PRISÕES: O projeto para Rafael não atinge Daniel
* Por Suzane Jardim
Abril de 2017, recebo a notícia: Rafael Braga Vieira foi condenado a 11 anos e 3 meses de prisão. A acusação: tráfico de drogas.
Naquele mesmo dia, me juntei a pessoas que se agrupavam pelo entendimento de que algo estava errado – e não era apenas a condenação de Rafael Braga. Estava também errado o fato de ter sido negada a checagem dos elementos que poderiam comprovar sua inocência. Estava também errado todo o sistema que permitiu sua condenação (de mais de uma década) com base apenas em depoimentos contraditórios – estes, diga-se, dos mesmos policiais que o prenderam. O sistema, enfim, era que estava totalmente torto. Afinal, como Rafael Braga existem milhares.
Assim, decidimos fortalecer os Comitês pela Liberdade de Rafael Braga, que tinham sido criados no Rio de Janeiro em 2013, quando o jovem foi preso pelo gravíssimo crime de “porte de Pinho Sol”. Deu-se então início à campanha #30DiasPorRafaelBraga: um mês de trabalho intenso e voluntário para levar a crítica ao encarceramento o mais longe possível, para dialogar com a população e mostrar que a cadeia em seu formato atual é um problema social, e não solução.
Logo vieram os questionamentos: “Defender bandido?”, “Se o tal Rafael Braga foi preso, alguma coisa fez, porque ninguém vai preso à toa” ou “Você critica a cadeia porque nunca foi vítima de um vagabundo…”. E é aqui que respondo: eu fui, sim, uma vítima e foi esta condição de vítima que me levou a levantar a voz contra as prisões.
Talvez você tenha lido sobre. Está nas redes, não é segredo, um Google resolve. Aconteceu há quatro anos. Eu, mulher negra, mãe e pobre, estava então na UTI, entre a vida e a morte, depois de sofrer uma tentativa de feminicídio. Fiquei com sequelas que serão para a vida toda, dependo de medicação para lidar com as dores constantes, me tornei alguém com dificuldade de locomoção e que pede lugar no ônibus lotado para aguentar chegar ao trabalho. Ele? Após um tempo foragido, conseguiu o direito de aguardar o julgamento em liberdade por não ser considerado uma ameaça.
Nos quatro anos que se passaram, muito me foi dito sobre meu caso, e o consenso parecia ser um só: podiam até relativizar o ocorrido ou tentar me culpabilizar, mas todos concordavam que, diante de uma tentativa de assassinato por motivo fútil, o lugar de meu agressor era na cadeia. Me uni a grupos de mulheres que clamavam pelo bom funcionamento do direito penal, por cadeia para agressores, misóginos e afins. Ano a ano, porém, vi meus esforços se transformarem em nada. Foi quando questionei pela primeira vez a urgência em julgar e punir casos como o de Rafael Braga e, por outro lado, a lentidão ou inexistência de punição quando falamos de crimes contra as mulheres. Por que Rafael Braga é considerado uma ameaça à sociedade, e o homem que tentou me matar não?
Em 2006, comemoramos a promulgação da Lei Maria da Penha e, em 2014, celebramos a Lei do Feminicídio. Estávamos, então, corrigindo erros do nosso direito penal e fazendo uso dele para proteger as vidas de mulheres. Meu despertar se deu ao perceber que o que chamamos de “erros do direito penal” são, na verdade, parte do projeto político que o estrutura – um projeto seletivo, pautado em racismo e em elitismo, moldado a partir de sujeitos dos quais o Estado quer se ver livre.
Acreditamos que a prisão existe para nos livrar de ameaças, para nos proteger e excluir da sociedade sujeitos que colocariam nossas vidas em risco. Tal crença, somada à narrativa das mídias, leva à ideia de que as prisões garantem nossa segurança ao isolar (ao menos supostamente) assassinos, psicopatas, estupradores, entre tantos outros indivíduos perigosos. Ao mesmo tempo, o senso comum diz que vivemos numa eterna era de permissividade e de tolerância ao crime, um tempo em que as forças da lei já não são tão atuantes. A prisão surge, assim, como um instrumento de controle social necessário, que serve ao bem de todos, afastando ameaças e protegendo vidas.
Uma simples consulta aos dados, porém, revela uma realidade diferente: a grande maioria da população carcerária brasileira é composta por pessoas sem antecedentes criminais e detidas por crimes não-violentos relacionados ao pequeno tráfico de drogas. E o país nunca encarcerou tanto. Temos hoje a quarta maior população carcerária do mundo e que cresce de tal maneira que pesquisadores acreditam que, em 2075, um em cada dez brasileiros estará preso.
