não aguenta mais enterrar mulher!”
E nessa pegada nós poderíamos discorrer horas sobre como o plano para a exclusão no mundo do trabalho e a intencional precariedade da nossa vida fosse de fato indispensável para o projeto de sociedade brasileira. Podemos infinitamente citar Florestan Fernandes em “A Inserção do Negro na Sociedade de Classes”, com sua teoria racista de que somos impróprios para o trabalho livre, justamente porque fomos escravos. Balela! Ou continuar analisando sob a luz de Célia Maria Marinho de Azevedo as várias respostas sobre o que fazer com o negro após a abolição, citando capítulo atrás de capítulo do seu livro “Onda Negra, Medo Branco”.
Mas não é isso o que queremos destacar. Desejamos um olhar sobre outra perspectiva, sim: queremos dizer que nosso Tempo é outro.
O tempo da nossa vida não precisa ser o tempo do trabalho — não é o resultado dessa equação que queremos. Estamos aqui a falar sobre Tempo e por isso mesmo estamos falando do lugar em que entendemos e sabemos o queremos fazer com Ele. Onde está o tempo do lazer? Onde está o tempo do autocuidado? Da ida à praia e da leitura daquele livro há semanas na mesa do quarto?
Esse Tempo tem pra nós, mais do que pra qualquer mulher — e aí ousaremos assim falar — um significado muito maior. Pois somos nós sim as que seguramos países inteiros! No campo ou na cidade. É a nossa intelectualidade que critica o que aí está posto, depois de engolir os cânones brancos e ainda arranjar mais Tempo para estudar as autoras negras. Somos nós as que, por séculos, servimos dentro das casas grandes e cortamos cana nos canaviais dos interiores da vida.
Tempo pra gente é precioso. Tempo é Orixá.
E por isso mesmo, ousamos dizer: por todo esse tempo, 300 anos só aqui no Brasil, nós podíamos passar pelo menos 150 anos sem que esse nosso Tempo fosse usado para qualquer trabalho ou qualquer coisa que assim se designasse.
A arte, a música, a literatura, a dança. Nosso Tempo haverá de ser inteiramente nosso e pensado para nosso bem-estar e bem viver. Cuidado dos nossos filhos, aconchego com nossos amores, almoços e jantares com nossas mães. Tempo pra cantar, enfim, a nossa liberdade.
A utopia serve para que sigamos na luta, alguém já disse. Esse é o nosso desejo que segue até que sejamos completamente livres para o uso do nosso Tempo. Para que os estereótipos e culpas não sejam a base para as mudanças estruturais em nós, comunidade; que o tempo cronológico e capitalista não nos roube o brilho de uma manhã de domingo porque precisamos lavar pratos ou coisa semelhante.
O Tempo das mulheres negras precisa ser para as mulheres negras.
* Larissa Santiago é feminista negra, publicitária e coordena o site Blogueiras Negras.