Meu Corpo Minha Vida, o filme: seguiremos cúmplices silenciosos de uma chacina?
Por Helena Solberg*
Nos anos 70, morando nos USA, vivenciei em Washington DC as marchas das mulheres americanas por seus direitos. O livro de Betty Friedan em 63 havia sido um estopin para a segunda onda do feminismo no USA. A investigação feita por ela como sociologa nos suburbios americanos revelou atravez do seu livro, The Feminine Mystique, a insatisfação e o desespêro da “dona de casa ” americana que supostamente deveria estar vivendo “o sonho americano”. Detalhadamente, com evidencia cientifica baseada em suas entrevistas, em sua pesquisa de campo ela desmascara esse sonho.
É tempo de desmascararmos no Brasil as politicas que restringem as mulheres de exercerem os seus direitos à cidadania em todo seu potencial.
Simone de Beauvoir, sempre ela, tem uma frase exemplar no Segundo Sexo, que sempre guardei comigo: “as mulheres existem não só para repetir a vida mas também para transformá-la”. Para transformá-la temos que agir. O Brasil se alinha com os paises mais atrasados e subdesenvolvidos em sua politica em relação à questão do aborto. O índice de desenvolvimento de um país é medido também pela forma como trata suas mulheres.
Um filme é somente um recorte da vida, nenhum documentario é definitivo. Esle pode e deve abrir caminho para outros filmes, para outros debates, outras reflexões.
Meu Corpo Minha Vida, meu filme, corporifica essa história através de um caso emblematico que nos conduz adentro desse labirinto de conflitos, o dilema profundo por que passa uma mulher procurando tomar decisões que podem afetar o resto de sua vida. Essa é a historia de Jandyra Madalena dos Santos.
Sua historia é como de muitas outras do mesmo meio social, classe media baixa, desejando tudo que a sociedade de consumo pode lhes oferecer, mas tolhidas pelas circunstancias, pelas dificuldades economicas, pelas pressões da sociedade, da igreja, e da familia. A tragedia é anunciada aos poucos, com uma construção cuidadosa que vai levando ao inevitável desfecho. As portas vão se fechando na medida que ela busca uma solução. Procuramos nos identificar com ela, entender quais as opções que a sociedade lhe oferece e por que, no desespero, sozinha, escolhe a mais perigosa e fatal das soluções, a única que lhe é dada quando decide pela interrupção de sua gravidez. Mãe de duas crianças, ela corresponde ao perfil identificado pela Organização mundial da Saude, contrariando a crença popular de que são mulheres promiscuas as que buscam essa solução extrema.
Sem acesso a uma clínica legal, Jandyra teve que buscar ajuda nas mãos de profissionais criminosos. Entrou numa van na zona oeste e desapareceu. Ainda enviou mensagens pelo celular, amedrontada e preocupada por sua vida. Um dia depois, um corpo carbonizado, irreconhecivel, foi encontrado dentro de um carro incendiado. Ela havia sofrido complicações nas mãos dos falsos médicos e morrido durante o procedimento.
Havia sido mutilada, desmembrada e queimada para não deixar vestígios.
Não fosse pela extrema brutalidade do caso, Jandira teria se tornado só mais uma estatística: mais uma mulher fazendo um aborto entre as milhares que buscam esse procedimento todo ano no Brasil – onde a punição para o ato é de 3 anos de prisão.
Meu Corpo Minha Vida tenta construir um debate com opiniões de diversos setores da sociedade. Esse debate é urgente, não podemos ignorá-lo ou seremos cúmplices silenciosos da chacina que ocorre anualmente em nosso país. Somos todas Jandira !
*Helena Solberg é cineasta brasileira. Diretora, produtora, roteirista. Uma das únicas mulheres a participar do movimento brasileiro cinematográfico de vanguarda Cinema Novo. Lança agora “Meu Corpo Minha Vida”.