“Vaginas Ingovernáveis”: Sobre Mulheres e Maconha

#AgoraÉQueSãoElas

Por Rebeca Lerer*

Entre uma tragada e outra no baseado para lidar com a cólica e sensibilidade típicas dos dias de TPM, reproduzindo um hábito feminino ancestral, reflito: não é por acaso que, em 2017, em meio ao caos político e sentimentos generalizados de derrota da democracia, o feminismo e o movimento pela legalização da maconha e fim da guerra às drogas representem duas das mais potentes lutas sociais no Brasil e no mundo.

As organizações horizontais de mulheres e usuários de drogas vêm pautando ruas e redes em defesa de direitos e ocupando espaços simbólicos e midiáticos inimagináveis há poucos anos. O movimento pelo fim da guerra às drogas tem acumulado avanços com leis pela legalização da maconha aprovadas em 29 estados norte-americanos, o anúncio da regulação federal da maconha no Canadá para 2018, o caso pioneiro do Uruguai em 2013 e a progressiva oferta do óleo de cannabidiol para tratar pacientes que sofrem de epilepsia e outras doenças.

Os avanços na legalização da maconha revelam também o protagonismo feminino na mudança cultural em torno da questão das drogas nos Estados Unidos. São notoriamente mães que estão à frente do renovado grito #BlackLivesMatter, questionando o racismo, a violência policial e o encarceramento em massa associados à política de drogas norte-americana. Ainda que o modelo capitalista de legalização não resolva o profundo passivo de violações contra negros e latinos nos EUA,  é fato que a onda canábica criou oportunidades inéditas para mulheres e empreendedoras no país. Na Califórnia, mulheres trocaram os brindes com vinho pela congregação com a erva em reuniões para falar sobre maternidade e família. A nova indústria da maconha nos EUA é, curiosa e espetacularmente, o primeiro negócio bilionário na história do país a ter grande parte de CEOs e lideranças femininas.

No Brasil, apesar do crescimento do debate, ainda sopram as brisas do retrocesso. A política de drogas brasileira insiste na guerra contra pessoas pobres e negras e na criminalização de trabalhadorxs do comércio e usuárixs de substâncias consideradas ilícitas, gerando estigma, corrupção e violência. O fracasso é explícito no contínuo aumento do consumo de drogas e na marca de 60 mil assassinatos por ano, que tornou o país o recordista mundial em números absolutos de homicídios.

Mulheres negras moradoras das periferias brasileiras sofrem desproporcionalmente os efeitos negativos dessa lógica falida. Na rotina da guerra, que inclui operações policiais fortemente armadas com blindados e fuzis em comunidades e favelas densamente populadas, uma parcela dessas mulheres perde filhos jovens e negros mortos pela polícia ou presos; irmãos e maridos acabam envolvidos com o varejo do tráfico de drogas, encarcerados ou assassinados. Em visitas, companheiras de presidiários acabam submetidas a revistas vexatórias e humilhações de toda sorte. Multiplamente violentadas pelo Estado e com vidas marcadas pelo luto, ainda cabe à essas mulheres garantir o sustento de suas famílias.

Entre 2000 e 2014, justamente o período pós-alteração na Lei de Drogas de 2006 que endureceu as penas mínimas para tráfico, aumentou em 503% o número de presas. Hoje, são mais de 40 mil encarceradas em masmorras superlotadas e indignas. Cerca de 63% estão presas por crimes relacionados a drogas, a maioria sem antecedentes criminais, muitas delas mães e únicas fontes de renda de residências periféricas.

O estigma sobre as mulheres envolvidas com o varejo das drogas ilícitas é infinitamente maior do que o que atinge os homens. Basta observar a fila de visitas a uma cadeia feminina e verificar que uma mulher presa é geralmente abandonada pelos machos ao redor; o que lhe resta é a solidariedade de irmãs, mães, tias, madrinhas, amigas e filhas. São os conceitos de “sororidade” e  “solidão da mulher negra” aplicados em suas mais nuas e cruas traduções.

Em outra proporção, também bastante danosa, o estigma contra mulheres usuárias de drogas, mesmo as brancas e de classe média, anda de mãos dadas com o machismo. Parte considerável dos relatos de violência sexual envolve o uso de alguma droga como “justificativa” para o comportamento, seja da vítima ou do agressor. Se a mulher estava “bêbada” ou “drogada”, a cultura do estupro automaticamente a rotula, culpabiliza e desacredita; quando é o homem que se embebedou, a culpa da agressão é do “álcool.”

O proibicionismo das drogas visa controlar nosso direito à consciência e ao prazer, assim como o machismo nega a soberania da mulher sobre o próprio corpo. Combinadas, tais práticas alimentam o racismo e a criminalização da pobreza e estão vinculadas às graves crises de (in)segurança pública, encarceramento e violência de gênero que vivemos no Brasil.

Não há, portanto, como ser feminista sem ser antiproibicionista – e vice-versa.

Como acontece em todos os ambientes ditos “progressistas”, mulheres se defrontam com culturas machistas e misóginas dentro do próprio movimento pelo fim da guerra às drogas. Para garantir respeito e pautar o feminismo no debate, usuárias e ativistas têm se organizado na Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, no Bloco Feminista Da Marcha da Maconha São Paulo, na Ala Feminista da Marcha da Maconha Rio de Janeiro e no Coletivo Maria Fumaça de Minas Gerais, entre outras iniciativas pelo Brasil que promovem encontros, conversas e ações ao longo do ano.

Por aqui, depois do voto do STF que assegurou o direito de marchar pela legalização da erva em 2011, o movimento cresce. Em 2016, 30 cidades brasileiras se manifestaram pelo fim da guerra às drogas; só na capital paulista, mais de 40 mil pessoas realizaram um dos maiores atos recentes de desobediência civil a romper o binarismo que marca o atual ciclo político. Este ano, pelo menos 27 cidades já agendaram marchas da maconha no Brasil; em São Paulo, o ato acontece neste sábado, dia 06 de maio, no MASP, a partir das 14h20.

Acabou o baseado. A cólica melhorou. Concluo essa reflexão esperançosa porque somos maconheiras de luta, somos vaginas ingovernáveis em busca de liberdade.

Nos vemos nas ruas. Vamos juntas.

 

*Rebeca Lerer, jornalista e ativista de direitos humanos.