A pílula da escolha
Por Letícia Bahia*
A notícia da gravidez caiu como um caminhão de entulho sobre os ombros de Ana. O salário de doméstica mal pagava a farinha dos 3 filhos. O marido estava desempregado e andava flertando com a bebida. Desesperada, ela pediu ajuda a Maria. Anos antes, Ana soube que a vizinha também estivera grávida, e fez coro aos que julgaram a mulher pelo misterioso desaparecimento daquela gestação. Maria semi-sorriu condescendente, metade vingada, metade solidária. “Tem um jeito”, confidenciou, “e não precisa de doutor”. Contou a Ana o que alguma outra Maria tinha lhe contado dois anos antes: bastava comprar na farmácia os comprimidos – “uns 6, 8” – que resolveriam a barriga. “Vai doer um pouco”, advertiu, “mas resolve”.
Essa é uma cena possível entre as tantas que devem ter se repetido no final da década de 80. Graças às nossas Anas e Marias, o aborto seguro foi disseminado até que se tornasse popular o bastante para chegar ao conhecimento da comunidade médica. Foi assim, no boca a boca de brasileiras comuns, que não eram médicas e que provavelmente repudiariam o título de “feminista”, que descobriu-se o método mais seguro para interromper uma gravidez.
Essa história começa em 1986, quando o Brasil aprovou a comercialização de um medicamento para úlcera. Na bula, lia-se que o remédio não deveria ser usado por gestantes. Apesar disso – ou exatamente por causa disso -, Anas e Marias desesperadas por um aborto começaram a usar o Cytotec. Funcionou. De maneira espontânea, descentralizada e orgânica, os rumores sobre a pílula do aborto espalharam-se em velocidade espantosa. Não foi a internet nem a televisão, muito menos a comunidade médica, mas a necessidade das brasileiras a responsável pelo rápido crescimento nas vendas do medicamento da Pfizer até o primeiro semestre de 1991, quando o Ministério da Saúde impôs restrições drásticas a sua comercialização.
A utilização do Cytotec como método abortivo chegou a tal ponto que, em 1990, cerca de 70% da mulheres hospitalizadas por conta de abortos relataram o uso das pílulas abortivas. A experiência das mulheres brasileiras finalmente chamou a atenção da comunidade médica, que começou a estudar as propriedades abortivas do medicamento. Hoje, o misoprostol – princípio ativo do Cytotec – está na lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial da Saúde. O aborto com os comprimidos têm baixíssimo risco – para se ter uma ideia, a taxa de mortalidade é inferior à de partos – e alta eficácia, sobretudo quando combinado com mifepristona, droga que também está na lista da OMS.
Com as restrições impostas pelo governo brasileiro, nasceu o mercado negro de comprimidos. A demanda, no entanto, não diminuiu. Em 2013, segundo pesquisa conduzida pelo especialista em Saúde Pública e professor adjunto aposentado do Instituto de Medicina Social da UERJ, doutor Mario Monteiro, cerca de 700 mil mulheres recorreram a um aborto.
Relegadas à clandestinidade, as brasileiras que precisam de um aborto são vítimas de um mercado ilegal com todas as características de mercados ilegais. As pílulas de misoprostol traficadas estão por aí, mas não há como saber se são de boa procedência ou se são placebos; os médicos que realizam o procedimento, em geral por curetagem, cobram caro – o preço precisa incluir o risco do negócio e a propina paga pela vista grossa – mantendo a segurança das clínicas mais seguras ao alcance de poucas; no caso de haver complicações – e os métodos inventados pelo desespero das mulheres ocasionam um sem fim de complicações – a mulher que procura um médico pode acabar encontrando um policial.
Preocupadas com os números alarmantes e com a alta mortalidade de mulheres em decorrência de abortos inseguros, algumas organizações estrangeiras trabalham para que o misoprostol chegue às mãos de quem precisa. Uma dela é a Safe2choose, que atua em países da África e da América Latina, incluindo o Brasil. Através do site, é possível fazer uma consulta online para determinar se o aborto com as pílulas é indicado. Em caso afirmativo, a mulher recebe os comprimidos pelo correio, e as estatísticas contabilizam um aborto inseguro a menos.
As brasileiras que inventaram o aborto seguro perderam-se na História, e certamente não sabem quantas vidas já salvaram desde os anos 80. Diante da impossibilidade de recorrer ao Estado e à Medicina, brasileiras comuns, sem formação específica, descobriram e disseminaram organicamente uma solução que lhes devolveu a autonomia sobre o próprio corpo. Mesmo sem conhecer os eventuais riscos do aborto com Cytotec, elas seguiram abortando e disseminando informação sobre as pílulas. Essas Anas e Marias foram e continuam sendo a prova de que quando mulheres se deparam com uma gravidez que não é bem vinda elas vão abortar, mesmo se houver risco para sua saúde. Sem o respaldo das instituições que deveriam ajudá-las, as brasileiras descobriram uma solução. Resta saber até quando a alternativa que salva vidas seguirá na clandestinidade.
*Letícia Bahia é psicóloga e autora do blog Reflexões de uma lagarta, onde escreve sobre Direitos Humanos com foco em questões de gênero e sexualidade. Atualmente é Diretora de Relações Institucionais da Revista AzMina.