Muitas vezes, fortaleci o discurso punitivista – este mesmo que leva mulheres às ruas para pedir a volta do goleiro Bruno ao cárcere, por exemplo. Eu exigia mais crueldade e dureza nas penas, mais agilidade nos julgamentos, mais prisões, mais algemas, sem perceber que tudo já era aplicado em massa, mas apenas para crimes específicos. Atualmente, um a cada três presos está na cadeia sob acusação de tráfico de drogas. Acredita-se que a Lei de Drogas brasileira tenha sido diretamente responsável pelo aumento de 567% das prisões femininas – sim, 567%, um percentual chocante que, segundo o Infopen Mulheres, diz respeito a uma maioria de mulheres negras. Para além da negritude, elas dividem mais semelhanças com Rafael Braga: 68% delas estão na prisão por envolvimento com o tráfico de drogas ligado a pequenos comércios e serviços. São mulheres jovens, vindas dos extratos sociais menos favorecidos, com baixa escolaridade, responsáveis pelo sustento familiar e que, antes do aprisionamento, exerciam atividades no mercado informal.
O sistema penal é formado por escolhas que se escondem atrás de uma máscara de universalidade. Desde a formação da lei até sua aplicação, existe um projeto em que se define quais crimes são prioridade, quem são os suspeitos ideais e as vítimas com as quais não irão se importar. Apesar de o foco ser o combate ao tráfico de drogas, o índice de homicídios aumentou em 125% entre 2005 e 2014, e o país chegou a se tornar recordista mundial em assassinatos, com cerca de 60 mil mortes anuais. Contudo, o percentual de presos condenados ou acusados de homicídio manteve-se na taxa de 10%, ou seja, não foi atingida pelo aumento da população carcerária. Não é difícil ligar este dado a outro: de cada 100 assassinatos no país, 71 são de pessoas negras. E, mesmo com as leis que tratam da questão de gênero, o feminicídio entre as mulheres negras aumentou 54% em dez anos, mas diminuiu entre as brancas.
Surgem mais leis, prende-se mais – exatamente como pedimos. No entanto, nós, mulheres negras, nossos filhos, companheiros, amigos e vizinhos continuamos morrendo sem que isso pareça um problema social grave, sem que a proteção às nossas vidas pareça um objetivo a ser conquistado pelo mesmo sistema punitivo que entra em nossos bairros e exerce seu poder . O mesmo sistema punitivo que nos faz ler notícias sobre as mortes de adolescentes negros em supostos confrontos com a polícia. O mesmo sistema punitivo que nos faz acreditar que esse “trabalho” é feito visando a segurança pública, e não o extermínio puro e simples.
A questão aqui não é tentar convencer você, leitora, de que não devemos punir agressores de mulheres ou feminicidas, mas, sim, fazer com que se note que o sistema carcerário tem o perfil moldado por escolhas feitas por órgãos de controle e pela estrutura de nossa sociedade. Portanto, se a misoginia e o racismo nos estruturam, também estruturam as leis, o direito penal e o cárcere.
Rafael Braga Vieira, condenado primeiro por Pinho Sol e agora por supostos 0,6g de maconha e 9g de cocaína, é um sujeito que, por ser como é e vir de onde vem, foi categorizado, no texto da condenação, como alguém com uma “personalidade voltada para a criminalidade”. Já Daniel, o estudante de medicina da USP acusado de estupro, foi absolvido e poderá exercer sua profissão sem problemas, mesmo tendo na ficha criminal um processo por homicídio – processo no qual recebeu pena de um ano de detenção, depois anulada pela Justiça.
Chamamos esse descompasso de “erro” e pedimos mais leis, mais criminalização, mais dureza nas penas – sem perceber que é para ser assim. Essa aparente injustiça é, na verdade, um projeto que independe da gravidade do crime e que, após as sucessivas etapas de um processo (polícia, Ministério Público e judiciário), leva às prisões criminosos não brancos, mais pobres, menos escolarizados e com pior acesso à defesa. Nesse sentido, eu, Suzane, teria muito mais chances de parar na prisão do que ver meu algoz no mesmo lugar. Faço parte de um grupo marcado por condição financeira, cor de pele e território, para qual o direito penal fornece punição, não proteção.
É para expor dados como esses que existem os 30 Dias Por Rafael Braga e os comitês por sua liberdade. Para que repensemos nossas políticas de encarceramento e para que questionemos, como mulheres e como cidadãs, até que ponto o direito penal pode mesmo ser um aliado e não mais um fomentador de injustiças.
* Suzane Jardim é historiadora, professora e uma entre diversas outras mulheres que organizam a campanha 30DiasPorRafaelBraga.