Obituário
Por Lidiane Malanquini e Patricia Ramalho Gonçalves
Fernanda Adriana Caparica Pinheiro, 7 anos, queria brincar. Não tinha aula naquela quarta-feira, 15 de fevereiro. Sua escola tinha cancelado as atividades do dia, em consequência dos tiroteios que ocorriam na região. Para Fernanda, a suspensão das aulas não era novidade – por causa de conflitos armados, as escolas no Complexo da Maré não raro cancelam o expediente, assim como os postos de saúde. Só em 2016, foram mais de 20 dias sem aula, sem atendimento médico gratuito e com medo de circular pela comunidade.
A família toda tinha acabado de se mudar do Parque União para outra comunidade na Maré, o Parque Rubens Vaz. Fernanda cursava o 2º ano da Escola Municipal Paiva Camelo e já imaginava o futuro: seria veterinária, costumava responder a quem lhe fazia a inevitável pergunta “O que você vai ser quando crescer?”. Nos últimos dias, andava mais animada do que de costume com a proximidade da Primeira Comunhão, quando iria estrear o “vestido de princesa”, presente da madrinha Denise.
Pois naquela tarde ociosa de fevereiro, pensava em brincar justamente quando uma amiga do antigo bairro a convidou para uma tarde na laje. Sociável e alegre, a menina gostava de estar entre os amigos e os irmãos, um de 5 e outro de um ano de idade. Fernanda foi pedir o aval da mãe. Thayana Santos relutou, consciente dos conflitos armados entre facções ou com a polícia, tão frequentes na Maré. Mas acabou por ceder diante da insistência da filha. O Parque União ficava a mais de 2 quilômetros de onde ocorriam os tiroteios. A menina, pensou a mãe, estaria em segurança.
De posse de sua Barbie, Fernanda seguiu para a rua Darcy Vargas, no Complexo da Maré, onde morava a amiga. Tão logo chegou, foram para a laje, munidas de suas bonecas, roupinhas e panelas. Brincavam distraídas quando, sem mais, Fernanda baqueou, atingida por uma bala perdida. O esforço de vizinhos e moradores para prestar-lhe socorro foi em vão. Sua mãe já preparava o jantar quando recebeu a notícia. Decidiu que Fernanda, 7 anos, seria enterrada com o “vestido de princesa” que, um dia, sonhou usar na Primeira Comunhão.
No dia seguinte à morte de Fernanda, dez escolas e duas creches, que atendem mais de 5 mil alunos, suspenderam as atividades. Ao todo, nos primeiros quatro meses de 2017, as escolas da Maré fecharam por 13 dias, e os postos de saúde, por 19, como relatou Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré, em texto para este blog. Segundo ela, nos mesmos quatro meses de 2017, 18 pessoas foram assassinadas na comunidade – mais que o número total do ano passado, quando a Maré registrou 16 assassinatos. Enquanto os mortos nos confrontos com a polícia são homens, a maioria das vítimas de bala perdida são meninas, como Fernanda, ou mulheres, como Rosemeire Oliveira da Silva.
Dias depois da morte da menina Fernanda, foi a vez de Rosemeire Oliveira da Silva, 40 anos, negra e em tratamento da dependência de drogas. Depois de anos vivendo nas ruas, Rosemeire orgulhava-se de ter alugado um cantinho para chamar de seu na Maré, havia seis meses. Dividia o conjugado com o companheiro, João. Em 10 metros quadrados, fez caber geladeira, fogão, pia, cama e TV. “Minha casinha é o meu esconderijo”, dizia, com o sorriso largo e os olhos grandes que marcavam sua fisionomia.
Da vida nas ruas, Rose herdou a generosidade. Não raro, abria seu “esconderijo” aos amigos de outros tempos, cedia a própria cama para que pudessem descansar, tão logo ela e João acordassem. Tinha o costume de caminhar pela comunidade e, por puxar conversa aqui e acolá, virou figura conhecida na vizinhança.
Em fevereiro, o companheiro caiu doente, vítima de tuberculose, doença que acomete muitos moradores na Maré – o complexo de favelas concentra os mais altos índices de tuberculose no Rio. João estava internado no Hospital de Acari e, naquele 18 de fevereiro, Rose foi visitá-lo. Na volta, decidiu passar na chamada cracolândia para rever os amigos. Lá, foi atingida na cabeça por uma bala perdida. Morreu dias depois.
É por Rose que a Maré convoca uma marcha nesta quarta-feira. Por ela, por Fernanda, pelas vítimas da violência que avança de forma brutal nas comunidades do Rio. A marcha (a partir das 13h, na Praça do Parque União) é a primeira ação do fórum “Basta de Violência, Outra Maré é Possível”, um projeto permanente, fruto da mobilização de instituições locais e de moradores. O ato é aberto – e, portanto, um convite aos que acreditam que, como propõe a comunidade, outra Maré é possível.
* Lidiane Malanquini e Patricia Ramalho Gonçalves trabalham na ONG Redes da Maré