Imperfeita
Por Thais Moll*
Sou uma mulher de 39 anos, branca, classe média, bonita, alta e magra, simpática, gentil, uma mulher que sempre cumpriu com o que esperavam dela. Seguindo um roteiro bem comum, tinha como sonho de pré-adolescente, ser modelo.
Desde sempre trabalhei “com moda”. De modelo a jornalista, de editora a figurinista, fotógrafa, assistente de estilo, escritora e estilista. Aos 23 anos mudei para São Paulo. Fui convidada a trabalhar em uma revista de adolescentes que eu amava quando era adolescente. Rapidamente veio a real: um esquema limitado e cheio de nuances preconceituosas.
A publicidade e a indústria da moda funcionam a partir de jogos de poder que envolvem mulheres muito jovens – a modelo é muitas vezes a única figura feminina num estúdio – e a construção de sujeitas moldadas pelo consumo. Envolvem cifras astronômicas em campanhas e desfiles de arromba, totalmente descartáveis. Tudo isso forja um sistema que, quanto mais fechado, mais cobiçado. Quanto mais seleto, mais egocêntrico. Quanto mais inclusivo, mais preconceituoso.
Sabe essa idéia de que as mulheres se invejam, que estão todo o tempo a competir umas com as outras? É só olhar para as imagens de moda para entender: a modelo está num contexto idealizado, com um olhar de cima, com uma postura altiva, e numa situação que nem que a outra queira e faça tudo para estar ali, ela nunca estará. Passei a me sentir extremamente incomodada em seguir produzindo imagens que me afastavam das mulheres, que deixavam espectadoras sem solução palpável para suas questões, ou melhor, que as impulsionavam a não ter questões. A mulher que consome revistas de moda continua totalmente solitária em suas indagações íntimas.
Larguei tudo e fui sem objetivo nem tática viver em Londres. Mergulhei no começo de um encontro comigo mesma, que me levou da América Latina ao México, até um desfecho na Índia. Sim, eu ainda possuía uma arrogância cool de quem trabalha com moda, mas durante esses viagens entendi que o mundo estava ali para ser compartilhado por todos e que eu não era melhor que a outra ao meu lado.
E a parti daí, finalmente pude começar meu trajeto de encontro ao que me era próprio. Temas que não faziam parte do meu repertório, tais como o envelhecimento e a morte, viraram minhas obsessões. Eu, que havia feito botox aos 28 anos, estava me despindo do radicalismo das obrigações estéticas que sempre cumpri. Depois de tantos anos celebrando a beleza juvenil, não encontrei mais apoio nas imagens que me circundavam, de mulheres que ao invés de envelhecer, eram apenas substituídas por outras mais jovens. E aí veio o meu primeiro vídeo, “Trajeto”, em que decidi pintar as minhas rugas ao invés de escondê-las, para descobrir, na imagem final do rosto pintado, que aquele ato não era contra a beleza, mas contra o olhar anestesiado por uma idéia única e limitante de beleza.
E mesmo que hoje eu me dedique a produzir imagens e conteúdos que colaborem para criar uma visão mais critica sobre o lugar da mulher, sei que meu corpo está impregnado por uma época, por uma origem, por um trajeto, por inúmeros símbolos. E é uma trabalheira sem fim acordar e discordar do que aí está posto, fazer uma auto-crítica valente.
Se quero ser autônoma preciso começar pelo meu corpo, que é meu maior patrimônio. E para isso tenho que criar novas narrativas para esse corpo como objeto e ator do mundo. Narrativas do consumo, narrativas do valor, narrativas ético-estéticas que colaborem para uma diversidade saudável e uma auto-aceitação honesta. E, se hoje, o sistemão da moda tudo devora, finalmente aceito estar fora de moda.
Thais Moll é artista plástica e empreendedora cultural