Santa Inquisição das Vulvas
Por Thamyra Thâmara*
Um dia desses, eu estava como ouvinte numa aula de doutorado na UFF, ao me deparar com Judith Butler em seu livro ‘Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? ‘. O livro é maravilhoso, atual, recomendo! Porém, o que mais me chamou atenção é quando ela fala de enquadramentos. E o que são enquadramentos?
Se a gente for pensar na perspectiva da fotografia, enquadrar é escolher uma parte da imagem que está a frente e que você deseja retratar. Até aí tudo bem! O problema dos enquadramentos é que eles são seletivos, incompletos e têm haver com poder. Enquadramentos são incompletos porque não conseguem abarcar toda complexidade das relações humanas e culturais, e tem a ver com poder porque, no momento em que enquadrando algo através da fotografia, de um texto jornalístico, de uma pregação na igreja ou um discurso político num comício, estamos narrando uma história a partir de uma única perspectiva. Se essa única perspectiva tem ampla voz e alcance, pode parecer que não existe nada para além disso (e sempre tem).
A vida tem essa coisa de brincar com a gente, porque foi justamente depois de participar desta aula que saiu um texto meu no Blog da Folha intitulado “Cristã e feminista pode?’ e, a partir daí, caiu sobre um mim chuva de enquadramentos querendo saber quem eu era na fila do pão para afirmar ser feminista ou cristã. Para além das inúmeras mensagens positivas e acolhedoras, duas críticas me chamaram bastante atenção. A primeira foi de um grupo de feministas que julgou impossível eu ser cristã e feminista, uma vez que, segundo elas, a bíblia é um livro misógino, racista, homofóbico e pronto! (sem diálogo). Não nego que existem muitas práticas religiosas assim dentro do meio evangélico, mas reduzir somente a isso é fechar as portas para qualquer possibilidade de diálogo. De certa forma, entendo estas mulheres. Se a gente for pensar que, há anos, a mídia e os programas de TV retratam os evangélicos com uma cara só. A mídia pira, porque só consegue caricaturar, não consegue entender um movimento tão diverso. Quem nunca deixou de olhar para o amiguinho e amiguinha diferente depois que ela disse que era crente? Levanta a mão!
A outra crítica que recebi veio de um pastor. O dito cujo não tinha nada para refutar no meu texto e resolveu vasculhar minha vida, para tentar encontrar algo que deslegitimasse o fato de eu ser cristã, o que é bem típico desse tipo de líder religioso. Essas coisas sempre começam pelo lado da moral, né? E por aí, ele encontrou um texto da Ítala Isis falando sobre a minha exposição fotográfica (em processo) intitulada ‘A Vulva que Existe em Mim’. Só bastou isso para que ele começasse a santa inquisição das vulvas. Só bastou a voz de um homem religioso para dizer que eu era culpada, armar o circo e seus devotos cegos jogarem as pedras. Segundo esse rapaz eu estava ferindo a ética sexual cristã (???) e me acusou de sair por aí pedindo “me empreste sua vagina para eu fotografar”, de reduzir mulheres a partes íntimas, já que elas são seres completos.
No entanto, nós sabemos bem que se eu tivesse feito uma exposição sobre olhos femininos ninguém ousaria pensar que eu estava reduzindo mulheres a olhos. Se eu fizesse sobre bocas, também não pensariam isso. O problema está na vulva, vagina, buceta, xoxota, pepeca (como vocês quiserem chamar). Como o corpo da mulher é demonizado por aqueles que pregam que o corpo é sagrado! Para eles o corpo só é sagrado se estiver escondido, coberto, castrado, reprimido, oprimido, mutilado e submisso a qualquer relação de poder. Por que será que a foto de uma vulva choca tanto? Por que o corpo feminino desnudo choca tanto? Porque nossos corpos e nossos desejos mulheris dentro da religião são vistos como culpados e pecadores. Se nossos corpos estão desnudos e um homem de “bem” de “família” nos deseja a culpa é nossa, nós buscamos aquilo, provocamos. (E como esse mesmo cara disse “não existe cultura de estupro”). O problema é a vulva “exposta” ou o olhar de luxuria reprimido desses caras?
Se ao menos ele tivesse se dado ao respeito de entender o conceito do ensaio fotográfico, saberia que estávamos falando de pessoas como ele que pune mulheres sem ao menos conhecê-las. O processo criativo se deu na minha casa, num momento catártico repleto de afeto onde conversei com dez mulheres incluindo minha vó sobre sexualidade feminina, muitas delas cristãs. Ouvi e gravamos histórias incríveis, fortes, algumas de dor, rejeição, violência sexual, outras de alegria, descoberta, amor. Todas nós fomos atravessadas pelo enorme tabu de conhecer nossos corpos, entender o prazer, se sentir realizada sexualmente, fazer escolhas. Sim, mulheres não são partes, mulheres são um todo, completas e complexas. Por isso, ignorar a sexualidade como parte importante da vida de qualquer mulher é considerá-la apenas um objeto, é mutilar essa mulher.
No mais, eu repito: a identidade evangélica está em disputa e não tem uma cara só. Não é sinônimo de Bolsonaros, Felicianos ou teólogos amantes de Calvino, Agostinho, Tomás de Aquino (e sei lá mais quer for). Como diria a minha amiga Ju Grabois: a ética sexual cristã da qual as feministas cristãs compartilham é contra-hegemônica e não está preocupada com a manutenção das normas, mas na afirmação da vida das pessoas, porque pessoas, principalmente mulheres e negrxs, têm morrido social e/ou fisicamente. A porta do Pai está aberta e não são eles que decidem quem vai entrar. Não são eles que decidem o que é família, o que é amor e muito menos o que é ser um “bom cristão’. A porta do Pai está aberta e entrará quem quiser. Entraremos e ceiaremos com Ele.
PS: PASTOR TIRA A MÃO DAS NOSSAS BUCETAS
#vaiterfeministacristãsim
#legaliza #ForaTemer
*Thamyra Thâmara é Jornalista, fotógrafa, social mídia, idealizadora do GatoMÍDIA e AfroFuturista. Escreve para Anastácia Contemporânea, Revista DR e Favelados pelo Mundo.