O BBB17 e o abuso: a clássica gratidão pelo agressor
Por Aline Ramos*
Nesta semana, Marcos, ex-participante do reality show BBB 17, foi expulso do reality show exibido diariamente pela TV Globo após uma ato de violência contra Emily, vencedora do programa. Emily e Marcos viveram, diante de todo o Brasil, uma relação abusiva.
Muita gente não gosta da Emilly. Até aí tudo bem. Eu não gosto de algumas pessoas (e infelizmente não tenho a oportunidade de votar para que elas sejam eliminadas da minha vida). Eu nem vou discutir se Emilly merece ou não o prêmio e a simpatia do público. Mas tem algumas coisas que me tiram do sério. Uma delas é jogarem na conta da Emilly as atitudes de Marcos mesmo depois de comprovado que o ex-participante do BBB foi expulso por agredi-la.
Vivian, a participante mais coerente e equilibrada desta edição do BBB, propôs uma reflexão inédita. Ela, que também não curtia muito a gaúcha, após o surto de Marcos na casa, disse: “estão tirando muito as coisas das costas dele para ela”. Os outros participantes bateram o pé, acreditavam que o comportamento de Marcos era culpa de Emilly. Especialmente, claro, ele mesmo.
O assunto só tomou grande proporção quando o público notou que Marcos tinha agredido Emilly durante discussão acalorada. Os roxos pelo corpo, declarações da participante como “você está me apertando de novo” e um pedido contínuo para que ele se afastasse não deixaram dúvidas: aquilo era um ato de violência contra a mulher. O Brasil assistiu um episódio de uma relação abusiva.
Porém, porque entaão Emilly ainda se preocupa com Marcos? “Ele nunca tve a intenão de me machucar”, repetiu.
Grande parte dos telespectadores que acompanham o programa se indignam diante dessas reações.
Na primeira vez que Emilly foi chamada ao confessionário para conversar sobre as agressões de Marcos, ela saiu visivelmente abalada. Não temos acesso ao que foi conversado e o que foi dito, mas quando ele perguntou o que aconteceu, ela disse que foram mostradas coisas que ela preferia fechar os olhos para não enxergar.
Quem acompanhou o BBB 17 sabe que o ego da gaúcha é grande. Emilly sempre se sentiu forte e se orguhou disso. E mais, se orgulhava de sua relação com o médico a ponto de sugerir que as colegas de confinamento tinham inveja do casal. Assumir que essa relação fracassou, que ela não estava no controle de tudo e, pior, que ela era uma vítima, com certeza não será uma tarefa fácil. Nunca é.
Quando falamos de relações abusivas, a associação mais rápida que fazemos é a de que o abusador é um monstro. Porém, é frequentemente nas sutilezas de uma relação como essa que o abuso se configura. É importante ter em mente que nem todas as relações abusivas se dão da mesma forma, mesmo que seja possível encontrar alguns comportamentos que se repetem, padrões. Olhemos para alguns dos padrões que podem ser percebidos nesse caso.
Primeiro, vítimas não são santas e não estão certas em tudo o que fazem. Porque digo isso? A nossa tendência é tratar tudo de forma binária. O bem contra o mal. Esse esquema sempre falha quando se trata de relações humanas. Mesmo na posição de vítima, Emilly ainda assim é uma pessoa complexa, que erra, acerta. Tem contradições. Ela colecionou desafetos ao longo do programa e isso, sua condição humana, é e será usado contra ela. Alguns nas redes já estão fazendo isso.
No mais, Marcos, inicialmente, fez investidas na gaúcha e não obteve sucesso. Numa dessas tentativas, forçou até um beijo. Após ser indicada pela casa para o seu primeiro paredão, ela cedeu e ficou de vez com o Marcos. Carência. Ao passo que o relacionamento entre os dois foi se fortalecendo, Emilly se afastou do restante da casa.
Nesse contexto de isolamento, foi muito fácil para Marcos dominar a relação e exercer seu poder sobre Emilly. Por ser mais velho, ser médico e ser homem, a relação dos dois mais se parecia dcom um reformatório. Marcos convenceu Emilly de que ela precisava de ajuda e de ele faria essa boa ação de ensiná-la como viver. Foram sermões sobre amizade, dinheiro, profissão, comportamento e até mesmo como uma mulher deveria se portar numa balada.
Mesmo ouvindo Marcos, Emilly questionava, respondia e demonstrava que não concordava sempre. Para o gaúcho, esse era o mal da garota. Numa das cenas mais deploráveis do programa, Marcos se debruça sobre ela chorando, segura em sua cabeça enquanto dá leves batidas no chão e diz “escuta Emilly, não faz eu desistir de ti. As pessoas vão sempre se afastar de você se tu continuar assim”.
Considero essa cena simbólica, pois, elas nos apresenta a mensagem completa. É dito a ela que ninguém gosta dela e que somente ele a tolera. A relação mostra-se permeada por chantagem e assimetria de poder. Marcos estava convencido e convenceu Emilly de que ela deveria ser grata a ele.
Aí está o padrão: 1) culpabilizar a vítima, 2) afastá-la do convívio dos que podem ajudá-la, 3) criar a ficção de que a vítima deve ser grata ao abusador.
Enfim, não adianta tratarmos agressores como monstros. Para a vítima, o sentimento que ela nutre é de gratidão. Admiração, por vezes. Mesmo que essa gratidão ou admiração seja na realidade medo. Por isso não faz sentido cobrar de Emilly uma postura raivosa – como parte do público que acompanhou o drama tem feito. Longe das pessoas que verdadeiramente a amam, isolada, como ela poderá enxergar o que de fato ocorreu? Dizer que Marcos é um monstro apenas reforça sua posição defensiva e de negação da sua condição de vítima. Defender Marcos é se defender, para Emily.
Dessa vez o Brasil viu. Quase nunca é assim. Geralmente as Emilys desse país sentem medo e são induzidas a entendê-lo como gratidão sem testemunhas.
Precisamos urgentemente criar novas formas de nos relacionarmos em nossa sociedade para que as dinâmicas entre companheiros como Marcos e Emilly não se repitam. Afinal, não é sempre que há câmeras registrando cada agressão.
*Aline Ramos é jornalista e idealizadora do blog ‘Que nega é essa?’, espaço de debate e reflexão sobre cultura, sociedade e comportamento.