Quem faz as regras do jogo da política no Brasil?
Por Júlia Carvalho e Bárbara Côrtes*
“O aborto, por exemplo, pode vir a ser uma questão de política pública?” – essa questão foi levantada em sala de aula por um doutor em gestão pública. Mandato vai, mandato vem, um jogo de revezamento determina novas políticas públicas, mas a agenda parece insistir em excluir algumas em especial. Por quê?
Teoricamente, uma gestão se organiza para elaborar soluções (e) alternativas a demandas sociais latentes a partir da identificação de um problema objetivo, ou seja, dificilmente uma agenda pública pode ser tratada como uma questão de opinião ou condição moral. Na prática, porém, infelizmente não é bem assim.
A cultura, isto é, a estrutura social na qual vivemos, reproduz uma série de padrões – de pensamento e de funcionamento –galgados ao longo da História, de modo que ainda hoje é possível notar que os problemas sociais se mantêm menos determinantes para pautar os caminhos de um governo que a moralidade e as crenças dominantes. Em outras palavras, é fato: existem vidas que importam menos às decisões nos espaços de poder.
Na política institucional não é diferente. A leitura do sistema político brasileiro hoje como uma estrutura que é dirigida pela neutralidade é impossível, na medida que seu conjunto de regras e peças foi construído ao longo do tempo por um grupo de homens específicos, de famílias específicas, com acessos e crenças demarcados.
Gênero e política ainda hoje são palavrão. Num jogo entre desconfortos e abstenções, as discussões tencionam-se e têm transbordado por toda parte, o que evidencia sua urgência.
Em 2014 estava previsto no PNE (Plano Nacional Educacional) que a questão gênero fizesse parte das diretrizes educacionais que seriam aplicadas nas escolas de todo o país. O termo “gênero”, porém, foi retirado da determinação e substituído por um novo texto base, que foi aprovado às pressas pela Câmara Federal. No caso do Plano Municipal, a decisão de retirada do termo foi tomada pela Comissão de Finanças e Orçamento (!), mesmo não sendo assunto de sua alçada. Em 2015, o Enem, com 8,4 milhões de inscritos, abordou como tema de redação “A Persistência da Violência Contra a Mulher” – e foi rechaçado como ideológico e “partidário”, contexto no qual a expressão “Enem feminista” surgiu como apontamento de posicionamento “partidário”. Neste ano, a EMEF Amorim Lima recebeu uma notificação do vereador paulistano Ricardo Nunes (PMDB) exigindo explicações e alegando ilegalidade sobre a Semana de Gênero que estava sendo organizada na escola.
O fato é que, sendo reconhecido como pauta ou não, gênero é um elemento permanente no cotidiano do ambiente escolar, político ou empresarial, e se perpetua por meio de estereótipos, que são continuamente reproduzidos e reforçados, e das consequentes desigualdades que insistem em se manifestar por todas as faixas etárias.
Além disso, temos um impasse diante de uma real representação democrática, a qual deve ser perseguida. Sem representatividade, não se assume com a prioridade devida políticas que contemplem os recortes sociais que compõem nosso país: nossa política ainda é míope, excludente e seletiva.
Sendo assim, passar a considerar a desigualdade de gênero como agenda, discuti-la, auxiliar sua compreensão e redesenhar práticas basais na atual organização da sociedade é nada mais que uma questão de direitos humanos. E direitos humanos não podem ser assunto “partidário e ideológico”, mas definitivamente uma questão de trato racional e inegociável.
É a partir dessas provocações que para nós se faz evidente a necessidade de ferramentas lúdicas e abertas que deem conta de trazer a discussão e a compreensão das questões que interseccionam Gênero e Política.
Nasce então o projeto Molho Especial, núcleo de jogos sobre gênero da organização Fast Food da Política, criada e administrada por mulheres, a partir da qual se discute o sistema político brasileiro e seus mecanismos.
Como as mulheres têm ocupado os espaços hoje? Há mulheres nos espaços de poder? Se a política é um jogo, quais são as regras que determinam os mecanismos ligados a gênero, marcando desde as relações do cotidiano até a estrutura política no Brasil? Os primeiros jogos do Molho Especial procuram responder a essas questões.
Para nós, mulheres do Molho Especial – designers, cientistas sociais, advogadas, hackers – os jogos, enquanto ferramenta, têm o potencial de englobar em uma mesma discussão militantes, funcionários públicos, políticos, estudantes, “haters da política” e qualquer pessoa a fim de desvendar esses temas.
Pontuamos que uma política pautada nas questões sociais objetivas é uma construção que se desenvolve paralelamente à construção de um entendimento fluente, por parte da população, acerca dessas questões e de sua importância.
* Júlia Carvalho é fundadora e diretora da Fast Food da Política. É designer, pós-graduanda em Gestão Pública (FESPSP) e Conselheira Municipal Participativa de São Paulo.
Bárbara Côrtes é conselheira da Fast Food da Política, co-fundadora e gestora do projeto Molho Especial. É cientista social pela USP, poeta e bailarina.
(O projeto está em fase de captação no Catarse, e o próximo passo será fomentá-lo por meio de eventos abertos de aplicação de jogos e a disponibilização dos modelos para reprodução gratuita)